21.12.07

Coisa de homem

- Ei, que porra é essa no seu pé?
- O que, meu amor?
- Aí no seu pé. Que merda é essa?
- O que tem no meu pé?
- Na unha, na unha. O que é isso?
- É esmalte. Vai dizer que nunca viu?
- Lógico que já vi. Dãã. Mas por que sua unha tá pintada de vermelho? E só no pé?
- Porque na mão descascou, eu tirei. Mas no pé fiquei com preguiça. Aí deixei.
- Puta merda. Fala sério.
- Fala sério você. Não acredito que vamos parar de transar porque você não gosta de esmalte vermelho na unha do pé.
- Não é que eu não goste. Eu ODEIO. Eu acho o fim da picada. Se vai tirar o esmalte da mão, tira do pé também. Que relaxo.
- Larga de ser bobo. Vai, continua fazendo aquilo. Tava booommmm...
- Não, não. Pára. Não vou conseguir. Vou ficar pensando no seu pé, na sua unha.
- Você não pode estar falando sério. Pára de viadagem.
- Ah tá. Agora eu sou viadinho.
- É. E tem mais. Tô indo embora. Eu e meu pé de unha vermelha.
- Porra. Calma aí. Vamos conversar. Deve ter acetona em algum lugar por aqui.

Texto-presente que ganhei do meu amigo Marcello Miranda. Feliz Natal pra você.

13.12.07

Revelações

- Que foi? Você tá estranha.
- Né nada não.
- Mas você mudou de uma hora pra outra.
- Que nada...
- Foi o filme? Você não gostou?
- Não, adorei.
- Foi nosso primeiro filme juntos, né? Ainda vai ter mais um monte de primeiras coisas, já pensou que delícia?
- Pensei sim.
- Poxa, Teté, você mal tá conversando. Conta o que é.
- Nada... acho que preciso ir embora.
- Ir embora? Mas a gente não ia fazer um macarrão especial, abrir um vinho?
- Eu sei, amor, eu sei, desculpa. Mas tenho que ir.
- Peraí. Você achava que tinha que ir e agora já tá calçando a sandália pra sair?
- Não é nada com você.
- Ah, Teté, nem vem com esse clichê de o problema sou eu e não você.
- Júlio. Eu sou louca por você. Faz tempo que não sinto isso tudo por alguém, mas eu preciso ir. Se não consegue entender, pelo menos aceite, por favor.
- Poxa, agora vai ficar um climão.
- Amanhã eu volto, Júlio. Só tenho que ficar um pouco sozinha, sabe?
- Mas você tá aqui faz duas horas só.
- Me leva até a porta?
- Tá. Cadê meu chinelo?
- Vem descalço mesmo, tô com pressa.
- Pressa? Agora tá com pressa? Você tem outro compromisso?
- Caramba, Júlio, pára de pensar besteira.
- Mas o que é pra pensar? A gente estava abraçadinho, vendo filme, dando uns amassos bons e de repente você quer ir embora? Sinceramente eu...
- Merda.
- Teté.
- Não fala nada, não fala nada.
- Isso foi um pum, Teté? Você peidou?
- Não olha pra mim, sai de perto.
- Teté, pára de correr, volta aqui.
- Páááára. Não venha atrás.
- Tetezinha, isso tudo é porque você quer fazer cocô?
- Eu não faço cocô, não pra você.
- Teté, pára de correr, você vai fazer na calça desse jeito.
- Tá, tá. Parei. Era isso. Queria fazer cocô. Agora você sabe e a vizinhança toda também. Que vergonha.
- Meu amor, que bobagem. To com câimbra na bochecha de tanto rir.
- Ri... ri mesmo. Que situação... cocô não combina com começo de namoro. E eu ainda soltei pum, é o fim.
-Teté, eu também faço cocô, larga de ser boba. Talvez a gente pudesse ter adiado essas revelações, mas agora a merda tá feita. Ou quase.
-...quero enfiar a cabeça embaixo da terra.
- Oha pra mim. Você vai subir agora e fazer esse cocô lá no banheiro, tá?
- Tá... mas você fica longe? Não quero que escute nada.
- Juro. Vou ficar com a tv ligada, lá na sala.
- Tá... então eu vou.
- Me dá um abraço antes.
- Dou...
- Mas não peida não, hein?

26.11.07

Larga



Meu pai me dizia uma frase cretina, mas que agora cai certinha na nossa história. Quem dá demais fica largo. E é exatamente assim que me sinto hoje: larga. Dei espaço demais para você, dei trezentas chances para mostrar que iria fazer certo da próxima vez, dei tempo ao tempo, como você me pediu, dei minha palavra de que não perdoaria se você me traísse de novo, e fiz isso mais de uma vez. Dei com os burros n’água.

É o mal de não ouvir conselhos de pais ou qualquer um que enxergue um pouco mais do que você. Porque me conheço bem, a teimosia que parece charme, na verdade, é a armadilha que vivo armando pra mim mesma. E para deixar tudo ainda mais perigoso e terrível, coloco petulância, arrogância e todos os outros sinônimos que dizem mais ou menos a mesma coisa. E que no final de tudo vira a minha mais pura e inocente estupidez de não ter sabido parar na hora certa.

Aí me vejo aqui gritando, esperneando como louca por ter feito tudo errado mais uma vez. E o chilique é aquele mesmo, igual ao de criança mimada que se joga no chão para reclamar seus direitos. Não tem reação tão eloqüente quanto essa. Tão legítima.

O pior ainda é ter a leve desconfiança de que da próxima vez vai ser apenas um pouco melhor – independentemente de ser com você ou não, mas duvido que vá ser diferente. A gente se repete, só uma lobotomia muito bem feita para desfazer tanta burrice emocional. Ou amorosa, como queira.

Vou começar a escrever o que não posso fazer de errado novamente e colar ao lado de onde já tem o resto das auto-ordens. Junto do “passar hidratante todos os dias” vou colar “não tentar resolver todos os problemas dele”. Ah, sim, “não vou querer saber aonde, como e com quem ele saiu”. Minha pele é bem hidratada, meus pés não racham porque me obedeço passando os cremes. Não posso esquecer de colar: “não tenha pena dele”. E nisso meu pai também tinha razão. Quem tem pena morre depenado.

14.11.07

Não enfie amor no meio

Sempre me intrigou o termo “fazer amor”. Tirando o fato de ser brega até o talo, com licença do duplo sentido, nunca entendi porque deram ao sexo esse peso todo. Amor não se faz ali na cama, na banheira, em pé, sentado, ou quietinho em banheiros públicos. Amor se faz no dia a dia, nos planos, nas conversas, nas piadinhas, nos apelidos, na superação. Dar sim é outra coisa. Trepar, fuder, transar, nada disso precisa de amor pra acontecer e pra ser bom.

A diferença está em tudo que envolve o ato em si. Estar numa relação dá tranqüilidade. Aos mais preservados, dá a segurança necessária para mandar uns ‘vai com força, safado’, ou ‘bate na minha bunda’ sem se sair como uma ninfo sedenta. Também faz o dia seguinte ser mais leve. Sem ressaca moral, sem lembrar da cara do sujeito, ou sujeita, e imaginar o que o outro achou, no que está pensando. Sem esperar o telefone tocar ou um novo convite surgir.

Mas sinceramente, sem dar voltas ou medir palavras, vamos lá. Pau dentro é pau dentro, com ou sem amor. No vai e vem da criança, não tem amor que faça diferença. É suor, instinto, é todo mundo querendo gozar. É tira, põe, rebola, mexe, geme, quica, gira, o que a flexibilidade humana permitir. A pessoa pode até gritar ‘eu te amo, eu te amo, eu te amo!’, acompanhando o ritmo do balanço pélvico. Mas se o nheco nheco estiver espetacular, qualquer um vai falar isso. Você ama todo mundo quando está prestes a ter um orgasmo. Ama o mundo, o vizinho, o padeiro, os pássaros, os hippies. Quem dirá a pessoa que está ali colada em você. O sentimento em si, o amor, a vontade de casar, ter filhos, o carinho, o cuidado, nada disso influencia a qualidade do sexo. Ou vai dizer que você nunca deu umazinha inesquecível com uma pessoa que não amava?

Claro que trepar com amor tem um clima diferente. Principalmente pela felicidade e pelo sentimento de plenitude. Mas isso tudo se manifesta nas preliminares, não no pau quebrando em si. Eu estou falando é da hora que o cuco funciona, que a jeripoca pia, que a coruja sangra. De um em cima e outro embaixo, de um de quatro e outro ajoelhado. Tô falando de hormônios ensandecidos que independem de amor pra se manifestar. Que funcionam com toque, com estímulos físicos. Quero ver alguém manter um olhar doce e meigo enquanto está com as costas roçando num lençol e um cara suado rasgando tudo em cima. Quero ver o cara, enquanto está comendo a mulher de quatro, vendo aquela bundona ali dando oi pra ele, aquela coisa toda arreganhada, cheia de carne e fluidos, pensar que vai enfiar o pênis na vagina com amor. Ah, não. E não tem nada de errado em não haver amor nesse momento. É, na verdade, uma prova de que ainda existe justiça nesse mundo doido. Porque tanto os casais mais apaixonados quanto recém-conhecidos podem ter o mesmo prazer.

Se amor bastasse pro sexo ser monumental, se a qualidade da xuxada fosse proporcional ao amor que o casal sente, relacionamentos não balançariam por falta de encaixe, em todos os sentidos. Vale amor com sexo e sexo sem amor. Só não vale “fazer amor”.

ilustração do smeagol claudio frança.

24.10.07

Outros tempos

Bem que minha mãe dizia que eu entenderia. Ela sabia que um dia, eu daria razão.
Ser rebelde é fácil quando não se tem que arcar com as conseqüências. Quando não tem conta pra pagar, pais que protegem, a inocência como argumento. Talvez seja por isso que eu chore tanto com amores de filme. Eles largam tudo, abdicam das vidas aparentemente perfeitas por algo que nem sabem se vai ter futuro. Porque o futuro pouco importa perto de tanto presente. Lembra os impulsos da infância. Os mesmos que hoje são inconseqüentes.

Quando lembro de tudo que fiz quando era uma cabeçudinha dá arrepio na espinha. Como sobrevivi àquele atropelamento? Da onde tirei a idéia de que dava pra pular aquele fusca? E aquele dia em que, junto com a melhor amiga, inventei de comer formiga pra tentar curar miopia? Imagina que idéia besta. E se tem ferrão?
Inevitável não lembrar de todas as aventuras sem sorrir com aquele apertinho no peito. Uma saudade boa. Não dos bons tempos. Esse papo de bom tempo é um pé no saco. Cheira a naftalina, a tio do Napoleon Dynamite. É saudade da coragem inocente, que não vê motivos pra ter medo. Além de castigo dos pais. Pelo menos os meus sabiam castigar. E até nisso têm seus méritos. Obviamente não era assim que eu enxergava as coisas na época. Era um absurdo ser impedida de fazer o que quisesse na plenitude dos meus... doze anos.

Engraçado agora ver o outro lado. Como nossos pais. A música dizia isso e eu pensava “nunca vou ser como eles, nunca”.
Lembro que odiava eles por não gostarem de Guarapari no verão. Poxa, que motivo eles teriam pra não querer enfrentar uma praia lotada, num calor desumano, num mar cheio de xixi pra quando voltar pra casa ver que faltou água? Parecia uma grande aventura. “Todo mundo faz, mãe. Por que a gente não?”. Que paciência ela teve pra tentar explicar isso.
Em vez de Guarapari, a gente ia passear na fazenda. Eu ia sonhando em me jogar no rio Doce, caçar minhocas pra jogar na cabeça dos meus irmãos, brincar com os cachorros pulguentos que andavam soltos por lá. E minha mãe preparando almoço pra levar, arrumando mala pra três malinhas, levando produto de limpeza pra faxinar a casa. Será que ela gostava desses passeios como a gente?

E não é que hoje eu entendo meus pais? Me irrito com bagunça, carro com som alto, micaretas no meio da rua, gente inconveniente que fica querendo se socializar sempre. Tive espaço para minhas aventuras que, tenho certeza, eles conhecem bem e disfarçavam direitinho. Quero fazer o mesmo quando chegar minha vez. A infância tem que ter fotos engraçadas, com óculos escuros gigantes no rosto pequeno, pernas finas, pancinha saliente e durinha. Tem que ter uma cicatriz, um amor disfarçado por brigas e roupas ridículas. E pais corajosos, que saibam a hora de permitir e puxar as rédeas também.
Não tem nada mais chato que um adulto que cresce sem limites. E nada mais triste que não ter uma infância divertida pra se lembrar.

15.10.07

O sexo e eu


A primeira vez que me disseram um “hoje, não” ainda está bem viva na minha memória. Eu devia ter mais ou menos 9 anos e brincava de boneca na casa da minha melhor amiga de infância. Todos os sábados eu ia para a casa dela brincar. A rotina se repetia desde os meus 7 anos. Levava uma Susi, um Falcon (que pegava escondido do meu irmão) e duas Fofoletes. Na sacola amarela de plástico também iam fogão, armários de cozinha, mobília com mesa, cadeira, sofá, tapete, cama e guarda-roupa com milhares de roupas de Susi novinhas. Minha mãe me ajudava a atravessar a rua com a enorme sacola amarela e subir os quatro andares até chegar na casa da minha amiga.

Ela se chamava Ana Paula e era 4 anos mais velha que eu. Como todos os outros sábados da nossa infância, cheguei ávida por esparramar o conteúdo da sacola amarela no chão do quarto e começar a montar minha quase Dogville em versão infantil. Engraçado que mesmo com 9 anos consegui perceber que alguma coisa estava diferente. O olhar, o jeito de falar, a ausência. Começamos a brincadeira e em poucos minutos ela já tinha avacalhado várias cenas da história. Quando olhei para o que ela fazia, vi que a Susi e o Falcon dela estavam numa posição bem diferente. – Que isso, Ana? Perguntei com misto de medo e surpresa. – Isso que dá brincar com criança. Eles estão fazendo amor. É assim que os bebês nascem. Você não sabia disso, não? E quer saber, não quero mais brincar hoje.

Você pode imaginar o que senti. Levar um fora de alguém que você gosta e por alguma coisa que você está muito a fim de fazer é no mínimo horrível. Confesso que não sei lidar bem com isso. E até hoje morro de medo de levar uma dispensada. E por isso, mesmo querendo muito, não tenho o hábito de tomar a iniciativa. E para algumas coisas, mostrar iniciativa pode ser tão difícil quanto desenformar um pudim. Sexo é uma delas. Todo mundo fala de sexo, conta casos, fala baixaria na mesa do bar. Quando é começo de namoro também é fácil dizer: quero dar ou quero comer. Mas coloque os dois debaixo do mesmo teto para ver o que acontece.

Nem sempre acontece e isso é fato. Escuto das minhas amigas: - tenho preguiça de começar. Como? Tem preguiça de fazer uma das coisas mais prazerosas da vida? Vai ter vontade de fazer o que, então? Um não numa hora dessas desencadeia a série de neuroses, tanto femininas quanto masculinas. Você já conhece a ladainha – será que estou com bafo, será que ela acha meu piru pequeno ou fino ou grosso ou torto, será que ele acha minha perereca muito larga, meu peito tá caído, tá murcho. Tudo isso porque alguém disse não na hora H. Ou arrumou uma desculpa muito esfarrapada, ou virou pro lado e dormiu.

Taí uma coisa que queria simplificar. Que poderia acontecer assim: vamos trepar? Sem mistério, sem fundo musical, sem meia luz, sem calcinha de renda. Isso é baboseira de TV. Voltemos ao naturalismo, sem floreios e com muito mais prazer. Às vezes tenho muita preguiça de fazer sexo, é verdade. Mas prefiro dizer sim. Estragar a brincadeira de alguém traumatiza de verdade.

8.10.07

Sinal

Cachorros sabem atravessar a rua. Já reparou? Eu reparei. Juro que outro dia vi um checando a cor do semáforo antes de passar pro outro lado. Alguns, como seres humanos, calculam mal o momento de fazer a travessia. Compreensível. Os cachorros saem em desvantagem, porque não conseguem entender as campanhas sobre faixa de pedestre, as recomendações de esticar o braço para pedir passagem. Mas eu acho que é só questão de tempo. Eles vão acabar aprendendo isso também.

Porque as coisas são assim. A gente vai aprendendo. Coisa que você deveria fazer. Você sabia quem eu era. Sabia que eu não daria folga e mesmo assim se arriscou. Eu grito quando quero, choro quando quero, faço meus horários, crio minhas palavras e verdades. Eu não vou mudar. Eu gosto de confusão, de problemas, de intrigas. Mesmo que pra isso tenha que inventá-las. Coisa que você já deve ter notado, aliás.
Pena? Nunca vou sentir isso de você. Acho que você gosta. Não acredito que alguém se submeta ao que faço por simplesmente amar. Amar, ai ai. Por que você me amaria se eu só dou motivos para você me odiar? Porque você gosta de um desafio. Tem um quê de masoquista. O mundo taí, cheio de pessoas interessantes, de filmes novos, países exóticos. E você quer ficar comigo, tentando me mudar, me salvar? Você deveria fazer trabalho voluntário. A recompensa seria maior pra alguém que como você, acredita no impossível.

Pode continuar tentando. Eu só quero dizer que não vai adiantar. Meus vícios não vão mudar, minhas manias muito menos. Adoro minhas manias, adoro ser egoísta, adoro não dar satisfação. Gosto de você, claro. Você tem suas qualidades. Insistir em mim é uma delas. E não digo isso porque me acho foda ou merecedora de tanta dedicação. Mas porque faz com que você, por trás de toda máscara de bom moço, mostre que também é meio louco.

Desconfio inclusive dos reais motivos da sua obsessão por me mudar. Acho que é uma tentativa de se convencer de que seus princípios são bons, de que as coisas vistas do seu ângulo são melhores. Fica repetindo milhares de vezes que acredita nisso e naquilo, mesmo sabendo que eu não escuto nada. Não entra num ouvindo, muito menos sai pelo outro. Então é pra você mesmo que continua repetindo tudo?

Não gosto de dar conselhos, mas se você pedisse, eu daria um. Faça como os cachorros no sinal. Aprenda a hora de se afastar. Porque por mais que eu não goste de te ver sofrendo por mim, não vou te mandar embora.
ilustração em www.vidabesta.com

28.9.07

Por baixo dos panos

Sabe o que me emociona? Ver dois adolescentes na rua se beijando. Ela de uniforme, mochila, cabelos compridos, mão segurando cadernos, outra mão segurando os cabelos dele. Ele encostado no carro do pai, bermuda, tênis e camiseta, e mãos deslizando pelas costas dela, sem rumo e sem vontade de parar onde deveriam Acho que me lembro do que se sente nessa hora. A gente fica momentaneamente surdo, o estômago vira um aquário onde os peixes parecem nadar depois de tomar uma dose a mais de cafeína. E o beijo não termina nunca. A língua fica ali, rodando por horas dentro do mesmo espaço. Aqueles dois corpos, ainda firmes, estão tão juntos que preenchem tudo com o vácuo. Falta jeito, faltam palavras e sobra agonia para o resto da tarde, depois que ele deixá-la em casa. E o frio que percorre o corpo de cima até embaixo? Depois de abandonar os uniformes nunca mais voltei a senti-lo. E poucas vezes coloquei tanta paixão para ser exibida no meio da rua.

A idade é uma forma de censura. Deve ter servido à ditadura e aprendido a condenar aqueles que extrapolam. E, mesmo a contragosto, acabo concordando que excessos de exibição amorosa para quem já trabalha, paga contas e faz check up anual deveriam ser mesmo proibidos e trancados dentro de celas fechadas e úmidas. Temos o que merecemos, isso é fato. E mais que agradeço por nunca ter dado de cara com um outdoor no meio da minha rua com corações e frases melosas. Sorte também de não ter amigas escandalosas que gritam ao me ver. Em tempos de imagem saturada não iria suportar saber que todos vêem fotos minhas ao lado de quem amo e ficam sabendo o quanto sou amada e quero amar.

Nunca tive recepções barulhentas no aeroporto ao voltar de uma viagem longa. E como fico feliz por não ter essa lembrança. Acho que o constrangimento seria maior que a felicidade de ver todo mundo ali, com peruca, apito, faixa e gritos. Gosto do amor dito baixinho, ao lado, no pé do ouvido, só pra mim, bem de perto. Acredito nas sutilezas e nos detalhes. Eles me encantam e me convencem mais. E ainda deixam um gosto de segredo e cumplicidade, que só eu e você sabemos. Em alguns casos, é bem melhor não ter mais 15 anos.

Ilustração do Galvão em www.vidabesta.com

20.9.07

Tabela

O gosto era o mesmo de quando a professora lhe sabatinava a tabela periódica. Nunca sabia a resposta. Por mais que estudasse, aquilo fugia de qualquer lógica. Vinte anos depois o gosto voltava à boca. Boca não. Amargava no coração mesmo. Ou no esôfago, estômago, no tórax inteiro. Indefinido.

Ele a tocava como nem um outro. Nem só pelas habilidades motoras, que provavelmente fariam dele um pianista talentosíssimo. A capacidade de adivinhar o que ela queria impressionava. Antecipava seus desejos com tanta agilidade que ela temia ter pensado alto. Ah, se fosse fácil assim a tabela periódica.

Dançar era uma de suas maiores diversões. Dançar sozinha. A dois era sempre um esforço. Por mais que relaxasse, se flagrava buscando guiar seu par. Mas ele, vai entender, ele a fazia flutuar. Não por saber guiá-la tão bem, mas porque seguiam os mesmos passos sem ensaio algum. A abertura certa da boca no momento do beijo. A profundidade perfeita da língua. Os movimentos circulares exatos. A troca de posição de cabeças olimpicamente cronometrada. A intensidade da mordida, a força das chupadas. Braços nunca esbarravam, pernas não se chocavam. Os dedos sabiam onde estar e a que velocidade agir. Os corpos não tinham peso nem travas. Uma dança que fluía como patins no gelo. Deslizavam um pelo outro, davam piruetas, mortais e voltavam ilesos.

A dança terminava assim que ela fechava a porta da casa dele. Como num cofre, o quarto guardava todos os tesouros e segredos. Bastava sair dali que o código se perdia. Por mais que os beijos, as lambidas, os puxões e as dores fossem tão simétricas, aquilo era tudo que tinham um do outro. Queria acreditar que aquela perfeição era mais comum do que imaginava. Em qualquer esquina se encontra. Mas sem querer, já se via quebrando a cabeça para planejar um próximo encontro. Não era pra ser assim. Era pra acontecer naturalmente. Mas não. Exigia esforço, esboços, esquemas. Que nem decorar aquela tabela non sense.

Queria saber a resposta. Sódio, cálcio, ouro. Que diabos era aquilo? Por fim, decidiu criar sua verdade e acreditar no que convinha. Enfiou na cabeça, como quem enfia um elefante num envelope, que ele era um homem daqueles que as revistas femininas alertam sobre. O homem clássico, instintivo, que consegue separar sexo de sentimento. Sim, era isso. E se não fosse, não importava. Ia acreditar naquilo. Criar sua própria tabela, definir os elementos, escolher as siglas de uma forma que tudo fizesse sentido. Quem sabe assim aprenderia?

Deixaria tudo que ele dissesse de bom varar seus ouvidos, já que não sabia brincar de licença poética. Estava decepcionada por não ser a mulher moderna que acreditava ser. Irritava não saber responder a si mesma. Era pra ser simples, exato, um fato isolado, como eclipse que acontece às vezes ou um meteoro que leva anos pra passar. Mas queria mais, mesmo sabendo que isso não aconteceria. Complicado como a tabela.

Esperava o telefone tocar. Uma pizza, quem sabe. Um cinema, coisa boba. Não. É. É homem. Aquele das revistas. Gostava dela ali, naquelas poucas horas, entre aquelas quatro paredes, quando ela tocava aquela campainha com uma desculpa lindamente esfarrapada. Em seus braços relaxava. Fora deles, buscava a fórmula para explicar que peça da engrenagem impedia os dois de darem mais um passo. Gosto de tabela periódica. Maldita química.
ilustração de claudio frança.

17.9.07

A janela


Morou por muito tempo em casa, dessas com quintal, árvores, grandes janelas, poucos vizinhos. Acostumou a andar nua, ir de um cômodo ao outro sem se preocupar se havia olhos a segui-la. Por mais que sua mãe dissesse, Vista-se menina, seu irmão já é homem!, achava um absurdo que o irmão sentisse algo além de um amor que já conhecia desde a infância. E se ele sentir tesão por ela, que dane-se, pensava.

É claro que gostava da idéia de ser desejada, mas não chegava a ser exibicionista. Usava roupas básicas, seus atributos físicos eram comuns: peitos de tamanho médio, cintura proporcional ao quadril, que se movia discretamente quando caminhava. Não era totalmente inocente, mas não chegava a ser má. Quando visitava a amiga casada, esquecia de levar a roupa para o banheiro, saía de toalha e até chegar ao quarto sentia os olhares do marido que se perdiam no corpo dela. Por esquecimento também, mantinha a porta do seu quarto pouco fechada e dormia com camisolas transparentes. Percebia os passos de madrugada no corredor, do quarto ao lado para a copa onde ficava o filtro de água.

Quando foi morar sozinha, escolheu o sétimo andar. Nem muito alto, nem muito baixo. As janelas eram cobertas por finas cortinas brancas, voil era o tecido. Chegava do trabalho todos os dias no mesmo horário, por volta das sete da noite. Tirava os sapatos antes de entrar em casa, não gostava da idéia de levar sujeira para dentro do seu mundo tão bem cuidado. Pendurava a bolsa no cabideiro, logo na entrada. Ia direto para o quarto, acendia a luz. Despia-se. No edifício em frente, a luz do oitavo andar se apagava.

O prédio em que ela morava era modesto, apartamentos de apenas um quarto, pessoas solitárias habitavam os 11 andares. Ninguém se conhecia, não eram de fazer reuniões de condomínio. Vizinhos e estranhos. O morador do 601 notou que a luz do oitavo andar se apagava sempre no mesmo horário. Comprou um binóculo e passou a manter as cortinas cerradas. A essa hora, o morador do 601 recebia suas encomendas – o mensageiro nunca era o mesmo, tocava o interfone, subia, ficava 15 minutos e saía discretamente. O cuidado era necessário. Mas há um mês que essa rotina era seguida pela luz que se apagava no oitavo andar do outro lado da rua.

Ela chegou do trabalho no horário de sempre, mas foi impedida de entrar. A polícia havia cercado o local. Resolveu atravessar a rua e sentar na lanchonete em frente. Ouviu o balconista comentar com a mulher do caixa: - Mataram o Lucas, coitado. Quem é Lucas, perguntou ela, com leve curiosidade. – O morador aqui do oitavo andar, menino quieto, não fazia mal a ninguém. E tão dizendo que foi o morador do 601 daquele prédio ali, mexe com drogas, o safado. Pobre Lucas, morreu por engano. Ela terminou de tomar o suco, observou o morador do 601 ser levado pelo camburão. Subiu mais tranqüila por saber que o perigo não morava mais ao lado.

11.9.07

Relógio


O despertador tocou, como tocava todos os dias. Eram seis da manhã. Demorou a abrir os olhos. Queria segurar o sonho nas pálpebras ainda fechadas. Havia um gramado, toalhas quadriculadas com cestas de vime sobre elas. Era um parque na verdade. Ela andava numa bicicleta rosa, com uma cesta cheia de girassóis. Olhou então para trás. Falava com alguém, mas não via o rosto. Apertou mais os olhos na tentativa de enxergar quem era, até sentir as órbitas recuarem. Não adiantou. Abriu os olhos então, já cansada de mantê-los cerrados. Eram seis e quinze.

Levantou devagar. Precisava chegar ao trabalho apenas às nove, mas gostava de fazer tudo no seu tempo. Foi direto ao banheiro, fez um xixi demorado e continuou sentada na privada um pouco mais, tentando lembrar do sonho. Fechou os olhos e com eles assim mesmo, esticou a mão e alcançou o papel. Levantou-se, lavou o rosto e passou bem o sabonete, para eliminar qualquer resquício de creme. Tratou de enxugar cada gotinha, pois o vento frio fazia qualquer pingo congelar todo o corpo. Seguiu para a cozinha, preparou um café da manhã digno de hotel chique. Até ovos mexidos, que ela nunca comeu no café, preparou. Chá, leite, queijo branco, requeijão, manteiga. Abriu a geléia de pêssego caríssima e os biscoitos suíços amanteigados. Afinal, o que ela estava esperando para abri-los? Usou a toalha de mesa que só usava em festas, pegou as xícaras de porcelana, os talheres de prata e os guardanapos de pano.

Olha para o relógio. São seis e quarenta. Ela sorri diante da mesa arrumada. Faltava só mais uma coisa. Flores. Acelera o ritmo e corre para o banho. Em dez minutos já está vestindo um moletom e um casaco. Segue em passos acelerados até a esquina e compra as mais lindas tulipas que já viu. Volta feliz, sentindo o sol que batia em seu rosto camuflando o vento gelado.

Chega em casa e assenta suas tulipas num vaso de cristal abandonado. Decide então que é hora de acordá-lo. O quarto ainda estava escuro. Ela vira as persianas levemente, deixando as paletas em posição vertical. Uma luz ainda fraca entra pela janela. Senta ao lado dele devagar e se abaixa até aproximar os lábios de seus ouvidos. Canta sua música preferida bem baixinho e ele abre um sorriso, antes mesmo dos olhos. Ela diz que preparou um café especial e que o espera na cozinha.
Enquanto ele toma um banho, ela veste a roupa para o trabalho.

Às sete e trinta se encontram na cozinha. Ele diz que ela não tem jeito, sempre caprichosa. Ela sorri enquanto coloca Revolver pra tocar. Conversam sobre tudo que pretendem fazer durante o dia. Logo estão falando do próximo mês, próximo ano. Do apartamento novo, da viagem. Do filho. Ele insiste que esse plano poderia ser antecipado. Ela quer adiar. Diz que gosta de sua rotina, de ter seu tempo. De comprar as flores, de ter momentos só dela, perfumes só dela, dinheiro só dela. Ele argumenta que todos amigos já tiveram filhos, que começam a pensar que ela tem algum problema de saúde. Ela fica em silêncio. Sente culpa. Vergonha por se achar egoísta.

Quando criança sonhava em ter um casal. Na adolescência baixou para um. E quando adulta, esqueceu. Gostava de seu emprego, amava seu marido, nunca deixou os amigos de lado. Pensava se havia algo errado com ela por não querer mudar se ritmo de vida. Lembra-se do sonho de repente. Atrás de sua bicicleta vinha uma criança correndo. Percebeu que a pressão para procriar a perseguia a todo momento. O bom humor parece escapar entre uma colherada na geléia e um gole do chá. Queria que a vontade de ter um filho chegasse naturalmente. Já nem sabia mais se queria ou sentia-se obrigada. Desabafou e ouviu dele que precisava complicar menos. Tudo que ela não gostava era de complicar. Mas ninguém entendia sua decisão.

Ele deixa a mesa e ela permanece sentada. Lembra das amigas que engravidaram achando que era a hora. A maioria sem se importar com trabalho, o pai ideal, o momento. Diziam que o corpo pedia. O corpo ou a família, os amigos, o chefe, os vizinhos, a cabeleireira e todos mais que viviam perguntando 'e os filhos'? Tentou se escutar, entender por que diabos essa vontade não vinha. Será que era tipo termômetro da Sadia, que pulava de repente? Riu com o pensamento.
Foi interrompida pelo susto. Eram oito e vinte e três. Adorava relógios, Amava estar na hora, ser pontual. Mas esse tal de relógio biológico, ela não entendia de jeito nenhum.

31.8.07

Recomeço


Estava desnorteada. Sentia um mal-estar que ficava bem ali, entre o dedo do pé e o último fio de cabelo da cabeça. Olhava em volta e sentia-se uma poeira cósmica em um universo desconhecido. Ali ninguém a conhecia. Ninguém sabia de seu passado. Poderiam julgá-la de forma cruel pelo primeiro erro que cometesse. Para aquelas pessoas, não importava se ela sempre foi calma, legal, responsável. Ninguém sabia de seus filmes favoritos ou qual era sua última música preferida.

Para aqueles desconhecidos, que a olhavam como quem olha um bicho na vitrine, pouco importavam suas habilidades. Elas só existiriam a partir do momento que ela tivesse a chance de mostrá-las. Até lá, era um zero. Uma folha em branco, que cada um pintaria como quisesse. Não representava nada de importante. Apenas um mistério. Todas as piadas que sabia, o sanduíche de mortadela que aprendeu a fazer ou o último livro que leu. Ninguém ali sabia de nada.

Sentia saudade de seus amigos. Já sabiam de seus defeitos, suas qualidades. Mas era preciso levantar a cabeça e continuar seguindo por aquele longuíssimo corredor de poucos três metros até sua sala. Com o tempo, ela ia mostrar do que era capaz. Ia conquistar respeito e recolher méritos, como sempre fez.

À medida que entrava em sua nova sala, sentia o chão se construir a cada passo. Pensou em correr e fugir, deixar sua fama de boa moça para lá. Estava com medo, tanto medo que parecia que nunca ia passar. Mas lembrou de sua mãe dizendo que ela se sairia bem e foi até o fim. Seu coração batia tão forte que ela tinha medo de que alguém escutasse. Ocupou a mesa que agora lhe pertencia. Sentiu-se mais aliviada. Enfim tinha um espaço dela, ainda que num ambiente estranho.

Cada um de seus poros agia como um sensor. Ela sabia que estava sendo observada. Olhou em volta buscando mostrar atitude e esconder um pouco do acuamento. Um pensamento leve passou pela sua cabeça e ajudou a relaxar a musculatura das costas. Imaginou que um dia, um daqueles estranhos que não lhe diziam nada, se tornaria um grande amigo, visitaria sua casa e lancharia com ela.

Alguém bate à porta. Uma senhora alta, de terno azul marinho ligeiramente antiquado, coque alto e impecável.
- Com licença? Posso roubar só um minutinho? Gente, gostaria de apresentar Adélia. Esse é o primeiro dia dela aqui. Dêem um bom-dia bem alto de boas vindas.
Ela corou de vergonha, mas respondeu ao sonoro bom dia da 5º série C. Algum engraçadinho ainda disse ‘ficou vermelha’. Todos riram. Ela adorou. Sentiu-se menos estrangeira em seu novo colégio.
ilustração do galvão em www.vidabesta.com

27.8.07

Você aceita?

Desculpe-me, mas não possuo a tecla stand by. Não dá pra mim, não sei ficar pronta para ser ligada a qualquer momento, quando você bem entender. Ou estamos ligados e veremos juntos os melhores programas, seremos os protagonistas dos filmes mais divertidos, viveremos com ação e emoção, comeremos pipocas com guaraná, criaremos o roteiro e iremos dirigir todas as cenas, ganharemos prêmios por nossas participações ou não irá funcionar pra mim.

Alguém pode me explicar como se vive assim, sem que seja dito tim tim por tim tim qual é o plano que iremos seguir? Ah, claro, você prefere o improviso. Estamos improvisando já faz tempo, e estou bem perto de bater no seu ombro gentilmente e dizer: ou dá ou desce, querido. E não me entenda mal, não quero casar na igreja, no cartório, no parque de diversões, na fazenda da sua mãe, no templo budista. Não é disso que estou falando. Pelo contrário, a festa de casamento é a parte mais fácil, e a mais dispensável de toda a nossa história. Definitivamente não tenho o menor interesse em mostrar pra todo mundo que somos um casal muito animado, que iremos fazer do nosso casório um grande acontecimento, que todos irão beber, brindar, subir nas mesas, fazer declarações cheias de entusiasmo, que será o dia mais perfeito de nossas vidas. Não, não quero nada disso.

Não quero pedir presentes aos amigos, não quero que eles reclamem das músicas ou do calor ou do frio ou dos salgadinhos. Não quero que eles usem uma gravata para me ver desfilando num corredor infinito vestida de branco e com dois dedos de corretivo no rosto. Dispenso tudo isso com um grande prazer pelo simples motivo que isso é muito fácil de se conseguir, principalmente quando se tem dinheiro.

Eu quero é saber o quanto de vontade nós teremos para seguir em frente. Chega desse papinho de viver o presente, isso era ótimo quando tínhamos 17 anos e nossa única responsabilidade era passar no vestibular. Minha pergunta é: como se chama esse negócio que estamos vivendo? Em quais planos posso incluir você? Em quais deles você quer participar ativamente? Vou simplificar para você: quer ter filhos comigo? Quer dividir comigo bens materiais como apartamento, carro, sítio na montanha, outro apartamento para investimento, fundo de renda fixa, ações? Quer montar um plano para morarmos fora do país por 5 ou 10 anos? Quer pensar em nossa aposentadoria? Quer ser meu sócio naquela idéia de ter um café-livraria-galeria de arte? E por último, é muito difícil para você responder sim ou não em todas essas perguntas? Sim ou não?

Deixa que eu adivinho. Você não tem a menor idéia de como quer sua vida daqui a cinco anos. E também não quer que ninguém diga o que você tem que fazer. Mas ao mesmo tempo você quer companhia para ir domingo à noite ao cinema. Mas não consegue pensar em nada que exija mais raciocínio do que a programação de um fim de semana prolongado. O problema está aí: eu preciso saber. Porque gosto de me programar. É isso que me faz pensar que todos os problemas valem à pena. Pensar que iremos para a República Dominicana me dá forças para agüentar cliente chato na minha orelha. Imaginar que vou com você pra Nova Zelândia me impede de comprar bolsas e sapatos a mais só porque estão em liquidação. Amar você é isso: ter um motivo para viver e querer viver mais.

21.8.07

Amor de verdade



Olho por aí e vejo tanta gente buscando um amor. Aquele lá que vai salvar a vida, dar um novo significado até para as menores coincidências do mundo. Um amor que vai tirar remela do seu olho pela manhã, comprar um presente no meio da semana sem motivo. Fica todo mundo esperando aquele alguém que vai chegar no escritório, durante o horário de trabalho, só pra dar um beijo.

O amor imaginado tem pequenas brigas, porque sexo de reconciliação é sempre coisa de louco. Tem dias ensolarados na praia e chuvosos no cinema. Tem conversas sobre a relação que realmente levam a mudanças concretas, sem terminar com brigas intermináveis sobre... sobre o que mesmo?

No meio dessa caçada à metade, à alma gêmea e outros substantivos bregas, desse tiroteio de intenções desesperadas, o amor de verdade é subestimado. Fica lá no cantinho, enquanto a maioria procura por ele em placas de néon. Amor não é um show da broadway. É cachorro-quente na esquina. É milk-shake com dois canudos. E do outro lado, nem sempre é quem esperamos.

E você é a prova disso. O amor é quase uma terceira pessoa entre nós, de tão presente, tão tateável. E como tudo que é real, também trouxe dor. Abrimos grandes feridas, expusemos carne, ossos e nervos. E não eram de aço. Mas até isso serviu pra mostrar que nunca deixou de ser amor.

A realidade sempre se manteve sob nossos pés. As amigas inseparáveis, com empregos de usar tailleur, filhos lindos e viagens exóticas eram coisa de filme. Nós ficamos com as quedas em escadas rolantes, os cabelos desajeitados da adolescência, as risadas descontroladas nos lugares mais inapropriados, as descobertas embaraçosas, as vozes engraçadas, as piadas que só nós entendemos. O mundo tem bilhões de pessoas e ninguém, além de nós, vê sentido ou graça nas nossas piadas. Não é lindo isso? Cantamos parabéns mais de 15 vezes, vimos namorados indo e vindo, gatos e cachorros nascendo e morrendo. Falhamos, sentimos o coração se partir com tanta força que chegava a dar um terremoto no corpo todo. Mas nunca deixamos de nos amar, mesmo quando achamos que tudo havia acabado.

Já disse eu te amo algumas vezes na vida, mas quando penso em nós duas, questiono alguns amores. Conhecer você fez eu me conhecer melhor. Me sinto acolhida por você, que nem comer broa de milho de avó e dormir em lençol com cheirinho de casa. Você me conforta por existir, mesmo que longe, mesmo que ocupada, casada, chateada. Não temos mesmo sangue, nunca fizemos sexo, não dividimos contas. Não quero ter filhos com você, nem esquentar meus pés nos seus. Mas o outro canudinho do milk-shake sempre vai estar lá pra você.
ilustração em vidabesta.com

16.8.07

A carta que não mandei

Foi engraçado a forma como achei que você me olhou quando fomos apresentados (novamente) um para o outro. Enquanto nos cumprimentávamos, pensava: já nos falamos antes, sei quem você é, sei dos lugares onde você trabalhou. Não chegava a ser sua fã, mas tinha uma simpatia por você que não sei de onde vinha. Talvez pelos amigos em comum que temos e que sempre falaram bem de você. Talvez por você ter um olhar ligeiramente estrábico, que pode ser um charme, dependendo de quem vê.

Mas quis acreditar que você me cumprimentou com relativa empolgação. E fiquei feliz por isso. Um tempo depois recebi seu e-mail, que tinha no assunto uma numeração. Era o primeiro – e no instante seguinte depois de lê-lo, imaginei que iríamos começar uma sistemática troca de informações sobre nós mesmos, sobre nossas vidas, nossas opiniões, nossas expectativas e tristezas. Em horas como essa, detesto pertencer ao estereótipo feminino. Mulheres em geral criam situações absurdas somente com uma troca de olhares. Se imaginam namorando, tendo alguém para levar nos almoços de família, viajando para uma cidade romântica no sul da Itália. Enquanto para o homem aquela troca de olhar não passa de um queria te comer hoje à noite.

No meu caso, tenho uma explicação. Tudo bem se não quiser saber e parar de ler neste instante. Aprendi a lidar com a rejeição. Claro que ela me afeta, mas consigo voltar ao normal em um ou dois dias. Aguardei ansiosamente por outro e-mail seu, e desejei que o próximo fosse sair da esfera de assuntos amenos e começar com linhas mais densas e interessantes. Mas não, a resposta que veio foi ainda mais distante e sem uma pista sequer de todo aquele interesse que supostamente imaginei que tivesse tido por mim.

Vou tentar explicar por que isso acontece. E provavelmente não acontece só comigo. Deve ser mais comum do que imagino. Vivo em um relacionamento que já não sei onde eu começo e onde termino. Me misturei tanto com aquele que divide comigo a mesma cama, a mesma mesa, o mesmo sofá que cedi a algumas convicções, adquiri outras, mas com certeza não sei mais me descrever. Antes de termos uma relação tão íntima com alguém deveríamos registrar em cartório aquilo que somos. “Declaro que sou o que sou e que só irei mudar diante de grandes vantagens”. Mas não é assim que acontece, você sabe bem. E é aí que você deveria entrar. Quis que você fosse o herói da minha história, que me resgatasse e fizesse me lembrar de quem fui.

Não me decepcione dizendo que sou eu que tenho que dar um basta se não estou feliz. Não quero que você seja pragmático, isso é para ser uma carta romântica. No momento em que nos falamos, que trocamos o primeiro e-mail, não me importava se você era casado, se tinha filhos, se estava apaixonado por sua mais nova amante, se queria deixar o emprego e abandonar tudo sem avisar ninguém. Desejei somente ter alguém para me desconcentrar, alguém que mostrasse um verdadeiro interesse por mim, alguém para me fazer pensar diferente. Nesse momento me passa pela cabeça se você também não queria o mesmo de mim. Se agora estamos os dois pensando: por que não tivemos coragem para tentar?

14.8.07

Flagra


- Adolfinho. Você ouviu isso?
- Ouvi nada não, mozin, fica calma.
- Ai, Adolfo, sei não, eu juro que ouvi o rangido da porta.
- Quiqui, não tem ninguém em casa.
- Adolfo, tem uma sombra no corredor.
- Santo flagra.

Não houve tempo para nada. Nem mesmo para se cobrirem. Em questão de segundos, a mãe de Adolfo adentra seu quarto. A cena é dantesca. Era impossível saber qual perna era de quem. A expressão de terror de dona Miriam era a mesma de quem está do outro lado da rua e vê seus três ônibus passarem ao tempo. Pânico, desespero, falta de sorte.

(grito de aproximadamente dez segundos ecoa pela casa.)
- Meu filho! O que é isso?
- Mãe, eu posso explicar.
- Não tem como. Até porque nunca vi posição igual a essa.
- É, a gente que inventou. Mas fica calma, mãe.
- Dolfinho, como é que vou ficar calma com vocês dois pelados na minha caminha, esfregando essas... essas... nádegas suadas no meu lençol de seda?
- Mas dona Miriam, a senhora tem que entender nossa situação.
- Eu estou entendendo bem. Principalmente a situação do meu filho. Tampa seu pintinho, Dolfinho, que mamãe fica constrangida de ver ele assim.
- Mas a senhora há de convir que somos prevenidos. O pintinho dele está coberto, viu só? Mostra aí, Adolfin.
- Pára, Quiqui, pára.
- Mas é verdade, num é? Mostra logo esse treco, sua mãe já viu isso mil vezes.
- Ah, meu deus!
- Como a senhora percebeu, ele está devidamente protegido. Com o susto ele ficou meio recluso, com carinha de sharpei... tadinho. Mas a borrachinha tá presa ali.
- É mãe, ela tem razão.A gente se preveniu. Engravidar ela não ia.
- Mas que cara de pau... não existe justificativa pra essa sodoma e gomorra. É uma falta de respeito.
- Falta de respeito não é não, dona Miriam. Nós forramos sua cama com essa toalha de praia, pra não sujar seu lençol de seda com Nutella. Nós fechamos a cortinas pros vizinhos não acharem que era a senhora se divertindo. Nós tiramos o quadro com a imagem de Jesus da parede, pra ele não ver nada.
- Ele vê tudo, minha filha, vê tudo! Não merece, mas vê, coitado.
- Coitado é o Adolfo, dona Miriam. Sabe que ele fica com dor nas bolinhas quando a gente fica sem transar?
- Deus do céu!
- Fala pra sua mãe, Adolfo, fala que você fica todo dolorido.
- Pára, quiqui.
- Larga de agir que nem menino! Ela já pegou a gente furunfando mesmo. Aja que nem homem. Agorinha mesmo você não era o peludo selvagem que ia explorar a gruta? Agora está com medo da sua mãe?
- Tá bem, tá bem. É verdade, mãe. Se eu passar um dia sem sexo, o negócio aqui vira panela de pressão. Fico que nem aquele seriado, o 24 horas. Pura tensão.
- E tem mais. A senhora sabe o que é ir pra motel? Olha, dona Miriam, tem que ser muito guerreira.
- É verdade, mãe. Dia desses a gente foi brincar na banheira e um bolo de cabelo saiu do...
- Adolfin! Poupe-me, meu filho.
- A senhora que tem que nos poupar desse moralismo. Tem que agradecer por seu filho arrumar uma namorada direita que nem eu. Poderia sair por aí pegando um monte de louca. Não falta golpista por aí querendo um Dolfinho Neto.
- É mesmo, mãe. A Quiqui é show. E olha o corpo dela. Mostra o abdominal pra mamãe, Quiqui. Né bonito, mãe?
- ... isso é demais pra mim. Eu preciso me sentar.
- Senta aqui, dona Miriam. Dolfo, tira o vibrador daí.
- Aaahhh, santo, santo senhor!
- Calma mãe, isso é de mentira. Ó, pega aqui, é de plástico, viu?
- Ô, senhor...ô senhor...
- Tira isso de perto dela, Adolfo, ela sabe que é de plástico. Ia ser o quê? Um piru decepado?! Se acalma dona Miriam. Olha, eu sinto muito por isso. Mas a senhora tem que ver que era a única solução. A gente estava sem grana pra motel. Não ia ser no carro, a senhora sabe como é perigoso.
- É, isso é... está feia a coisa.
- Então. Aí a gente chegou aqui e não tinha ninguém em casa. E essa sua cama, sogrinha, que delícia. Nunca vi colchão igual.
- É? Você gostou? Também gosto... é macio... obrigada.
- Gostei não. A-mei. E não machuca o Adolfinho. A senhora sabe que o joelho dele é podre. Mas nesse colchão a gente faz tudo que é posição e ele fica sem dor.
- Ah, que bom, meu filho.
- E assim, sem querer abusar da nossa intimidade, a decoração do seu quarto é um sonho. Se eu dormir e sonhar com um quarto, puf! Lá vem o quarto da senhora na minha cabeça.
- Assim eu fico sem graça.
- Bom que assim ficamos empatadas, num é? Dona Miriam, vamos fazer o seguinte? Eu e Adolfo vamos tomar um banho, passar uma água no long john...
- Londjôn?
- O apelido do vibrador. Guardar as bolinhas tailandesas... puxa, que situação... desculpe esse arsenal de brinquedinhos safados, mas hoje é aniversário de namoro. Eu queria deixar o Dolfin feliz. Me sinto tão envergonhada agora.
- Meu amor, fica assim não. Mamãe entende.
- Eu só queria fazer você feliz, amor. Olha a confusão que deu. Eu sempre faço tudo errado.
- Ô, querida, não precisa disso. Olha, eu vou fazer um chá de camomila pra todos nós. O que acha?
- Boa, mamãe. Eu vou ficar aqui com a Quiqui, pra ela se acalmar.
- Aproveito e asso aqueles biscoitinhos de polvilho que vocês gostam.
- Você é demais, mamãe.
- Deixa pra lá, meu filho.
- Mamãe!
- Oi?
- Fecha a porta quando sair?

ilustração do galvão: www.vidabesta.com

9.8.07

Mais que nada


Eu sou só mais uma e mais nada. Não tem nada de especial em mim que não tenha igual em outras centenas de milhares de pessoas. Não sou simpática nem carinhosa nem amiga nem preocupada nem interessada nem boa, sou o nada, sou igual a você que também só quer ser admirado. Sou exatamente igual a você que tenta falar bonito para parecer inteligente. Que de vez em quanto cita um autor da moda, fala da banda mais nova, lembra da cena do filme mais premiado em Berlim. É tudo teatro, pior, é um circo de aberrações sendo expostas de acordo com a necessidade de todos esses miseráveis que são iguais a mim e a você. Pode sentir pena de mim, pouco me importa. Não pense em nada para me falar, vai ser inútil. Engula suas palavras bonitas, enfie a mão que quer me acariciar no seu cu. Me deixe aqui, em paz, não tente ser bom para mim.

Não quero ser mais nada para você. Não quero retribuir seu recado cheio de afeto, não quero seu elogio sincero, me divirto mais com sua ironia e com seu cinismo. Vou copiar quem eu quiser, não quero parecer autêntica, não quero ter estilo só porque uso um sapato amarelo de corações brancos. Não quero agradar mais ninguém, não espere meu ombro amigo, não deite no meu colo, não estenda a mão para mim, não se apóie no meu corpo, não espere calor do meu abraço. Eu sou o nada e é só isso que tenho para você. Eu sei que não engano nem você nem ninguém, sorrio para receber um sorriso de volta, dou flores para ganhá-las, pago para que um dia paguem para mim também. Que mal há nisso? Não me interessa mais, não vou procurar a verdade porque ela não existe.

Verdade, felicidade, amor. Um trio imaginário que suga sua vida inteira, que rouba todas suas energias fazendo você acreditar que um dia vai encontrar o pacote com tudo isso ali, bem na frente da sua porta, sem que você tenha que ter feito das tripas coração para conseguir encontrar. É mais fácil escalar o Everest, mergulhar no Mar Morto, ficar à deriva na Antártica do que encontrar o que você acha que podemos dar um ao outro. Fique longe de mim enquanto você pode, porque aqui do meu lado você vai acabar sendo preenchido por todo o meu vazio. Vai dividir comigo o gosto amargo, as dores no estômago, o tremor nas mãos, a ânsia de vômito, o suor gelado da nuca, o cheiro acre das axilas, o medo e o horror dos meus olhos. Vá embora e me deixe de uma vez por todas porque agora nem a mim que sou nada você merece.

6.8.07

Licença


Pode ser que você mude de idéia amanhã. Ou talvez eu mude. De repente vamos acordar e ver que não existe mais motivos pra tanta coisa. Mas por enquanto, posso fazer planos com você?

Mesmo que você vá embora pra sempre no mês que vem, me troque por uma loira gostosa ou uma feia super esperta, posso falar de futuro? Não quero que você pense que sou uma solteirona desesperada ou uma garota ingênua demais. Uma dessas que quer realizar o sonho do príncipe com tanta força que coloca isso acima do próprio relacionamento. Quero só dividir tudo que puder com você, enquanto esse momento existir.

Você não precisa pagar minhas contas, lavar minhas roupas ou emprestar seu cartão de crédito. Muito menos, ao fim de cada frase relacionada ao futuro, dizer que era tudo brincadeira. Isso não é um contrato pra assinar embaixo. “Atesto aqui que todas minhas promessas podem ser quebradas num futuro indeterminado, caso mude de idéia. Atesto também que algumas frases melosas podem ser mero exagero, ditas apenas para fomentar o romance”. Eu sei que funciona assim e aceito as condições.

Pode parecer sem sentido falar onde jantaremos quando completarmos cinco anos juntos. Não tem problema. Quero que seja só isso. Uma conversa de beira de ouvido, despretensiosa. Coisas ditas num domingo frio, com televisão ligada em qualquer lixo, porque simplesmente temos preguiça de mudar de canal. Segredos ditos entre uma soneca e outra, no meio do café ou durante um abraço embolado no lençol. Verdades que podem durar um segundo ou um minuto, mas ainda que temporárias, verdades.

Tudo isso é meio adolescente mesmo. Pensar em nomes pros filhos que só virão em anos, escolher o modelo de sofá pra sala. Brigar pela cor da cortina do nosso quarto quando nem moramos juntos parece estúpido. Mas é tão gostoso planejar tudo com você, saber tudo que você pensa sobre as maiores inutilidades do mundo.

Quando eu perguntar se vamos acompanhar as Olimpíadas de 2012, diga que sim, sem nem perguntar onde vai ser. Nem eu sei onde vai ser. E tudo bem se até lá mudarmos de idéia. O importante é que agora você queira estar lá comigo em cinco anos. Ainda que em cinco anos desista. Eu quero discutir qual raça de cachorrinho vamos adotar. Se é que vai ser um cachorro e não um gatinho. Decidir que flor plantaremos no jardim ou se o quarto deve ter uma televisão. Eu voto em não. E você? Pode falar, fala sim. Sem medo de nada disso acontecer e nos sentirmos dois idiotas. Sentir saudade dos planos que nunca se realizaram é uma das coisas que mais doem quando tudo acaba. Mas prefiro isso a não poder brincar de futuro com você.
ilustração em www.vidabesta.com

1.8.07

Toda ouvidos


Na hora que ele me ligou, já passavam das 10 da noite. Era sábado e quanto mais rápido eu dormisse, menos ficaria pensando no que não fiz e nas oportunidades de conhecer pessoas (homens, na verdade) que eu desperdicei. Já estava de camisola, deitada com meu abajur ligado tentado me concentrar na revista que comprei de manhã na banca ao lado da minha casa.

- Oi, já tava dormindo?
- Não, tava lendo...
- Posso ir aí conversar com você?

Ele tinha brigado mais uma vez com a mulher. E, como de costume, vinha me contar ponto a ponto o que havia acontecido. Na verdade, ele precisava se e me convencer de que não estava totalmente errado. Precisava do ouvido atento de alguém que o amasse incondicionalmente.

- Claro, pode sim.

Falei sem muito entusiasmo, na verdade tive que arrumar muita de disposição para apagar a luz do abajur que me dá conforto e transforma meu quarto num lugar mais interessante, com foco somente no que é importante, minha revista, meus livros, o jornal que não deu tempo de ler durante o dia. A pouca luz esconde as imperfeições das paredes e as minhas também, mas tive que apagá-lo, acender a luz do quarto e trocar de roupa para não deixá-lo culpado por me ver de camisola – por que tenho que pensar em tudo? Fui pra cozinha, cortei queijo, fiz uma pasta para acompanhar as torradas, coloquei a cerveja para gelar, levei o som pra varanda. A campainha tocou.

- Oi, tá com fome?
- Sim, e foi por isso que a gente brigou.
- Ué, você não pode sentir mais fome?
- Não, não foi isso. Você acha que estou muito desarrumado?
- É, não tá o homem mais bem-arrumado do planeta, mas também não está assustando ninguém.

Ele abre a cerveja, pega um pedaço de queijo, senta na varanda e começa a falar, falar, falar. Por horas fico apenas olhando pra ele e pensando de onde vem tanto amor. Prefiro não dizer nada, ele é incapaz de mudar. O que custava ele tomar um banho, trocar de roupa e passar um perfume para deixá-la feliz? Muito, porque ela não consegue entendê-lo como eu. Ele sofre de falta de ser aceito do jeito que é. Psicólogos chamam de baixa auto-estima. Ele quer apenas matar a fome, com a mulher que ama, e que se dane a bermuda, o chinelo e a camisa de malha com estampa de propaganda. Nada disso pra ele interessa. Mas ela não compreende e desfaz dele no mesmo instante: “Sair assim com você? Não vou mesmo.”
Ele, que não sabe conversar e se fere facilmente, fecha a cara, deixa ela em casa e busca em mim algum tipo de alívio.

Depois da segunda cerveja ele começa a dar sinais de cansaço. O queijo acabou, a carne que esquentei também. Ele se senta no sofá, liga a TV, vê um pouco da reprise de um jogo qualquer. Enquanto eu jogava fora as latas de cerveja e limpava a varanda ele voltou para o seu mundo. Estava satisfeito por ter comido, bebido e desabafado. Terminei de lavar as louças na cozinha. Ele havia desligado a TV e já estava na porta, bocejando, com chave do carro balançando na mão.

- Amanhã a gente se fala, tá?
- Tudo bem...
- Um beijo, boa noite.
- Tchau, pai, boa noite.

27.7.07

Surpresa



Shhhh. Faz silêncio aí pra ela não escutar. Nem respire, porque senão ela pode ouvir e a surpresa vai pra cucuia.

Hoje é aniversário de alguém que amo tanto, tanto, tanto, que nem cabe tanto tanto no texto. Se eu tivesse que escrever sobre uma amizade perfeita, não conseguiria descrever tão bem o que tenho com ela. Ou sei lá, vai ver que tem mesmo isso de outra vida e, antes da cegonha me trazer de novo pra esse mundo, eu virei pra algum anjo do setor de relacionamentos e disse: só reencarno sob essas condições. E lá estava ela nas primeiras condições. Junto com não ter celulite. Mas essa não foi atendida.

Somos tão amigas que já nem sei se o nome disso é só amizade. Parece até uma definição pequena perto de tudo que sinto por ela. Nos escolhemos por livre e espontânea vontade para dividir tudo que acontece em nossas vidas. Até que tentamos manter uns segredos, mas as revelações são fatais. E geralmente, engraçadíssimas. Temos nossos momentos de privacidade em que, naturalmente, nos afastamos. Seja por trabalho ou até por falta de assunto, porque às vezes acontece mesmo. Mas nada que uma tarde num café não resolva. Aí tome planos, piadas, conselhos e risadas. Momentos tristes também acontecem, claro. E não há nada que uma não tente fazer para agradar a outra nessas horas.

Shhhhhh. Assim ela vai ouvir. Ela ainda não leu isso, nem sabe que estou colocando aqui. Nem é dia de postar. Leiam baixo pra ela não desconfiar.

Ela nem é desconfiada assim. Mas tem uma intuição pavorosa. Parece minha mãe, sempre acerta o que eu tô aprontando. De repente é mesmo intuição de mãe, como ela é. Uma supermãe. Quando ela se questiona sobre isso, fico pensando da onde tirou essa idéia. Garanto que o filhote não questiona isso. E além de mãe, ela é empresária (chique isso, mas verdade), escritora talentosa, mulher vaidosa, cuidadosa, corajosa e surpreendente. Ah, e também acha tempo pra ser minha amiga.

Ela merece tudo que ama o tempo todo. Merece que pessoas se joguem no caminho pra tampar poças de lama. Merece eunucos (ou não, vai saber) abanando ela com folhas de palmeiras. Merece aquele biscoito de amêndoa, que ela ama, todo dia na sobremesa. Merece todas as roupas da Dress to Kill, sapatos da New Order, bolsas da Clo. Merece um celular que funcione direito, porque os últimos têm sido um cocô. Merece clientes que escutem e considerem tudo que ela diz. Merece a confiança e o respeito de todos. Mais que isso, o reconhecimento. Merece ser regada todo dia, colocada no sol e adubada, como florzinha que é.

Pronto. Agora vocês contem até 10. Mas bem baixinho. E assim que ela acessar essa página, respirem fundo e depois gritem com todo ar que tiverem no pulmão “ feliz aniversário, docinho!”.
ilustração de claudio frança.

25.7.07

Rehab


Meus olhos se abrem. E parecem ser a única parte do corpo capaz de se mover. O corpo está pesado, apesar de eu ter perdido uns bons quilos ultimamente. Sinto os floquinhos de espuma do travesseiro na cabeça e as molas do colchão pressionando as costas. Estou presa à cama. Não tem algema, corrente, corda. Não tem cola nem velcro. Tudo que me prende a essa cama é sua lembrança.

Poderia me esforçar. Contar um, dois, três e já, levantar daqui num impulso, fincar o pé direito no chão e tentar me convencer de que hoje superaria tudo. Mas não.
Hoje não saio daqui. Vou deixar cada lembrança sua me estapear, nem que pra isso precise me amarrar, perder o controle, acordar os vizinhos e assustar o gato. Preciso de toda energia que tiver pra não esquecer nem um detalhe seu. Quero reviver cada momento com tanta força que eu precise esticar as mãos pra ter certeza de que é apenas um pensamento, e não você diante de mim.

Quero lembrar da cor que seu cabelo fica no sol. Daquela pinta no seu queixo, que me fazia repetir a mesma piada mil vezes, enquanto passava o dedo sobre ela. “Tem comida aqui. Ah não, é uma pinta”. Você sempre ria. Quero reprisar diálogos nossos, relembrar suas reações. Quero me concentrar a ponto de sentir o cheiro que tem seu pescoço e o peso do seu abraço, quando me apertava forte depois de quase me matar fazendo cosquinhas.

Hoje não vou comprar sapato, caminhar no calçadão e brincar com cachorrinhos que passam. Hoje não vou comer nem uma barrinha de chocolate, engolir o choro. Não vou assistir a um drama para dizer que é pelo filme que estou chorando. Hoje fico aqui, na cama. Estou disposta a viver as piores 24 horas da minha vida. Quero juntar nesse dia todas as sensações que você ainda provoca em mim até quase explodir.

Estico as pernas, viro, me cubro, me descubro. O desconforto, que antes era só no coração, agora vai pro corpo todo. As horas passam e a boca tem um gosto amargo que já nem sei se é de falta de comida ou de você. O telefone toca. Não atendo. A campainha toca. Não atendo. Hoje não atendo nada. Não vou ler jornal, não vou jogar buraco, não vou me maquiar. Hoje não vou inventar de pintar o cabelo na esperança de que tudo mais mude.

Cansei de perder a luta contra essa dor. Não agüento mais explicar o que aconteceu com você pra todo mundo e fingir que não estou péssima. Eu não quero mais brincar disso. Quero um ponto final, nem que eu surte nessa cama. Hoje vou ser otimista. Vou sofrer o máximo que puder pra amanhã não sobrar mais nada pra sentir.


ilustração em www.vidabesta.com

19.7.07

Pobre amor


Vamos fazer assim, eu tiro você por algumas horas desse subúrbio onde você vive e levo-o para jantar em restaurantes onde nem o nome das entradas você vai saber pronunciar. Em troca você me apresenta sua família simples e ordinária que ainda ri vendo videocassetada afundada no sofá de couro falso.

Eu ensino você a beber vinho de verdade, em taça de cristal, na temperatura certa. Enquanto você escuta Miles Davis e John Coltrane, fica sabendo o que penso do cinema alemão. Mas fique sabendo também não vejo a hora de você me levar para mais um inferninho e encontrar com seus amigos de brincos espalhados pelo corpo e amigas de cabelos multicoloridos. Me ensine o refrão desta banda que nunca ouvi dizer, me dê um beijo com gosto de cachaça, esfregue a barba por fazer no meu rosto.

Me leve para acampar na beirada de uma cachoeira, mas por favor, não me faça ouvir reggae. Prometo não reclamar dos hippies tocando violão e fumando maconha envolta da fogueira, nem dos mosquitos, nem de ter que fazer xixi no mato. Mas deixe que eu leve você para conhecer uma cidade cheia de referências históricas, com museus, galerias de arte e livrarias em prédios monumentais. Vamos a um café, beber água com gás, pedir um expresso com creme e conversar sobre amor e sonhos.

Pegue um ônibus e venha até minha casa, use aquele perfume sem graça, coloque o tênis adidas que você teve que dividir em cinco vezes, vamos a pé e de mãos dadas até a sorveteria. Você paga dessa vez, com os poucos trocados tirados da sua carteira surrada e sem cartões de crédito.

O que vamos ganhar com isso? Não tenho a menor idéia. Talvez orgulho de cada um ser do jeito que é. O melhor de tudo vai ser comemorar cada descoberta livre de preconceitos e de roupas. Prometo deixar você me despir de tudo e me vestir apenas de você.
Ilustração: Claudio França

13.7.07

Tentativa

Ah, a eterna guerra dos sexos. Que tema bom, rende discussões e porradas. Esse assunto anda rondando minha mente que nem mosquito de madrugada. Terminei de ler o livro “Infiel – notas de uma antropóloga”, de Mirian Goldenberg. Adorei e recomendo. Foi docinho quem me emprestou. “Ou ele ajuda ou ele te desespera pra sempre”. Ajudou.

Vim pra Vitória com sete anos. Menininha cabeçuda, com um cabelo que minha mãe insistia em pentear e eu, para não ficar com carinha de Maria Bethânia, insistia em prender. Além de mim, existiam poucas meninas no prédio. A solução era brincar com os meninos. Joguei futebol e arranquei o tampão do dedo várias vezes chutando o chão. Por vezes era até cabeça de chave. Pulei muro e subi no telhado incontáveis vezes para pegar a bola. Jogava basquete com eles, tênis, falava bobagens e ouvia também. Chegava imunda em casa e corria pro Atari, onde também competia freqüentemente com os garotos. Cresci assim, sem frescura.
Até o dia em que, em uma festinha de criança, a aniversariante colocou o microfone na minha boca, para que eu, como todas as meninas da festa, acompanhasse a bela canção She-ra, da Xuxa. Eu era a única que não sabia a letra. Mandei uma embromation, fingi espirrar ou tossir e até que escapei bem da humilhação. Mas senti que seria desmascarada caso vacilasse novamente. Percebi nesse dia que, se quisesse conviver com as meninas, teria que gostar de Xuxa e Hello Kitty. Pelo menos para uma menina de 12 anos, foi assim que interpretei o mundo.
Os esforços foram válidos. Mas nunca cheguei a gostar de Hello Kitty. Acho engraçado só quando ela vem vestida de coisas como policial ou médico. Lembro do Villagge People. Descobri que ser menina é legal. Cortar o cabelo bonitinho, ser limpinha, exigente, multifuncional. Entendi que para ser feminina não precisava ser fresca. Mas sempre ouvia as reclamações femininas com certa desconfiança. Algumas queixas eram exageradas. Lembrava dos meninos e pensava “pra eles, essas reclamações não fazem o menor sentido”. E hoje, diante de tudo que vejo, ainda acho uma perda de tempo ficar acusando homem de toda nossa infelicidade.

No livro, entre tantas outras coisas, Mirian fala dos conflitos atuais entre os sexos. A mulher que mostrou que pode atuar em casa e no trabalho e o homem que se sentiu sem função por causa disso. A mulher que pede demais, o homem despreocupado. O paradoxo entre excesso de mulheres e excesso de exigência por parte delas. Tudo isso fez uma impressão que tenho faz tempo ganhar força: as mulheres esperam demais dos homens. E me incluo nisso, apesar de tentar controlar.
Dar a um homem o maior foco da nossa vida é uma burrice. Mesmo dizendo que somos modernas, acabamos caindo na grande armadilha de querer aparar arestas na relação – que muitas vezes só nós vemos -, e nos perdemos. Ficamos querendo adestrar, ensinar, mas eles não são assim. Funcionam numa freqüência diferente. E o melhor a fazer é encontrar um que opere numa sintonia próxima. Não venho aqui defender o desleixo deles, os esquecimentos e pequenos vacilos. Mas eles são diferentes. Claro que os homens não são todos iguais, mas vamos admitir que a raça apresenta um padrão de comportamento. Por iso, é melhor se preocupar mais com a novela do que com a toalha molhada em cima da cama.

Ninguém deve levar desaforos pra casa, admitir violência física ou moral. Fora uma mãozinha amarrada aqui ou acolá, com consentimento. Mas danem-se as pequenezas chatas do dia-a-dia. Ele saiu com aquela camisa furada no sovaco? Vou é rir. Ele insiste em lavar o cabelo com sabonete? Vou cantar ‘Olha a nega do cabelo duro’ pra ele. Só vou me irritar com coisas realmente importantes, com um desconto na TPM.
Esperar que a felicidade venha da plenitude de uma relação é fracasso na certa. Tenho trabalho, família, bichos de estimação, planos e mais planos. E amigas e amigos, cinema, idéias, livros. Os homens não podem suprir tudo que queremos, assim como nós não podemos dar conta de tudo que eles querem.
Não é questão de passar por cima de valores, mas de relaxar mais, de dar mais importância a outras coisas. Porque não adianta tentar convencê-los de que falar “esse bolo ficou meio doce” é uma ofensa monstruosa pra quem passou horas espalhando farinha pela cozinha. Pra eles é apenas um “ficou meio doce”. Não é um ficou ruim, tá uma merda ou você é péssima cozinheira. Mas se ele encher o saco demais, porque relevar é uma arte difícil, ok, aí sim mande ver se você tá na esquina.

Quem ama tem todo o direito de insistir em resolver os problemas da relação. Mas tente, tentemos todas, não fazer disso a principal tarefa da vida. Senão, vira uma bola de neve, uma briga atrás da outra. E de repente, nos tornamos as chatas da história. Minha opinião? Desvie o foco e relaxe. Ou então, largue de vez. O que não dá é viver reclamando.
ilustração em vidabesta.com

8.7.07

Acorda!


Desista, nunca vai ser desse jeito. Não é feito para ser assim. Ele não vai se interessar pelo modelo do seu vestido de casamento. Não importa se vai ser de renda com brilho aplicado ou de cetim com decote nas costas. Ele não vai nem se lembrar no outro dia.
Ele vai concordar com tudo que você escolher apenas para sair mais depressa da loja de móveis. Não se iluda, ele não tem bom gosto, aliás, ele nem sabe o que é isso. Esqueça, ele jamais saberá tomar uma decisão sozinho. Você que irá escolher o dentista, o restaurante, para onde vão nas próximas férias. Com o tempo, as poucas idéias que ele sabe dar ficarão ainda mais absurdas e improváveis.

Ele não vai à reunião de pais com você, vocês não irão juntos ao supermercado nem à feira de produtos orgânicos. O próximo apartamento é você quem vai ter que escolher. Não espere que ele troque a lâmpada queimada ou que conserte o vazamento do tanque. Provavelmente ele nem se lembra de que vocês têm um tanque. Sinto muito, querida, mas é assim que funciona. Agradeça se ele fizer sexo com você três vezes por semana. E se quiser continuar casada, não exija nada mais que isso. Ele trabalha e põe dinheiro em casa. E comprou o carro para você ir buscar sua mãe no aeroporto, levar a empregada até em casa quando ela perder o último ônibus. Então não peça mais nada, pare de reclamar da toalha em cima da cama, da roupa suja no chão do banheiro, da tampa da privada levantada, da luz acesa, da garrafa de água vazia, do lixo aberto, da cafeteira ligada, da porta destrancada, da chave pelo lado de fora.

Esqueça tudo que você ouviu sobre homens modernos que dividem a tarefa doméstica com suas mulheres. Eles representam durante algum tempo, mas voltam às origens mais rápido que você imagina. Todo processo de evolução é demorado. Portanto, aceite os fatos, não reclame, torça para a estagiária dele não ser gostosa, tenha disposição de sobra, sorria, seja cheirosa, cuide da pele e do cabelo, dos filhos, da casa, das contas e, de maneira alguma, deixe de ir para a academia.

Ou entre para o clube das separadas, amargas, sem esperança, desiludidas, mal amadas que não têm a menor idéia de como irão encontrar outro desgraçado para atormentar a vida dele com tantas frustrações.

3.7.07

Suma


Eu não quero saber. Não quero ouvir seus motivos, foda-se você e seus motivos. Quero sentir muita raiva que assim, quem sabe, paro de esperar que você entenda o que digo e sinto.

Não me interessa se o carro quebrou e isso te atrasou. Tô cagando se você comeu o último pedaço da minha torta de chocolate porque achou que eu tinha deixado pra você. Não quero saber da reunião que deixou você preso até tarde no trabalho. Sabe por quê? Por que eu acredito em tudo que você diz. Caio que nem pata. Viro criança diante de suas explicações e promessas.

Então, chegue tarde mesmo, arrume uma amante, se quiser engravide a pobre imbecil. Pode ir pra sua porra de futebol e voltar sujo, emendar com a cerveja, faça a merda que quiser. Não quero saber o que quer dizer essa nota fiscal de boate que caiu do seu bolso, não quero ver a fatura do seu cartão. Porque quanto mais sei sobre você, mais vejo que tô atolada num monte de sujeira, num poço sem fundo de mentiras. E quando mais me enfio nessa lama, mais quero provar pra mim que posso vencer, que podemos vencer. Que posso te conquistar de novo e voltar aos tempos em que íamos juntos ao cinema, ríamos dos vizinhos que vivem discutindo, tirávamos par ou ímpar pra ver quem atenderia ao telefone.

Cansei de viver nessa ilusão. Pare de se explicar. Agora quero me desiludir, quero parar de te amar e odiar, pra sentir apenas indiferença. Não me elogie, não me chame pra nada, esculache. Faça uma festa com strippers na sala onde te dei endoidecida pela primeira vez. Venda minha bicicleta, foda-se, faça qualquer coisa, não me importa. Só não quero mais olhar pra você e ter esperança.

Você fez eu me odiar por acreditar que as coisas poderiam mudar, por me transformar num nada, num merengue, numa coisa amorfa e passiva diante de seus argumentos furados. Mas o pior foi me convencer de que eu não seria nada sem você sem nunca ter dito isso, apenas me excluindo, mentindo, me colocando por baixo. Me fazendo correr atrás, quase implorando pela sua atenção.

Pois agora chega. Não tenho fôlego, forças, não quero mais tentar. Quero deixar de amar você agora, hoje, nesse exato segundo, antes que deixe de gostar de mim mesma.

ilustração do galvão: www.vidabesta.com

27.6.07

Minhocas

- Você tá pensando em quê?
- Ahn?
- No que você tá pensando, fazendo essa cara?
- ...
- Fala, Guto, o que tá passando pela sua cabeça?
- Porra, Aninha, não consigo falar e trepar ao mesmo tempo.
- Não falei? Você tá pensando em outra.
- Você ficou maluca?
- Então diz que me ama, faz uma cara bem sexy e fala meu nome.
- Amo, adoro você, gata. Chupa aqui meu dedinho, isso.
- Guto...
- Humm
- Sabe o que é? Eu preciso que você fale algumas coisas pra mim, pra eu ficar com mais tesão. Fala da minha bunda.
- Sua bunda é linda, Aninha.
- Como assim minha bunda é linda? É pequena, achatada, tem culote e tem umas espinhas aqui ó, passa a mão. Linda é a bunda da Paula. Todo mundo diz que parece um pêssego. Você já ficou com a Paula, Guto?
- Tô quase...
- Tá quase ficando com a Paula? Como assim, Guto?
- Não, Aninha, fica quietinha, fica, peraí que tô quase gozando.
- Ah, bem.
- Aninha, me chupa um pouquinho?
- Tá bom. Você vai pensar em que enquanto eu estiver chupando você?
- No que você quiser, chuchu.
- Pensa no meu peito?
- Claro, amor.
- Gutho, voxê tá penxando no meu peitho?
- Pára de falar e me chupa, Aninha. Daqui a pouco acaba o nosso tempo aqui.
- Então quer dizer que seu dinheiro é mais importante que eu? Você é muito egoísta, sabia? Você pensa que é fácil pra mim? Pensa que eu não sei com quantas você já ficou? Aposto que é no peito da Claudia que você tá pensando. Você sabia que é tudo silicone? Que a vaca colocou mais de 500 ml de silicone? É tudo de plástico.
- É? Ficou show.
- Guto!
- É, ficou artificial, também não gostei, não. Olha só pro seu, Aninha. É natural, faria o maior sucesso na década de 80. Sabia que as mulheres que tinham muito peito naquela época faziam cirurgia pra tirar tudo?
- Do que você mais gosta em mim?
- Gosto de tudo, gata. Deixa de conversa. Abre a boquinha, assim. Ai!
- Você pensa que me engana. Pensa que não olhei lá na sua página no orkut?
- Chega, Ana. Vão bora. Morder meu pau é sacanagem.
- Desculpa, amor. É que não consigo controlar.
- Acabou, Ana, não dá. Toda vez que a gente transa é isso. Você precisa ser mais segura, se tô com você é porque tô afim. Mas desse jeito eu cansei, não quero mais trepar com você enquanto essa maluquice sua não passar. Prefiro bater punheta em casa sozinho.
- Você vai pensar em mim?

20.6.07

Tentação

Era meu primeiro ensaio fotográfico. Nua. Estava empolgadíssima. O momento era bom. Estava fazendo um papel legal na novela das 19h, aparecia em algumas capas de revista. Eu jurava, eu sei, que nunca faria isso. Mas eram 500 mil. Dava pra comprar um carrinho, um apartamento de frente pro mar e ainda guardar um pouco pra investir no futuro, né?, que isso também é muito importante.

O dia do ensaio estava marcado. Fiquei tensa. Tive um daqueles sonhos estranhos, em que estava pelada no meio da rua. Com exceção de que eu realmente deveria estar pelada no meio da rua.

Cheguei ao estúdio e maquiadores me fizeram toda bonitona.
- Querida, sabe que seu ensaio vai ter o tema colegial, néam?
- Ahhh... é? Que criativo.
Não era lá uma idéia muito original. Mas eram 500 mil. Até de abacaxi eu me vestiria.

- Quer beber alguma coisa pra relaxar?
- Tem Valium?
- Não, mas tem champagne.
- Serve, serve.
Uma hora depois, estava pronta para as fotos. E completamente bêbada.
- Piérreee, gritou um assistente, ajeita aqui a maquiagem dela pra acertar o olho caidinho.
- Acerta também minha bunda, eu disse já caindo na gargalhada.
- Querida, coloque o roupão, vamos para o cenário.
- Que roupão? Quero sentir a natureza, a brisa, quero ficar nua.
- Mas aqui é um estúdio, tem nada disso aqui não, fiota.
Fui me equilibrando num salto de aproximadamente três andares até o cenário. O fotógrafo começou a dar orientações. E eu, embriagada, mandando ver na carinha de “vem cá que tô querendo”.
- Levanta o braço agora, que é pro peitinho ficar bem empinadinho... isso... levanta mais... mais... ah, desiste. Deita de lado agora.
- Mas aí minha celulite fica marcada.
- Pode deixar que o photoshop cuida, querida.
- Quem é photoshop? É aquele da maquiagem? Photoshooooop, vem cá disfarçar minha celulite.
E novamente caí na gargalhada. Deprimente. Mas eram 500 mil.

Do dia seguinte, me lembro apenas de flashes. Literalmente. Eu tentava não piscar quando o fotógrafo disparava aquelas luzes na minha cara. Fiquei ansiosa, aguardando o ensaio ser publicado. E os 500 mil, depositados.
Depois de adiarem meu ensaio por quatro meses, porque sempre tinha alguém mais famoso na frente, lá estava eu, na capa da revista com o título “Vou te dar uma lição”. Na tarde de autógrafos, comecei a me sentir estranha. Olhava para aquela fila de homens e imaginava todos chegando em casa, grudando as páginas da revista. Assinei tudo rapidinho, tentando disfarçar a vergonha, e fui embora. Não tinha pensado na vergonha. Só nos 500 mil.

Nas semanas seguintes, vivi um pesadelo diurno e diário. Os porteiros davam bom dia e eu jurava que queriam dizer “eu sei o que você tem aí embaixo, guxtosinha”. Não conseguia encarar meus colegas de trabalho, o lavador de carro, meu ortopedista. Tinha certeza de que quando olhavam pra mim, não viam roupas. Apenas pensavam “já te vi peladinha”. Imaginava eles me olhando igual o Dudu, aquele comilão do Popeye, olhava as pessoas quando estava com fome. Só que em vez de sanduíches no lugar da cabeça, estariam meu peitocos, minha amiga, minha bunda. Um corpo andando com uma perereca em cima do pescoço.

E quando fui à praia? Jurava que aquelas mulheres estavam falando:
- Era tudo Photoshop na revista! Olha essa bunda! É mais esburacada que a BR 101 Norte.

Fui ficando paranóica. Não conseguia sair mais do meu apartamento novo, com vista para uns 40 centímetros de mar. Comprei uma peruca para sair sem ser reconhecida. Tomava banho de roupa pra não me ver pelada. Sumi da mídia, não queria aparecer. Tive síndrome do pânico, TOC, desenvolvi doenças de pele. Decidi vender o apartamento para bancar tudo. Estava falida, quebrada. Fui então trabalhar no açougue de um tio meu. Até que um dia, alguém da produção do programa do Gugu foi lá e me reconheceu. Aí virei notícia no Gugu. Ganhei dois blocos inteiros. Mostrei meu drama e acabei sendo chamada pra uma novela. Virei estrela, venci o medo, os problemas, voltei ao auge. Paguei minhas dívidas, virei evangélica. Jurei que nunca mais posaria nua. Até que me ofereceram 700 mil. Acabei aceitando.

A revista tem vendido bem e eu até que estou encarando tudo melhor. Nas noites em que consigo dormir, nem tenho mais pesadelos com homens nus e selvagens correndo atrás de mim. Voltei pra psicóloga só por precaução, porque ontem mesmo larguei já o Valium. Outros convites até surgiram, até mais altos que o da revista. Mas não adianta. Filme pornô eu - não - fa-ço.
ilustração em www.vidabesta.com

13.6.07

Além da conta



Ela era over. Essa era a melhor forma de defini-la. A começar pelo nome, que era composto e sobrava naqueles espaços de ficha cadastral: Alexandra Roberta. O nariz, os olhos, a boca então, tudo enorme. Os peitos não cabiam em nenhum sutiã, a bunda sobrava nas cadeiras, incomodava quem sentava ao lado. Mas de repente resolvia emagrecer e virava um palito, um filé de borboleta, só sobravam os dentes que apareciam mais que tudo na arcada proeminente. Vivia nos extremos.

Gastava muito, com qualquer coisa, a toda hora. E assim enchia seu armário de bolsa pequena, bolsa listrada, bolsa de plástico, bolsa de couro de vaca, bolsa comprada na feira. E nem me peça para falar das bijuterias, são caixas e caixas cheia de compartimentos, gavetinhas e espaços ocupados por uma infinidade de quinquilharias douradas, prateadas, coloridas. As tintas do cabelo eram demais, sempre muitas, de várias cores, ninguém sabia como iria encontrá-la no dia seguinte.

Sua gargalhada era comprida e interminável. Assim como eram suas histórias. E também sua vontade de amar, que sufocava o pobre coitado que se aventurava a seguir seus passos quase desvairados. Quase porque era inteligente, e muito. Não se podia dizer que era feia. Há quem a ache bonita do jeito que é. Mas eu, com toda a minha simplicidade, não dava conta de agüentá-la. Me cansava rápido de tanta informação que ela transmitia em um curto espaço de tempo. Seus pensamentos eram sobrecarregados de vontades, quereres e por assim serem, de frustrações também. Queria sempre mais e por isso perdia as boas chances que apareciam na sua frente. Porque o que aparecia parecia pouco.

Não consegui ser sua amiga, fui até onde pude. Não sei dizer se era má pessoa, mas para mim não dava. Só não consegui descobrir se ela que era demais ou eu que sou de menos.

1.6.07

Dureza


Cansei. Ia começar a terceira série de exercícios pra deixar a bunda dura quando arranquei as caneleiras com pressa, como se fossem mosquitos me mordendo. Que diferença faria aquela série de seis repetições em minhas bandas e, mais ainda, em minha vida?

Queria estatísticas que provassem que pular uma série daquele exercício me condenaria à uma moleza irreversível na busanfa. Não acredito que cairia tanto por causa dessa pequena displicência. A não ser que me provassem o contrário. E como não tinha como provar nada, larguei. Poxa, quão duros mais ficariam meus modestos glúteos se eu fizesse aquele bodega de série que faltava? Nem sei que escala mede dureza de bunda, mas acho que deve ser algo como escala Ritcher. Quanto mais balançar, mais grave é a flacidez. A minha, por causa daquela rebeldia inusitada, não poderia cair nem um ponto, não, não acredito nisso. A moleza ia continuar igual, concorda? Sim, você concorda, eu quero que você concorde, porque não quero fazer essa porcaria de série.

Não é possível que coisas pequenas assim façam tanta diferença. Não quero acreditar nisso. Se bem que quando desliguei o telefone sem dar tchau pra minha prima, ela ficou puta por uma semana. Falo com ela todo dia, mas uma vez sem dar tchau, foi fatal. E aquele pedaço de pizza que comi, ah, não acredito que aquilo me fez engordar. Era daquela calabresa com óleo boiando nas lingüicinhas mais côncavas. Mas eu só como isso uma vez na vida e outra na morte, se é que existe vida nisso. Será que não consegui ficar com aquele menino, lá no segundo grau, porque deixei de cortar dois centímetros de franja e assim escondi a minha pinta sedutora, bem no meio da testa? Nãnnn, me recuso a acreditar. Ele não gostava de mim e pronto.

Putz, o que eu tô fazendo? Olha eu aqui, palhaçona, tentando me convencer de que pequenas coisas não fazem diferença só pra justificar minha preguiça em fazer a última série de exercício de bunda. Logo eu, que fico triste quando dou bom dia no elevador e ninguém responde. E as outras palavrinhas mágicas? Obrigada, por favor, com licença. Tão curtas, mas um abismo entre a paz de coração e a vontade de socar a cabeça de alguém. Um elogio, um presentinho bobo inesperado, um telefonema de ‘chegou bem?’. E a onda verde de sinais de trânsito, que espetáculo da modernidade. Você vai passando e tudo vai abrindo, tão bobo, tão organizado, tão incrível. E faz uma diferença. O que seria da vida sem essas coisas?

É. Não dá pra saber a diferença que as coisas fariam a não ser fazendo ou não. Ia ser legal se existisse uma realidade paralela, onde a gente pudesse dar uma espiada pra ver como teria sido a vida com pequenas escolhas diferentes. Mas eu ia ficar muito puta se visse minha bunda toda durona, empinadona e imponente. É, esquece a idéia da realidade paralela.

Saco. Pensei demais. Passa a caneleira aí que vou fazer essa merda de série que falta.
ilustração em www.vidabesta.com