28.11.08

TPM



redatorasdemerda.blogspot.com
O mau humor me acompanhava naqueles dias. Aqueles dias. Acordava comigo, dormia comigo, tomava banho, agredia desavisados, enchotava pombos na rua. Essas coisas normais.

Seguindo a regra universal, comecei o dia mal. Cheguei ao ponto atrasada e perdi o ônibus porque derramei café na roupa e, quando fui trocar, vi que todas camisas estavam amassadas. Mas tudo bem. Ouvindo uma musiquinha tudo melhoraria. Abri a bolsa para pegar o fone e escutar alguma coisa calma. O fone não estava lá. Deixei no bolso da blusa em que derramei café. Legal.

- Ô, mocinha! Dá aí um desses, por favor?, gritei para uma distribuinte de folhetos que passava.
Nem sabia do que se tratava, mas precisava de distração enquanto o sol rachava minha cabeça ao meio.

Meia hora depois, já ciente de todas as ofertas do Mundo dos Amortecedores, o ônibus passou. Lotado. Depois de ralar o braço num cara suado e desviar a bunda de um outro com carinha de tarado, lutei com uma gordinha cheia de sacolas para pegar um lugar vago. A gordinha ganhou. Aceitei a derrota como quem recebe um prato trocado no restaurante, mas fica com ele porque está morto de fome. Um ponto depois, a babaca se levanta. Sentou por um ponto. Ridícula. Mas dessa vez não tinha jeito, o lugar era meu. Assim que ela se levantou, fui encoxando a fofinha pelas costas, pra garantir que o primeiro vão entre ela e o banco seria minha entrada. Meu peito foi ficando esmagado entre as dobrinhas das costas dela e quase fui sugada pelo rego abissal da moçoila. Mas consegui. Me sentei aliviada e feliz. Finalmente a coisa estava melhorando. Peguei o folheto dos amortecedores e resolvi dar mais uma lida. Foi quando senti o pescoço da senhorinha sentada ao lado se esticando em minha direção, num estilo ET de ser. E não tem nada tão irritante quanto um desconhecido pescoçando sua leitura.

Segui tentando ignorar o fato, até que uma curva sinuosa jogou a senhorinha pra cima de mim. Baixei o folheto e olhei bem firme para ela. Nem desculpa ela pediu.
Inocente nesse mundo, achei que depois dessa, a senhora sairia fora. Não. Logo estava ela novamente invandindo meu espaco. Quando senti o queixo dela encostar em meu ombro, resolvi agir. Me concentrei e usei o tom de voz mais meigo que consigo fazer.
- A senhora quer ler esse folheto?
- Quero não.
- Pode ficar.
- Por que você tá me oferecendo?
- Porque achei que a senhora estivesse interessada.
- Você tá é doida.
Nã, nã, nã, uma veiota sem noção não ia acabar com meu dia. Ou piorar. Foda-se a boa educação, o respeito aos mais velhos, as conseqüências na próxima encarnação. Que eu volte como pulga, como pedra, como banda de pagode, mas não ia ficar quieta.
- Doida não. A senhora estava quase deitando em mim.
- Nem sei da onde que você tirou isso. Vaca.
- É o quê? Vaca?
- Vaca, puta.
- A senhora tá bêbada?
- Acha que velho não xinga? Otária. E agora cala essa boca que vou escutar uma música aqui no meu êmepêtreize.
- Vai nada! Agora a senhora vai me escutar. Só porque é uma velha acha que pode abusar, pode ser mal educada? Mas ó, a senhora fique sabendo que é uma velha muito feia, muita má, falei achando que velho é que nem criança. Mas não adiantou.
- Me deixa em paz, sua corna.
- Não, a senhora vai pedir desculpas.
- Porra nenhuma.
- Então toma essa porra de folheto. Agora vai ler tudo.
- Pára de empurrar isso, pára. Sai fora, sua drogada. Você usou tóxicos, foi?
- Drogada o caralho. Enfia essa merda no…
- Pára com isso, menina, não quero isso não. Sai pra lá.

A essa altura o ônibus todo já estava alvoroçado. Os mais próximos, que viram tudo, torciam por mim. Os mais distantes começaram a tacar papel, sem saber de nada. Percebi que a coisa ia ficar feia pro meu lado. Tive que levantar pela minha vida.
- Eu não fiz nada, essa senhora me agrediu antes.
Foi pouco. Vaias e objetos mais firmes começaram a vir em minha direção. Fui me encolhendo na cadeira e pensando no que fazer pra não ser linchada. Os gritos de fidaputa foram aumentando. Cheguei a escutar um "Ela agrediu a senhora! Vão descer a mão." Tentei pensar rápido. E meu instinto de sobrevivência só achou uma solução. Levantei novamente e com voz grossa e um sotaque que era mistura de bahiano com ovo na boca, mandei:

- Aqui é o demônho.
Na primeira frase o silêncio tomou o ônibus. Tratei de virar os olhinhos e lembrar dos programas que via nas madrugadas insones.
- Essa menina tá tomada, berraram lá de trás.
- Eu sabia!, disse a véia.
- Cala a boca, piranha, emendei eu, agora com liberdade diabólica para tal.
- Eu vou dominar o mundo todo. Começando por essa menina. Depois vou pegar vocês.
Meu plano estava dando certo. Os passageiros estavam paralizados e comovidos. Ao fundo ouvia gritinhos que iam de aleluia a "pára o ônibus que vou descer". Já ia desenvolvendo meu discurso quando ouvi:

- Sou pastor! Me deixem passar.
- Puta merda… pensei comigo, já prevendo o show.

Era um senhor bem branquinho, quase albino, magrinho que só. Foi lá pro meu lado e colocou a mão bem espalmada sobre minha cabeça. Fazendo pressão, me botou ajoelhada sobre o banco. Eu, pra manter a pose, ficava ali gemendo. E xingando a velha.
De repente, o senhor pastor se enraiveceu e começou a berrar "sai capeta, sai, volta pra não sei onde." Era fato. Eu tinha que interpretar. Dar tudo de mim, encontrar meu lado atriz. Era isso ou ser linchada. Abri o arquivo de referências de terror no meu subconsciente e passei a fazer tudo que vinha. Fazia uns sons inspirados no chewbacca, cantei ilariê ao contrário, uivei, tentei girar a cabeça 360º. E xingava a velha, claro.
- Velha doida! Vou te pegar de noite, vou arrancar sua cabeça, vou arrancar suas tripas pela bunda.

O exorcismo estava funcionando. Fui liberando tudo. Aproveitei pra xingar o chefe, o ex, a amiga traíra, o Bush, as micaretas. E uma paz interior inabalável foi me possuindo. O problema é que quanto mais eu amaldiçoava meio mundo, mais o pastor ficava agressivo. Me sacudia, balançava minha cabeça, puxava o cabelo. Quando senti o café da manhå subindo, achei melhor parar a coisa. Vomitar até cairia bem, mas não queria me sujar. Já estava livre de ser linchada àquela altura. Decidi que era hora de acabar. Fingi desmaiar na cadeira e pronto, ouvi uns gritos comovidos. Consegui. Virei a mocinha, vítima do mal. Até a véia foi me ajudar. Mulheres me abanavam, homens abriam espaço, criancinhas choravam, religiosos rezavam. Abri os olhos e fiz cara de coitada:
- Eu estou bem, eu estou bem, sussurei com uma voz bem fraquinha, cerrando os olhos como quem acabou de acordar.

E alguém repetiu:
- Ela está bem, ela está bem!
O ônibus todo, cada um com sua fé, foi agradecendo a seu Deus. Era graças a deus pra cá, aleluia pra lá. As pessoas se abraçavam, sorriam, comemoravam como copa do mundo. Eu levantei, acenei para o público e abracei o pastor, aplaudido por quase um minuto. Graças ao trânsito, meu ponto ainda não tinha passado. Mas estava próximo. Dei o sinal, agradeci a todos, pedi que rezassem sempre e prometi conhecer a igreja do pastor, chamada Tô com Deus e não Abro.
- É pra dar um ar jovem, ele me explicou.
Saí do ônibus aliviada e renovada. Nada mais eficiente que um desencapetamento pra acabar com uma TPM.


ilustração de galvão em www.vidabesta.com

20.11.08

Muda

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Naquela noite resolveu finalmente se abrir com ele. Decidiu que iria despejar em seu colo todas as angústias, dúvidas, inseguranças que somadas seriam um prato cheio para qualquer psicanalista. Mas a vítima seria ele, que durante um ano evitou qualquer conversa mais profunda, que aprendeu a se esquivar mudando rapidamente de assunto, que emudecia toda vez que ela falava naquele tom.

- Guto...

- ...oi...

- Sabe o que é?

- ...não, não sei...

- É que eu tava pensando...

- Ah, lembra daquele livro que comentei com você? Chegou na livraria, o cara me ligou. Tava só esperando pra poder estudar mais pro concurso. Dois meses esperando, e a prova já é agora, em março.

Ela detestava esse assunto de concurso. Puta falta de criatividade. Que graça estudar por dois, três anos pra passar numa prova, trabalhar num serviço burocrático com pessoas que só estão ali pelo mesmo motivo, dinheiro e estabilidade, e fazer repetidamente algo que não vai contribuir em nada para um mundo melhor? Puta falta de graça.

- Em março?

- É, passou rápido... Bela, tá lembrando que não vou poder viajar no carnaval, né?

Agora ela engoliu o choro. Seria a primeira vez que viajariam. Era a chance que ela teria de poder ficar com ele sem interrupção. Fariam todas as refeições juntas, dormiriam juntos, tomariam banho, veriam as mesmas coisas e, enfim, ela teria tempo e jeito para conseguir dizer tudo aquilo que lhe rondava a cabeça.

Aquele ano tinha sido cheio de não ditos, e logo ela, tão verborrágica, parecia ter sido colocada de castigo. Era na marra que ela estava aprendendo a ouvir o silêncio e a engolir todas as perguntas que vinha na ponta da língua quando ele cumprimentava uma menina que ela não conhecia ou quando ele atendia o celular enquanto jantavam sexta à noite.

Mas de hoje não passava. O problema de tanto acúmulo é que o pobre sujeito é pego de surpresa e ouve tanta coisa ao mesmo tempo que não consegue processar. No meio do tororó ele perde o poder da audição e do raciocínio - não acompanha mais nenhuma frase, tudo pára de fazer sentido. Mas ela tinha que vomitar pra não engasgar. Aproveitou que ele saiu da mesa, não levou o prato até a cozinha e ainda estava procurando o controle remoto. Era a deixa.

- Bela, você viu o controle?

- Guto, quem vê tv aqui é você. Eu não vi nada. Aliás, não vejo nada há muito tempo. Não vejo você pensar na gente, não vejo você ter vontade de sair prum lugar diferente, não vejo você com aquela vontade de me comer, não vejo...

- Mas eu só...

- Quieto! Fica quieto! Você vai me ouvir nem que seja à força. Você só pensa em você. É essa merda de individualidade. Individualidade é o cacete. Quer individualidade vai bater punheta sozinho. Você é incapaz de...

Ela falou por uma hora e treze minutos, exatamente. Ele tinha a mania de marcar. Gostava dela e não conseguia entender de onde vinha tanta raiva. Só por que ele perdeu o controle remoto?

- Guto, fala alguma coisa!

- ...

- Fala!

- Eu...eu...

E pra se livrar de vez daquela situação, mandou pela primeira vez sem ter muita certeza do que dizia:

- Eu te amo, Bela.

Ela sentou no sofá e chorou por mais vinte minutos no colo dele. Mas antes, conseguiu achar o controle remoto que entregou pra ele como se fosse um prêmio.


ilustração de galvão em www.vidabesta.com

3.11.08

Telegrama

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Ainda estava pregada em sua cama quentinha quando ouviu um barulho na rua. Demorou a entender a gritaria. Com a boca colada no travesseiro, se perguntou baixinho se tinha jogo do Brasil, corrida ou se era festa junina.

Alguns segundos mais foram necessários para Luíza entender que ainda era setembro, que não tinha jogo nem corrida e que, pior, era seu aniversário.

- Saco. Diazinho de merda. Foda-se que eu nasci há uma caralhada de anos.

Ainda assim, demorou a se atentar para a razão do furdúncio lá fora.

- Luíza Maria, vem aqui fora que nóis tem um recado de alguém que te ama muito.

Antes fosse um pesadelo. Luíza Maria resolveu fingir que não era com ela. Mas as vozes continuavam e a mestre da cerimônias grotesca insistia enquanto assassinava o português.

- Luíza, vem cá logo. Ou você quer que a gente entra, hein? Nóis veio aqui só por você. Foi o Edemar quem contratou nóis pra fazer dessa sua manhã um momento de magia encantada.

Não restava outra opção. Ou ela saía ou ela saía.

- Olha gente, é ela vindo aí! êêêê! Vamo bater palmas pra aniversariante!

A caminhada lenta e a expressão pesada de Luíza foram transformando a alegria contagiante da trupe bizarra em um constrangimento geral. Até os vizinhos curiosos, que desfilavam com seus pijamas na calçada, ficaram em silêncio.

Com cara de poucos amigos, poucos não, com cara de amigo nenhum, Luíza ficou parada na porta. Com uma das mãos tapava o sol. A outra estava apoiada sobre a cintura. Deu alguns passos e falou para a oxigenada que a acordou.

- Presta atenção. Eu odeio esse tipo de telegrama. Dá pra ir embora? Se não por mim, pelo amor de deus?

Virou-se pra Edemar e terminou.

- Porra, Edemar, isso tinha que ser coisa sua, né?
- Gostou?
- Olha minha cara de alegria.
- Parece alegria não.
- Claro que não, porra.
- Então não gostou?
- De qual parte? Das bexigas em formato de poodle? Dessa bandinha fedida? Da cabeça de Mickey no corpo do pica-pau? Ou dessa analfabeta com cara de candidata a big brother?

A multidão ficou em silêncio por uns segundos. Ouviam apenas a bandinha que continuava, ainda que bem baixinho, tocando Como uma Deusa. Luíza estava certa de que havia conseguido expulsar todos dali. Mas uma risada comunitária ensurdeceu a multidão.

-Eu tô falando sério, num é pra rir. Edemar, é assim que você quer voltar pra mim? Você vai conquistar é meu ódio desse jeito. Telegrama animado já é um horror. Mas esse daqui. Isso é o portal do inferno. Furreca até o talo, vamos lá, convenhamos.
- Eu não conhecia nenhum. Achei esse no catálogo.
- Você devia ter ido na letra T, de telegrama, e não na A, de aberrações.

Enquanto os vizinhos se esbaldavam de rir, os integrantes do telegrama foram saindo de fininho.

- Olha isso. Você espantou eles. São trabalhadores, Luíza. Acordaram cedo pra chegar aqui antes de você acordar.
- Se chegassem aqui meio-dia eles ainda iam me acordar, Edemar. Agora eu sou a vilã, é? Ó, Edemar, some que eu quero ficar sozinha. Além do que tá na hora do meu cocô da manhã. Gente, desculpa o tumulto, viu? Da próxima vez prometo que não falo nada. Jogo uma bomba logo.

E mais uma vez a multidão respondia com risadas.

Edemar foi embora direto pro bar, tomar uma cachaça. Se antes tinha que esquecer Luíza , agora tinha que esquecer a humilhação toda.

Quando entrava em casa, Luíza ouviu alguém gritando por ela.

- Ei!

Virou e lá estava um dos membros da bandinha, com uma roupa uns três tamanhos maior que ele. Tinha ombreiras douradas com uma franjinha encardida. Os botões eram grandes e cheio de rococós. Luíza deu uma manjada no rapazinho e mandou:

- Que foi, paquita?
- Eu sou Olavo, dono do Telegrama.
- Sinto muito.
- Tá ruim, eu sei. A Kátia Kelly, essa aí que chama as pessoas, é fraquinha mesmo. É que eu conheci ela num forró, quando eu tocava no Cueca Melada, e prometi que ia fazer ela ficar famosa. Era papo só pra pegar, sabe?, mas aí depois..
- Amigo. Pára. Tá me embrulhando o estômago.
- Desculpa. Mas então. Você é muito simpática, engraçada, espirituosa. Quer o emprego?
- Tá de sacanagem?
- Não.
- Isso faz parte do telegrama? Tipo... é a parte do susto, da pegadinha?
- Prometo que é verdade.
- Nem fudendo.
- 50 por telegrama.
- Tô fora, paquita.
- 55?
- Cara... de boa. Sai daqui.
- 60?
- Some. Vaza.
- Tá. Tô indo.

Ele já passava do portão quando ela gritou.

- Ô, paquita!
- Oi?

- Hehe. Olhou.