
O gosto era o mesmo de quando a professora lhe sabatinava a tabela periódica. Nunca sabia a resposta. Por mais que estudasse, aquilo fugia de qualquer lógica. Vinte anos depois o gosto voltava à boca. Boca não. Amargava no coração mesmo. Ou no esôfago, estômago, no tórax inteiro. Indefinido.
Ele a tocava como nem um outro. Nem só pelas habilidades motoras, que provavelmente fariam dele um pianista talentosíssimo. A capacidade de adivinhar o que ela queria impressionava. Antecipava seus desejos com tanta agilidade que ela temia ter pensado alto. Ah, se fosse fácil assim a tabela periódica.
Dançar era uma de suas maiores diversões. Dançar sozinha. A dois era sempre um esforço. Por mais que relaxasse, se flagrava buscando guiar seu par. Mas ele, vai entender, ele a fazia flutuar. Não por saber guiá-la tão bem, mas porque seguiam os mesmos passos sem ensaio algum. A abertura certa da boca no momento do beijo. A profundidade perfeita da língua. Os movimentos circulares exatos. A troca de posição de cabeças olimpicamente cronometrada. A intensidade da mordida, a força das chupadas. Braços nunca esbarravam, pernas não se chocavam. Os dedos sabiam onde estar e a que velocidade agir. Os corpos não tinham peso nem travas. Uma dança que fluía como patins no gelo. Deslizavam um pelo outro, davam piruetas, mortais e voltavam ilesos.
A dança terminava assim que ela fechava a porta da casa dele. Como num cofre, o quarto guardava todos os tesouros e segredos. Bastava sair dali que o código se perdia. Por mais que os beijos, as lambidas, os puxões e as dores fossem tão simétricas, aquilo era tudo que tinham um do outro. Queria acreditar que aquela perfeição era mais comum do que imaginava. Em qualquer esquina se encontra. Mas sem querer, já se via quebrando a cabeça para planejar um próximo encontro. Não era pra ser assim. Era pra acontecer naturalmente. Mas não. Exigia esforço, esboços, esquemas. Que nem decorar aquela tabela non sense.
Queria saber a resposta. Sódio, cálcio, ouro. Que diabos era aquilo? Por fim, decidiu criar sua verdade e acreditar no que convinha. Enfiou na cabeça, como quem enfia um elefante num envelope, que ele era um homem daqueles que as revistas femininas alertam sobre. O homem clássico, instintivo, que consegue separar sexo de sentimento. Sim, era isso. E se não fosse, não importava. Ia acreditar naquilo. Criar sua própria tabela, definir os elementos, escolher as siglas de uma forma que tudo fizesse sentido. Quem sabe assim aprenderia?
Deixaria tudo que ele dissesse de bom varar seus ouvidos, já que não sabia brincar de licença poética. Estava decepcionada por não ser a mulher moderna que acreditava ser. Irritava não saber responder a si mesma. Era pra ser simples, exato, um fato isolado, como eclipse que acontece às vezes ou um meteoro que leva anos pra passar. Mas queria mais, mesmo sabendo que isso não aconteceria. Complicado como a tabela.
Esperava o telefone tocar. Uma pizza, quem sabe. Um cinema, coisa boba. Não. É. É homem. Aquele das revistas. Gostava dela ali, naquelas poucas horas, entre aquelas quatro paredes, quando ela tocava aquela campainha com uma desculpa lindamente esfarrapada. Em seus braços relaxava. Fora deles, buscava a fórmula para explicar que peça da engrenagem impedia os dois de darem mais um passo. Gosto de tabela periódica. Maldita química.
ilustração de claudio frança.