18.12.09

Desembarque



Passou o percurso inteiro olhando para ela. Tentou ser discreto. Uma mulher pode ter dúvidas sobre estar sendo admirada ou perseguida. Jurou que ela correspondia. Pensou que, se os dois descessem na mesma estação seria um sinal divino de que deveriam se conhecer. E claro, trepar. E então, quando a voz anunciou “Estação Paraíso”, os dois se levantaram juntos. Juntos mesmo, como não conseguiriam se tivessem combinado. Juntos de forma que arrancariam aplausos dos demais passageiros, se eles não estivessem ocupados demais fazendo nada. Ela imaginou que filme ele gostaria de ver. Ele reparou nas pernas dela.

Caminharam para a mesma porta e, nessa hora, os olhares se acharam. E um sorriso escapou. O dela mais contido. O dele saiu como um espirro. Fujão e alto, mesmo sem som algum. Permaneceram ali de frente para a porta, um ao lado do outro, assistindo as paredes do túneis passando sem novidades. Ele imaginava o lugar ideal para a primeira vez dos dois. Tentavam não mover as cabeças, mas lançavam o máximo que um olhar diagonal pode alcançar. Qualquer um que os visse de frente pensaria que eram estrábicos. Com as vistas cansadas, passaram a se olhar através do reflexo da porta. Ela já imaginava se ele era do tipo que gosta de um bom vinho.

O trem parou e eles colocaram o pé direito na plataforma ao mesmo tempo. Fã de esportes que é, ele chegou a escutar os gritos da arquibancada, delirando com a harmonia da equipe. Pensou que o sexo também prometia ser bem sincronizado. Foram andando e tentando ficar lado a lado. Às vezes ela acelerava um pouco. Ele entendia que era um teste de persistência e acelerava até ultrapassá-la. E então diminuía pra ver se ela corresponderia. E ela acelerava até ultrapassá-lo. E assim percorreram a longa plataforma até a última escada de acesso à rua. Ela imaginando qual seria a banda preferida dele. Ele, a posição preferida dela. Na escada rolante ele não caminhou. Nem ela. Ficou parada, dois degraus abaixo dele. Não havia ninguém entre eles. Na verdade, não havia mais ninguém na estação.

A escada terminou e ele virou à direita. Já podia ver a porta. A saída. Seria o fim. Ou o começo?
Ele pensou em olhar pra trás. Desacelerou até que ela pudesse emparelhar-se. E então, percebeu que ela virou à esquerda. A última chance dele era olhar pra trás. Se ela olhasse, sim, iria falar com ela. Senão, pronto, aquela teria sido a história deles.
Mas o que ele falaria? E se ela fosse casada? E se ela fosse casta? E se tivesse voz fina demais? E se fosse bipolar por opção? E se pedisse pra ele parar de andar de skate?
Pensou isso tudo, mas olhou mesmo assim. E novamente, eles acertaram no segundo. Ela olhava. Ela pensava que ele poderia ser um tarado. Ou um carente, que se apaixona pela primeira que vê. Ou poderia morar com os pais. Ou ter um trabalho que exigisse demais. Ou não aceitar a carreira dela.

E quando cada um deles percebeu que a disposição de mudar suas vidas era pequena diante do momento, continuaram seguindo em frente, ainda que os caminhos fossem opostos. Naquele instante, o encontro já exigiria andar para trás. Perdeu a naturalidade. Foi o fim de uma relação intensa e sem briga alguma. Provavelmente, a melhor da vida deles.

ilustra de galvão em vidabesta.com

21.11.09

Lições


Você passa a vida inteira ouvindo tudo que deve fazer de correto, mas sem nenhuma explicação convincente, você mete os pés pelas mãos e deixa tudo em volta com pegadas de quem acabou de chegar de um dia lamacento. Pois bem, tente aprender algumas lições enquanto você estiver respirando, porque facilita pra todo mundo e ainda mais pra você.

A primeira delas é sobre sua saúde. Todo mundo recomenda, todo mundo deseja, e talvez você deseje a si próprio, mas se entope de doces, não faz nem quinze minutos de caminhada por dia, bebe que nem um porco, fica sem ir ao dentista por oito anos. Só que um dia a conta chega. E você já ouviu dizer que aqui se faz, aqui se paga. Talvez em outro contexto, mas no final dá no mesmo. Muito justo se quem tivesse que pagar pelo que fez com seu corpinho fosse você e ninguém mais. Acontece que o ônus nem sempre é só seu. Entupindo suas artérias de torresmo e seus pulmões de nicotina, é bem provável que a conta sobre, injustamente, para mais alguém. E tudo porque a sua estupidez e o seu egoísmo natural não permitem que seu sofrimento seja só seu. Precisa ser da família inteira. Feio, né?

Não desfaça das pessoas que estão ao seu lado. Se elas estão ali é porque gostam de você. Para que então, ser grosseiro ou fazer uma brincadeira que só você acha graça? Seja gentil e preserve a educação básica. Se ainda não sabe como, compre um livro e aprenda o mais rápido possível. Não seja idiota. Não ridicularize sua namorada na frente dos seus amigos. Não diminua seu marido para suas amigas. Se você é um babaca por natureza, tente se esforçar para não atingir quem ainda tem consideração por você.

Pare de ser tão carente e querer esperar tanto do outro. Se ele ainda não aprendeu a fazer, depois de você já ter falado, ensinado, desenhado, gritado, esqueça. A receita da felicidade é essa e pode acreditar: jogue fora suas esperanças. Não espere que ele vá pedir você em casamento. Se isso acontecer, ótimo. Se não, bola pra frente. Mas não o culpe. A culpada é você de alimentar essa vontade.

Não burocratize o sexo. Não regule também. Se ele quer comer você duas vezes por dia, jogue suas mãos para o céu. Não é só sexo que ele quer. Ele quer dizer com o corpo todo que você é um mulherão. Não repreenda se pegar seu par se masturbando. E jamais pergunte se era você a imagem que servia de estímulo. Privacidade não se invade, por mais tentador que isso seja. Se ela não faz sexo oral em você, tente algumas coisas como cortar metade de seus pelos e tomar banho antes. Mas jamais empurre a cabeça de alguém na direção desejada.

Dê atenção às pessoas. Amigos, clientes, pai e mãe, pessoal do trabalho. Tente ser minimamente simpático. Mesmo que isso seja a coisa mais difícil para você. Resolva seus problemas de estima, insegurança, paranóia, mau humor. E se não consegue resolver não faça da pessoa do seu lado seu muro de lamentações. Tenha dó.

Não sufoque ninguém com suas angústias e pare de se sentir a vítima. Não faça chantagens, não guarde o erro do outro para ser usado numa ocasião que vai favorecer você. Não negocie sentimentos. Cobre menos. No fim, o que todo mundo quer é não ficar sozinho. Então por que diabos aprendem primeiro a sabotar tudo em volta? Ache a resposta e faça valer a classificação de adulto da qual você e eu precisamos fazer parte.


28.10.09

Um dia


Acordou e bebeu um copo d'água, porque parece que faz bem tomar água em jejum. Resolveu preparar um café da manhã decente, ainda que perdesse alguns minutos do seu sono. Teve paciência para colocar o pão na torradeira. Usou uma faca para cada alimento em vez de melecar a geléia de manteiga. No final, retirou tudo da mesa e lavou na hora mesmo, porque se deixasse tudo ali até à noite, poderia dar barata. Era isso que diziam, pelo menos.
Tomou banho, pendurou a toalha no varal e arrumou a cama direitinho. Até colocar o lençol por baixo do colchão, colocou.

Buscou na estante um livro para ler no ônibus. Tinha medo de enjoar, mas diziam que ler era uma ótima forma de aproveitar o tempo obrigatório que passamos em transportes públicos. Levou também um casaco, embora não estivesse fazendo muito frio. Como se fosse mágica, o livro fez a ida para o trabalho passar tão rápido que quase perdeu o ponto. Deu bom dia a todos, mesmo aos mais chatos. Também são colegas, tem que falar com todos. É o que diziam.

Na volta para casa, trocou o jogo no boteco por um filme. Foi à locadora e perguntou por “Antes do Amanhecer”. Enquanto o mocinho procurava pelo DVD, avistou do outro lado aquele bistrozinho charmoso. Assim que pagou pela locação, atravessou a rua e entrou no restaurantezinho, sem cerimônia. Se surpreendeu com o cardápio. Já haviam dito que não era tão caro. E realmente não era. Mas ele suspeitava que uma fachada tão simpática e limpa pudesse ser honesta nos valores. Não ficou pensando no tamanho do prato enquanto esperava sua chegada. Em vez disso, experimentou um vinho que, disseram, era mais caro, mas valia a pena. E valeu. Cada gotinha, cada golada. O prato chegou. Ele tinha razão: era pequeno. Mas logo sua desconfiança caiu por terra. O sabor do risotto de aspargos e brie com filé ao molho de damasco era mais do que volume para o bucho. Era um carinho para o paladar, um favor para o espírito, um presente para o estômago. Estava tudo maravilhoso o suficiente para ele ficar arrasado, pensando que ela sempre teve razão.

Deu cada passo do dia fazendo exatamente o que ela sempre pediu, aconselhou, sugeriu. E tudo deu certo. A água no jejum desceu bem, lavar pratos não doeu. Mexer o café com a colher certa e não com o cabo da faca foi bom. Ler no ônibus não deixou seu estômago revirado. Ser simpático com as pessoas não fez ele ser menos respeitado. O casaco serviu para protegê-lo do ventinho de pôr-do-sol. E o bistrot não era coisa de bicha rica. Pra piorar, adorou o filme. Fez ele compensar cada lágrima que ela, durante anos, despejou nas tentativas de arrancar novas atitudes dele.
E foi assim, derretendo em frente à TV e sofrendo com a ausência concreta dela, que ele terminou o dia mais perfeito de sua vida.


ilustra de galvão em vidabesta.com

14.9.09

Tempos depois



Você já teve vergonha a ponto de sentir uma pinçada no peito e um leve tremor no cérebro? Acordei com isso hoje. Sonhei com você. E foi o suficiente pra passar o dia recapitulando nossa história. Quer dizer. A história que inventei sobre nós dois. Quando lembro de tudo que falei sobre a gente, sobre as expectativas que criei, é inevitável não me sentir ridícula.
Seguir o coração devia ser um caminho esquecido na adolescência. Impulsos sentimentais e urgentes fazem você acreditar, sem um milímetro de dúvida, que se aquele momento passar, a oportunidade nunca mais aparecerá. Como um portal aberto no tempo. Hormônios descontrolados assumindo o comando do cérebro.
Mas por um desvio de caráter, que é como encaro esse romantismo besta, não podia ver uma possibilidade de virar princesa que me entregava.
É tão patético pensar que criei tudo que eu dizia existir entre a gente. Simplesmente moldei um sonho e saí escolhendo quem se aproximava dele. Forcei como quem tenta forçar uma peça de quebra-cabeça no lugar errado. Falta uma curvinha, sobra uma pontinha, mas quem liga? A ansiedade de encontrar a tal pessoa era tanta que ignorava seus sinais.
Na escola eu sempre questionava interpretação de texto, porque parecia absurdo haver uma única forma de entender uma história. Se tivesse sido mais nerd, não levaria essa amplitude de interpretação pra vida. O que queria dizer “ você é legal, mas não é o momento”?
a) te amo, mas sou imaturo pra dizer.
b) eu sou um idiota que não consegue bancar esse amor.
c) sou depressivo e preciso ficar sozinho. felicidade não é pra mim.
d) não te mereço.

Agora eu sei a resposta certa. E é por isso que resolvi mandar essa carta. Você deve estar casado, com um filho talvez. Se sua esposa ler isso, diga pra não ter ciúmes. Eu também estou casada. E estou grávida. Sinceramente, essa é a vida que eu nunca sonhei. É a vida possível. A vida real, de pé no chão. E sou bem feliz assim. O tal romantismo eu guardei em uma gaveta bem escondida, pra não cair na tentação de abri-la. Uma coisa é ser romântica no dia a dia, com o cara que escolhi. Outra é ser escrava de uma ilusão que promete um amor capaz de matar o mundo de inveja e fazer qualquer outro problema parecer uma mosquinha. Gosto de acreditar que é coisa genética, sabe? Nasci assim e só existe um modo de viver com sanidade: tomando doses diárias de realidade e correndo, desesperadamente, de qualquer possibilidade de fantasiar uma situação. Que é exatamente o que fiz com você.
Sei que fui imatura, desesperada, cruel. Eu pedia honestidade e você era honesto. Mas eu ouvia o que queria e ainda espalhava a minha visão deturpada de você pra todo mundo. De nada adianta a sinceridade quando a verdade não convém.
Nem sei se pedir desculpa adianta. Acho que nem é o caso. Mas quero dizer que agora entendo seu lado. Parecia meio maluca na época, insistindo tanto, dramatizando tudo sem necessidade. Tentando trazer minhas fantasias para sua vida. Precisei de sei lá quantos anos pra entender que ao dizer "você é legal, mas não é o momento", você queria dizer apenas "opção e) você é legal, mas não é o momento”.


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18.8.09

Relações

O tempo realmente muda tudo. A forma de pensar muda assustadoramente. Mais do que a bunda que murcha ou o peito que cai. Nasci apaixonada pelo meu pai e acho que ele por mim. Percebi pela quantidade de fotos minhas tiradas enquanto eu ainda não falava. Tenho imagens fortes na memória onde ele me leva para o parque, para andar de bicicleta, monta um painel com luzes e me deixa fazer uma festa na garagem sem aparecer por lá de hora em hora. Não fala com meus namorados, me ensina a dirigir aos catorze anos. Me mostra como fazer uma ultrapassagem segura, a como ser educada no trânsito, a como evitar problemas no carro. Sim, meu pai, meu herói. Acordava às 3 da manhã para me buscar onde quer que fosse. Dizia para não fumar e que deveria gostar de um bom vinho. Ou um bom uísque. Ou qualquer bebida que fosse de boa qualidade. Me deu um conselho que vale uma vida: viaje. Coisa que ele fazia com frequência. O que na época entendia como obrigações do trabalho, entendi que na verdade era uma forma de ficar longe de casa e da minha mãe.

Minha mãe ficou muitas noites sozinha, comigo e com meu irmão. Nós dois pequenos numa cidade hostil. Ela ressentida pela ausência do meu pai, a gente tirando a paciência que ela não tinha mais. Tenho poucos momentos dela em minhas lembranças. Quase não temos fotos juntas. Ela dormia cedo e aos domingos me mandava entrar em casa às seis horas, na hora em que a brincadeira começava a ficar boa. Ordens, um monte delas. Minha mãe não descuidava nunca. Tudo no lugar, roupas, sapatos, dentes escovados, cama arrumada, livro lido, cabelo penteado, regras, regras, regras. Não havia diálogo, nem momentos risonhos. Era tudo em linha reta. Minha mãe passou por poucas e boas. Teve um marido infiel e boa parte do tempo, ausente. Perdeu um filho, passou a morar sozinha. Não se casou mais. Passamos por muitas crises. E as crises passaram por nós. Ainda não rimos tanto mas conversamos sabiamente. Ela lê, eu também. Ela vê bons filmes, eu também. Temos o que conversar. Ela entende as minhas dores, e ainda não consigo entender como ela conseguiu superar as dela. E assim temos longas conversas, o meu tom em desespero, o dela, preciso e calmo.

Pai e mãe. Não sei como medir o amor por eles, mas existe. Tenho inúmeros motivos para amá-los. Mas nem isso impediu de mudar a relação que tenho com eles. De, com o passar do tempo, vê-los de maneira totalmente diferente. É justamente aí que mora o temor de jurar que ficarei com alguém para sempre. Não existe certeza mais imbecil do que essa. Não consigo entender como prometer algo que foge do seu controle por completo. Claro que já quis ficar com alguém até morrer. Mas isso hoje me parece o desejo mais estapafúrdio que alguém pode querer. Tudo muda, e não só a pessoa que está ao seu lado, mas aquela que mora dentro de você.

Ilustração em Vida Besta.


22.7.09

Subentendido



- O que a gente vai comer hoje?

Uma pergunta simples e rotineira. Aparenta inocente, mas é capaz de alcançar níveis profundos no conhecimento amoroso. O que vamos comer envolve vontades reprimidas, jogo de adivinhação, habilidade de negociar. Apesar do risco, Estela lançou a sorte.

- Vai, Beto. Pode escolher, prometo que não questiono.
- Hambúrguer. Vamos lá no Chapadão do Pepo.
- Beto.
- O quê? Não era pra eu escolher?
- Hambúrguer? Do Pepo ainda? Ele não deve lavar aquela chapa há anos. Se fizesse uma lipo naquele chapa dava pra abrir uma fábrica de sabonetes.
- Ah, não diz isso. É essa pegada rústica que dá o gostinho bom pro sanduba. Gostinho de chapa.
- Amor, até queijo-quente tem gosto de bacon quando sai daquela chapa. Aquilo tem é gostinho de infarto. Não esquece que você já tá ali na portinha dos 40, Beto.
- Tá bem, nesse papo eu não quero entrar. De novo não. Então diz você o que quer comer.
- Uma coisa leve. De repente uma salada.
- Mentira. Não é possível. Com esse friozinho que atravessa o estômago e deixa só um vácuo pra trás, não, não acredito que você queira salada.
- Não que eu seja louca por alface. Mas alguém tem que cuidar da saúde, né?

Todos têm o direto de comer salada e bufar em uma esteira de academia com trajes especialmente projetados para transparecer cada celulite. Têm também o direito de dizer que é tudo em nome da saúde, embora seja apenas uma desculpa para não parecer tão fútil assumindo que é sim pelo corpo.

- Então vamos naquele bar que vende de tudo. Você pede a salada e eu peço uma pizza.
- Ah, Beto. Mas aquele lugar não tem charme.
- Ué. Mas eu achei que você queria uma salada. Não sabia que tinha que ter charme.
- Poxa, mas comer em lugar feio faz a comida até descer mal. Era pra ser um programinho.
- A gente combinou que ia segurar esse mês, pra dar a entrada no apartamento. Achei que o programa era esse. Dar a entrada.
- Mas pagar 20 reais a mais pra ir num lugar bacana não tira a chave da nossa mão.
- Ta. Então vamos tentar de novo. Onde você quer ir?
- Deixa eu pensar. Olha. Já que nosso aniversário de casamento é daqui a uma semana, a gente pode comemorar antecipado. O que acha?

Mesmo percebendo a descarada tentativa de enganar a si mesma e burlar as regras de não-gastar, Beto entrou no jogo. Seu estômago já roncava tanto que em alguns minutos poderia até participar do diálogo.

- A gente também pode inventar que estamos comemorando 4 anos, 11 meses e 3 semanas.
- Isso, Beto, isso, adorei!
- Tá. Beleza. Vamos lá então. Mas semana que vem, já sabe. Contenção de despesas.
- Combinado, prometo.
- Vou lembrar, hein? Não vale nem sapato.
- Não, juro.
- Nem vem falando que é promoção.
- Ai... nem?
- Nem. Então vamos recomeçar. Onde vai ser essa nossa atípica, revolucionária e supercharmosérrima comemoração?
- Agora quero uma massa.
- Massa? Mas e o algodão doce da festa do seu sobrinho, que você falou que foi direto pro culote? E a tal salada?
- Ocasião especial pode. No resto da semana eu como salada. Olha, pode ser pizza também. Quer saber Beto? Vou abrir uma exceção.
- Exceção?
- É, vou deixar você escolher. E vou aceitar.

Depois de tantos anos, Beto já era capaz de entender melhor a fascinante mente de Estela. Sabia bem onde ela queria chegar com “vou deixar você escolher”. Era hora de tirar o peso de uma escolha fatal dos ombros dela e assumir a decisão. Com toda a sensibilidade que a fome ainda permitia, disse sem medo:

- Amor... você sabe onde eu quero ir. Eu já falei. Mas você não quis.
- Hambúrguer do Pepo?
- ... é...

Uma mínima expressão de vítima foi o suficiente para Estela abraçá-lo.

- Ai, o que eu não faço por você.

“Por mim, sei, por mim”, pensou Beto enquanto ria por dentro. A verdade é que ele não se importava em se fazer de desentendido. Se fosse preciso encenar tudo novamente, ele faria. Por Estela e pela maionese do Pepo.

ilustra de galvão em www.vidabesta.com

8.7.09

Pensamento em pedaços



Por que parei de falar com você? Estou fazendo isso para proteger você de mim. Claro que também tenho interesse nisso. Mas, confesse: não está melhor assim? Sem brigas, sem ironia, sem deboche, sem cobrança, sem expectativa, sem nada. Conforme eu falei, tudo vai morrer. Não vai sobrar nada. Não sei quando voltarei a falar novamente com você. Tenho ficado bem assim, não me sinto mais numa montanha russa emocional desde que tomei essa decisão. Não consigo dar conta de tanta intensidade. Você suga todas as energias que tenho. Você pesa. Mas ao mesmo tempo não tiro você da cabeça.

Já dei diferentes nomes para isso. Já chamei de vício, de amor, da coisa mais importante na minha vida. Mas o que é mesmo é impossível. Engraçado que ainda acredito que estando assim, longe, separada, sem falar com você, sem olhar você no olho, sem pegar na sua mão, sem ver você rindo pra mim, acho que estou fazendo bem a um possível futuro que possamos ter. Sei que é loucura. Não quero ficar culpando você o tempo todo. Não consigo aceitar essa perda, consegue entender isso? Se você deixasse de existir, fosse pra longe, se eu não tivesse que ver você tanto, acho que tudo seria mais fácil.

Você consentiu em terminar com um relacionamento de tanto tempo como se fôssemos simples namorados. É impossível não culpar você o tempo todo. Desde que paramos de nos falar, tenho sonhado todos os dias com você. Acho que é uma forma do meu inconsciente satisfazer uma vontade, aprendi isso na análise. Acordo e você é a primeira coisa em que penso. Consegue entender o peso disso? Sinceramente, não quero mais conviver com o seu mau humor, seus devaneios sem sentido, essa mania de ficar triste e odiar o mundo, toda essa maledicência, todo o deboche, a falta de humildade, a dificuldade em aceitar as coisas como são e fazer algo para mudá-las se tanto incomodam você. Mas claro, reclamar é mais fácil. E reclamar comigo era ainda melhor, porque eu estava ali, presente e ouvinte. Preciso me livrar da obsessão que é pensar em você. Em pensar o que você e sua namorada estão fazendo no sábado de manhã. Quero saber todos os detalhes, como ela se veste, se as calcinhas dela são velhas, são novas, são sensuais.

Não tenho limite. Penso toda hora em tudo isso. E quanto mais estamos próximos, mais quero saber de tudo. Seria capaz de passar um mês inteiro só fazendo perguntas a respeito de vocês dois. Já disse, é obsessão. Patologia. Totalmente obsceno. Sei que sou melhor que ela naquilo que você considera como valor. Aí vem a pergunta estúpida: então por que você está com ela e não comigo? Você é um idiota. Um fraco. Ou um grande mentiroso ao continuar dizendo que ainda me ama, que não existe ninguém como eu. Não percebe o quanto isso é pernicioso? Cada dia que consigo não falar com você é quase uma vitória pra mim. É como se eu tivesse me livrando de algo muito ruim e fazendo isso um dia de cada vez. Um alcoólatra largando o vício.

Não consigo ser sua amiga e achar tudo normal. Toda vez que vir você e ela juntos, vou sofrer e descontar em você. Sei que você não tem a menor vontade de me procurar. Você quer manter apenas um contato leve, cordial, mas onde eu não peça nada em troca. Isso não dá pra mim. Disse isso chorando pra você. Era uma grande carência. Não sei o que eu queria realmente, mas se sou viciada em você, não deveria me abster de repente, concorda? Queria apenas algumas horinhas de algo que fosse diferente da nossa rotina. E nada além de uma boa conversa. Mas talvez ainda tenha necessidade de despejar em você todas as porcarias que penso. Acho que você não passa por tantos conflitos quanto eu. Jamais vai se dar o trabalho de querer consertar alguma coisa. É covarde demais pra isso. Você não se move, não sai do lugar. É um merda.

Posso viver bem sem você, ora veja. Não preciso de você para comentar um filme ou me indicar um novo livro. Sei onde achar e com quem falar. Assim que essa dependência minha terminar, não vai sobrar nada. Vou estar livre. E nem de longe vou querer ver você. Você vai perder totalmente a graça. Provavelmente ainda continuarei achando você incrível, sensível, inteligente, genial. Mas nada vai me encantar. Vai haver uma ponta de desprezo no meu sentimento por você. Porque conheço todos os seus lados. Cada um deles. E seu lado bom não suplanta o lado ruim. Pelo contrário, submerge. Você não se esforça para ser melhor. Não sei o que você pretende. Mas tenho certeza que sabe o que jogou fora. Mas seria muito para você reconhecer tudo isso, não é? Idiota. Viu como você não se move? Fiquei aqui, disponível. Você foi embora. Você sabe que fez coisas difíceis de se perdoar. E não é porque gosto tanto de você que consigo passar por cima. Taí, não consigo.


10.6.09

No fundo

Motivada pela tristeza e pela frase ouvida repetidas vezes, que se você está no fundo do poço não tem outro jeito a não ser começar a subir, resolveu que era hora de iniciar a escalada. Sabia que pela frente viriam paredes úmidas e fedidas. Quebraria algumas unhas, ralaria o joelho. Por isso ficou tanto tempo ali, encolhida no mundo que criou para se proteger. Porque não tinha forças para sentir mais nenhuma dor.

Mas o tempo de permanecer assim acabou. A primeira atitude, nada mais clichê, foi marcar hora no salão para dar uma repicada no cabelo. Assim, pra ficar moderno. A bicha com quem costumava cortar às vezes acertava, às vezes não. Se estivesse cheirada, a franja ficaria muito repicada, com pontas incontáveis, totalmente sem jeito. Se a mona tivesse apenas fumado um, ótimo. Ia ganhar um corte mais ajeitado. Mas a vida é feita de riscos, leu isso num desses livros de empreendedorismo, achou bom lembrar agora.

O corte ficou...um corte. Nada além disso. O que lhe restava de bom senso foi atualizado no momento em que o secador de cabelos foi desligado. Ficou um bom corte, nada demais. Ela não sairia mais confiante do salão, sua auto-estima não estaria renovada e dentro de um dois meses a franja já estaria sem jeito.

O procedimento padrão também exigia a volta à academia. Se matriculou, comprou roupas novas, mas baratinhas – ainda não acreditava que iria mudar totalmente sua vida e se tornar a rainha da abdutora. Aliás, sabia que existia alguma coisa de auto-sabotagem nela. Alguém precisa ter pena de mim, afinal. Acreditava nisso piamente.

O próximo passo era organizar o orçamento, que estava tão bagunçado quanto as ideias dela. Quebrou alguns cartões de crédito, chorou de desespero, ficou meia hora no telefone aguardando ser atendida para negociar a dívida, combinaram que ela pagaria em 8 vezes, com juros de 1,4 % ao mês. Detestava fazer contas, por isso concordou rapidamente.

Agora era a vez do armário, gavetas, estantes. Não vou entrar em detalhes a respeito porque arrumar tudo isso é muito chato. Ela achava, eu acho, você provavelmente acha também. A única pessoa que gostou foi a Dinalva, que levou uma sacola cheia de roupas e sapatos e brincos e cintos e bolsas pra casa.

Sim, o fim de um namoro provoca uma grande revolução na vida da gente. De certa forma, é uma ignição para um novo momento, às vezes melhor que o anterior. E pra finalizar toda essa etapa de mudança, resolveu que iria melhorar a pele, tratar as manchas, desmanchar algumas rugas, enfim, ficar mais bonita.

Marcou com a doutora Vanessa Eller às 15h40. Foi difícil sair do trabalho a essa hora. Mas era agora ou só daqui a quatro meses, querida, informou a secretária com voz anasalada. Chegou três minutos atrasada e ficou com raiva da sua falta de pontualidade, mais uma vez. Sentou, entregou a carteirinha do plano, tentou respirar para disfarçar o afobamento, pediu água e aguardou ser chamada. Começou a reparar na decoração. Tons rosas e lilases. Uma parede branca com texturas muito discretas e com vincos em baixo relevo que se cruzavam formando quadrados. Em cada ponta dos quadrados, alguma coisa brilhava. Quis levantar para olhar de perto que diabos era aquilo imitando um diamante mas se conteve.

- Flávia Damasceno!

Ela se levantou, pegou a bolsa e deu cinco passos antes de chegar na porta da sala e dar de cara com a doutora reluzente. O chão se abriu. Ela sentiu uma leve palpitação. A câmera lenta foi ativada. Ela reparou em cada detalhe daquela entidade luminosa, shinning happy person à sua frente. Cabelos num tom loiro que nunca tinha visto antes, a tintura devia ser importada. Os olhos cuidadosamente maquiados, nem um excesso de rímel, os cílios pareciam colados um a um. A pele lisa, irritantemente lisa. O corpo exato, magra sem deixar de ser gostosa. A roupa, que não era branca, era off-white. Usava joias discretas, com quartzo transparente e ouro branco, uma finura. Atrás dela, as fotos da vida perfeita: um bonito marido beijando-a no dia do casamento, a filha de poucos meses, linda, rosada, risonha, perfeita, no porta-retrato provençal. Teve vontade de desmaiar, de ver se não tinha resto de comida no dente, ficou com vergonha da pele que há tempos não via uma limpeza. E foi a primeira coisa que o ser de luz reparou.

- Antes de tudo, precisamos fazer uma limpezinha nessa pele, Flávia.

Não, não. E ainda por cima essa voz em tom baixo, calmo, embalante. Lembrou que todas as dermatologistas que conheceu falavam assim, baixinho, com delicadeza, com palavras doces que só faziam com que ela ficasse ainda mais arrasada. Jamais seria tão linda, leve e iluminada. Jamais.

Pegou a receita, deu um sorriso amarelo misturado com um muito obrigado, prometeu o impossível, que voltaria em dois meses, que faria a tal limpeza, que passaria o ácido todas as noites. Saiu do consultório e foi direto para o poço novamente.

27.5.09

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- Tá tenso.

- Hein?
- Tá tenso. Com a Gabi.
- Quem é Gabi?
- Minha namorada. Aquela moreninha, cabelo curto. Não lembra? A que vem me buscar de vez em quando.
- Uma muito gata? Com uma pintinha aqui do lado do nariz? Assim, com todo respeito.

- Ela mesma. Anda reclamando demais. Cada dia é uma pendenga. Agora deu pra dizer que eu tenho um gosto muito duvidoso pra filmes.

- Sei como é. Ela gosta de comédia romântica e quer que você veja tudo que a Meg Ryan já fez.

- Não, não. O problema é o seguinte. Eu gosto de Rambo, de Velozes e Furiosos, de tiro, de briga, de fratura exposta. Senão eu durmo no cinema. E ela gosta de uns filmes que nem no shopping passam. Outro dia me forçou a ver um tal de brilho da mente de lembranças.
- Brilho eterno de uma mente sem lembranças.

- Esse mesmo.
- Do caralho... já vi sei lá, umas cinco vezes.
- Sério que você gostou? Eu achei uma mentirada só. Apagar memória? Isso nem existe, ridículo.

- E o Rambo existe desde quando?

- Ah, mas é diferente.

- Sei.

- Tudo bem, ela sempre vai comigo ver os filmes que gosto. Mas eu não aguento acompanhar ela nessas merdas.

- Pô, mas aí você não tá sendo justo.

- Ah, mas eu já aturo o gosto musical dela. Ela me faz ouvir cada coisa. Olha só, gravou esse monte de cd pra eu conhecer as coisas que ela gosta.

- Poxa, que coisa mais.... carinhosa. Ela fez até capa e encarte.

- Ó, nem tinha visto. Se quiser pode pegar pra você. Esse que tem Beatles, Rolling Stones, David Bowie, pode levar tudo. Não sou museu pra gostar de velharia.

- Rapaz, fala isso não.

- Eu acho que ela ouve umas coisas diferentes só pra dizer que é moderna, sabe como? Tem que ver os lugares que ela gosta. Dá cada figura.

- Uma vez encontrei vocês numa balada dessas, lembra?

- Puta... foi. Show do Radio-alguma-coisa.
- Radiohead. Ela gosta?
- Porra, se ela pudesse acompanhava a turnê.
- Eu também.

- Tá doido. Eu não aguento guitarra. Nem gente berrando. Eu prefiro uma coisa mais eletrônica.
- Então gostou do Kraftwerk?
- Cruzes, nem fudendo. Uns puta caras esquisitos. Prefiro um trance, uma rave. Esse papel kraft aí é sei lá, meio parado. A Gabi que gosta.

- É, vocês têm que entrar num acordo então. Um cede aqui, o outro ali.
- A gente saiu ontem pra trocar uma ideia. Ela disse que ia me levar pra jantar.

- Pô, bacana a iniciativa.

- Mas foi uma merda. Ela me levou pra um restaurante tailandês.

- Porra, me amarro.

- Fala sério. Eu caguei fogo hoje, de tanta pimenta naquele frango.
- Ah, então o cheirão no banheiro...
- É, fui eu. Culpa daquele frango do inferno. Em vez de a gente se acertar, ficamos lá, cuspindo fogo.

- Me diz uma coisa. Assim, vou perguntar na boa.

- Vai lá.

- Por que vocês estão juntos? A coisa melhora quando... enfim, o sexo é bom?

- Pra ser bem sincero, já foi melhor. Ela andou... chega mais perto... ela andou inventando umas histórias meio loucas. Comprou peruca,
se fantasiou. Pediu pra eu fingir que era o Dr. Pinto, um ginecologista tarado, depois que era um alienígena que ia fazer um exame de fertilidade nela... porra, ainda comprou um vibrador no formato do dedo do ET.
- Que beleza....

- Oi?

- Não, nada. Que garota...assim, criativa, né?

- Demais, demais. Aquela ali parece que fica pinicando, se ardendo toda. Deve ser de tanta pimenta tailandesa. Agora falando isso tudo com você, me veio uma coisa na cabeça.
- Manda.
- E se você conversar com ela? Se disser que eu sou foda aqui no escritório, que sou respeitado, que tenho um futuro promissor, que a mulherada cai matando, mas eu saio pela beirola.

- Saquei. Você quer que eu minta?

- Isso. Ó. Ela vem me buscar hoje. Você desce, puxa papo falando dessas bandas ruins que vocês gostam, desses filmes com mais diálogo que porrada, depois você fala de mim e aí vai, deixa fluir.

- Porra, cara, tô achando que isso não vai dar certo. Vai dar merda.

- Acha que ela vai sacar a armação?

- Não é bem isso que eu tinha pensando.

- Hein?

- Nada não, tô pensando alto.

- Cara, ela nem vai sacar nada.

- Você gosta mesmo dela? Você ama ela?

- Nunca pensei nisso.

- Nunca pensou? Como assim? Então pra que esse esforço todo?

- Ah, sei lá, eu curto ela. E não tô fazendo nada melhor. Mas não conta pra ela.
- Nada de amor, então?
- Não.
- Certeza?
- É.

- Beleza. Tô dentro. Que horas ela chega?

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24.4.09

Ser homem

- Você é homem ou o quê?
O grito desafiador veio acompanhado de vaias e mais provocações, que
apenas a intervenção da diretora conseguiu calar.
Duda não respondeu o ruivinho encapetado, que de outros anos já
tentava tirá-lo do sério. Mas também não se mostrou de todo
amedrontado. Manteve a cabeça erguida, o maxilar tenso, com a mordida
forte e o punho cerrado. Não correu, não olhou para baixo nem para os
lados. Esperou que a agressão verbal se tornasse física, mas isso não
aconteceu.

A chegada de Dona Elvira acalmou os ânimos.
- Duda, não caia na besteira de comprar briga com o Eric. Você é um
menino direito, suas notas são uma maravilha.
- Eu não falei nada, Dona Elvira. Eu só fiz um gol, só. E ele, ele
disse se eu era homem ou quê. Quis me bater.
- Passou. Volta pra aula que o sinal já bateu, vai, se apresse.

A aula acabou, mas Duda não tirava a história da cabeça. Em casa, a
empregada, dona Marli, notou a aflição do menino, que tentava, mas não
se concentrava em nada. Sentou na frente da TV, mudou de canal várias
vezes até desligar de vez o aparelho. Tentou jogar playstation. Na
primeira derrota, desistiu. Foi beliscar um pouco do bolo de laranja,
depois tentou novamente ligar a TV. Devagar, ela foi chegando perto,
fingindo que passava um pano aqui e ali.

- Duda, levanta o pé por favor, pra eu limpar a poeira do tapete?
- Tá.
- Você tá bem?
- Um menino quis brigar comigo hoje. O Eric. Ficou berrando na frente
de todo mundo que meu gol não valeu, que eu sou pereba, que nem devia
estar jogando com a 7ª série, porque sou da 5ª.
- Não dá ouvidos, Duda.
- O que quer dizer você é homem ou o quê?
- Ele disse isso pra você?
- Disse sim. Ele acha que eu sou bicha, Marli?
- Não, Duda, nada disso. Ele quis dizer assim: você é homem ou você
não quer brigar? Você vai ser machão ou vai fugir? Mas você foi
esperto, aposto.
- Não fui... eu fiquei quieto, nem reagi.
- Então. Você foi esperto. Burro ia ser se caísse no conto dele.

Com medo de um novo confronto, Duda largou o futebol pra lá por duas
semanas. Mas a pergunta não largou ele. Era homem ou quê, homem ou o
quê? Sabia pouco da vida. Sabia por exemplo que não queria brigar, que
achava essa ideia ridícula e que apanharia feio se topasse a rinha.
Não se sentia de todo covarde, porque já havia brigado antes. Mas por
um motivo diferente. Primeiro quando uma menina tentou roubar o lugar
de uma garotinha na fila do escorregador. Ele foi defendê-la e tomou
um soco. Mas devolveu o gesto com um empurrão que fez a fila
aplaudi-lo e os pais intervirem. Depois, quando viu um garoto
maltratando um gatinho. Nem chegaram a ter um diálogo. Duda partiu pra
cima sem pensar duas vezes.

Isso tudo fazia ele pensar que não era um cagão. Pensou em conversar
com o pai, mas não imaginava que reação ele teria. Será que sentiria
orgulho ou se decepcionaria? Os dias se passaram, mas a reflexão
imatura e crua sobre masculinidade percorria tudo que Duda pensava e
fazia. Será que usar vermelho é coisa de homem ou o quê? Gostar da
menina da 5ª B, mas não se declarar era ser homem ou o quê? Ficar
emocionado quando vê um filme que gosta muito é ser homem ou o quê?

Até que um dia, ele resolveu tudo. Acordou inspirado e mais seguro de
quem realmente era, na medida em que alguém pode se conhecer aos 10
anos. Procurou Eric na hora do recreio, parou na sua frente, fez cara
de mau e disse:
- Eu sou o quê.
Eric não entendeu patavinas. Mas Duda sim, entendeu que nem sempre ser
homem é uma coisa tão idiota quanto fazem parecer.

ilustra de galvão em www.vidabesta.com

29.3.09

Sem motivos


- Por que você chora tanto?
- O quê?
- Acho que você chora muito, banaliza o choro.

Eles voltavam do fim de semana, ela no banco do carona, o rosto encostado no vidro tentando ver a paisagem verde que corria ao lado. Ficou pensando no que ele falou. Não tinha uma resposta, o choro simplesmente fazia parte dela. Mas teve medo.

- Você é engraçada. Chora com arte e com porcaria. Lembra do tanto que você chorou na exposição da Camille Claudel? Olhei pra você e só vi um rosto borrado. Você lá, mais parada que as esculturas. Dura que nem todo aquele bronze.
- Você sabe que a história dela me emociona. Por que esse assunto agora? Meu choro incomoda você?
- Não, mas me intriga. Porque chorar com uma exposição de arte acho que até consigo entender. Me emocionei com as fotos do Sebastião Salgado também, aquele monte de criança com olhar triste. Aquilo dói.
- É, eu chorei também...
- Isso eu entendo. Mas você também chora vendo comercial de celular. Chora vendo aquele reality ridículo de modelos. Tenha dó, né?

Não iria adiantar se defender, ele tem razão, em certo ponto. Mas o que poderia fazer? Sempre foi assim, desde criança. Também sentia vergonha das lágrimas bestas que algumas coisas provocavam. Uma música, uma lembrança, uma cena na rua. Achava cansativo ter que explicar o porquê, sentia que o choro era tão espontâneo quanto a sua risada, que também era fácil. Mas estava apreensiva.

- Você não acha que o riso e o choro são dois lados da mesma moeda?
- Nunca pensei assim. Mas quando você chora, por qualquer coisa, me sinto culpado.
- E falando assim eu que vou me sentir culpada daqui pra frente cada vez que eu deixar uma lágrima cair. Por favor, não me venha com essa. Me deixe chorar em paz. Esse assunto tá ficando um pouquinho pesado, você não acha? Daqui a pouco a gente começa a desenterrar coisas do tempo do bondinho. Aí sim, vou chorar com vontade.
- A gente nunca vai superar...
- Fábio, você quer realmente falar disso?
- Não, não. E o livro, você terminou de ler?
- Quase, é meio triste, achei melhor dar um tempo.
- Mariana, quer saber a verdade? Acho que você procura coisas pra se entristecer. Pronto, falei. É filme, é livro, é exposição. Você não assiste comédias, não participa de nada divertido, fica aí nessa introspecção, parece que gosta de sofrer. Não vejo você rindo, tá sempre calada, quieta, não sei mais o que se passa pela sua cabeça.

Ela não tinha forças pra retrucar. Sentia-se como um vulcão, longe de ser no sentido erótico que o termo pode provocar. Era um outro vulcão, mais aborrecido, mais angustiado, mais denso. É lógico que ela não tinha mais toda aquela leveza de antes. Era como se ela precisasse dissolver toda a dor que sentia. Mas achou melhor se calar e continuar olhando a paisagem, adorava ver bois na grama. Lembrou-se de quando atravessaram juntos uma fazenda de búfalos, bichos enormes dentro d’água, rira de seus chifres que pareciam um corte chanel.


- Lembra-se de quando fomos pra Bahia e passamos dentro daquela fazenda de búfalos?
- Lembro, você ficou cheia de medo.
- Claro, imagina se aqueles búfalos se zangassem? A gente iria ser pisoteado, com carro e tudo.
- Mari, búfalos são animais dóceis. É por isso que a estrada passa no meio da fazenda, porque eles não são perigosos.
- Eles me fazem lembrar da Luana, o cabelo dela parece o chifre deles. E ela também não tem uma carinha muito bonita.

Ela começou a rir da sua comparação. Um riso leve. Ele gostou de ouvir e soltou um suspiro de alívio. Mas sabia que ela estava tentando de tudo para que não brigassem ou levantassem assuntos espinhosos. Achou melhor dar uma trégua também.

- Um dia toda essa vontade de chorar vai passar. Tenha paciência.

O choro não iria passar. Não tinha vontade de mudar nada. Admitia a fraqueza e passou a gostar cada dia mais dessa nova pessoa amuada, cinza. Estavam juntos há três anos, não teve coragem de contar todas as coisas que viveu pra ele. Sequer tinha coragem de pronunciar. O que havia acontecido entre eles serviu de motivo principal pra que ela pudesse desaguar suas angústias. Já estava assim há dois verões. Não queria mais mudar.

A estrada era cheia de curvas, de um lado montanha, do outro lado, um vale. Ele dirigia bem, era uma cara centrado. Ouviam agora Body & Soul, um dia ele disse que essa música era tão perfeita quanto ela. Não conseguia acreditar, nisso e em nada mais. Soltou o cinto de segurança, abriu a porta do carro e deixou o corpo cair. Desceu mais de dois quilômetros, o corpo rolando numa velocidade cada vez maior. Enquanto teve consciência, deixou os pensamentos virem. O pai que se matou porque se afundou em dívidas por ter outra família, o tio que a molestou quando tinha apenas dez anos, a mãe que se fechou num mundo próprio, o fracasso de não trabalhar naquilo que gostava, a tentativa frustrada de ser mãe e não poder, a mulher que o Fábio engravidou, o filho que ele tinha e ela não. Tinha motivos demais para chorar. Mas se cansou de todos eles.


11.3.09

Saudade


Estava arrasado, completamente arrasado. O que seria de sua vida sem ela? Fazia menos de uma hora que a porta do seu apartamento havia sido violentamente batida. Mas parecia que já durava um mês. Ficou ali olhando para o teto, sem conseguir chorar, pensando em tanta coisa que não conseguia se concentrar em nada. Lembrava e relembrava fatos, frases, cenas, sempre tentando desesperadamente se apegar ao que agora não existia mais.

Sentiu o estômago se retorcer e achou que enfim choraria. Era só fome. Levantou da cama e, assim que encostou os pés no chão, viu o chinelo dela pousado inocente ao lado do seu. Temendo gritar, fechou bem os olhos para conter a dor dentro do corpo.
- Comprei um chinelo pra você. Reparei que anda descalça e fica com o pé todo sujo antes de ir embora - ele ainda se lembrava do dia em que falou isso pra ela, enquanto viam algum comercial em algum canal qualquer. Pra ela foi uma declaração. Sentiu que ele se preocupava, que reparava, que a relação havia atingido um novo patamar. Ah, mas foda-se. Já não importava.

Chutou o chinelo para baixo da cama e seguiu seu rumo. Parou antes no banheiro. A casa não tinha cheiro bom antes dela comprar aquele spray com perfume de qualquer coisa do mato, numa loja chique, e espalhar nas toalhas e lençóis. E ele fingia que nem via, pra manter a pose de desencanado. Levantou a tampa da privada para fazer xixi e se deu conta de que não precisava mais disso. Voltou atrás e mirou os pingos finais no assento. Entrou no box e sentiu um arrepio quando viu a calcinha pendurada na torneira. Sabia que estava a um palmo de sentir mais uma vez o cheiro dela. Achou melhor não. Pra quê? Mas pegou. E deu uma profunda fungada… como fedia. Não sabia se era a mistura com o sabonete ou se ela havia usado água sanitária, mas tinha alguma coisa errada ali. Se arrependeu de seu ato e jogou a calcinha no lixo.

Saiu do banho e jogou a toalha molhada em cima da cama. Domesticado que andava, tentou reverter o movimento, puxando a toalha de volta. Mas logo percebeu que não precisava mais se preocupar. E sorriu.

Andou peladão mesmo até a cozinha. Imagine se ela não daria um escândalo? Abriu a geladeira e foi tirando a alface, o tomate e as cenouras para fazer a salada que ela ensinou. Pegou a mostarda, a páprica, a sálvia, temperos preferidos dela que, em pouco tempo, se tornaram também dele... ou não. Na verdade, pensou, comia porque ela cozinhava mesmo e pronto. Guardou tudo de novo na geladeira e voltou às suas raízes. Pegou miojo, gorgonzola, fritou um baconzinho e partiu para o sofá, coisa que ela odiava, com seu prato fundo, que ela abominava, para comer tudo acompanhado de uma Colorado Indica bem gelada, que ela não tomava.

Ligou a TV, que estava programada para ligar no canal que ela gostava, trocou para um seriado policial que ele adorava e se perguntou por que não o assistia mais. Era ridículo saber que a Flora tinha terminado presa e não ter idéia de como andava House. Sorriu novamente quando percebeu que sentia muito mais saudade dele mesmo do que dela. “Acho que devia ter sido menos frouxo... quase me anulei deixando tantas coisas que gostava para trás." E isso foi tudo que conseguiu racionalizar e tirar de lição sobre o fim do namoro. Abriu a cerveja, devorou o miojo e dormiu antes mesmo de o seriado terminar. Sem escovar os dentes.

ilustração do galvão em www.vidabesta.com

18.2.09

Não me pergunte

A vida vai muito bem até o momento que você decide fazer perguntas. Por que estou nesse emprego? Por que aceitei me casar? Por que engravidei? E daí piora quando você começa a pensar no que vai ser daqui a cinco ou dez anos. Me fizeram essa maldita pergunta um dia: você sabe onde vai estar daqui a cinco anos? Quase mandei se foder. Não, não sei. Meu irmão morreu aos vinte anos. Não teve tempo de pensar nisso. Aliás, tenho muita vontade de xingá-lo, às vezes. Se livrou de se tornar adulto, de pagar contas, de declarar imposto de renda, de criar filhos, de ter que ver seus pais envelhecerem e se preocupar com quem vai tomar conta deles.

Ele não teve tempo de ter uma depressão e não sucumbir. Não teve tempo de ver o mundo mudar com o 11 de setembro. Não viu o Lula fazer todas as besteiras que tem feito. Tenho sentido inveja dele. Porque estou tendo muita preguiça de pensar no futuro. E não quero dizer que prefiro viver o presente. Também não tenho gostado dos dias atuais. E o passado, nada demais para ser contabilizado.

- Você reclama de barriga cheia.

Adoro essa frase. Ela separa os medíocres dos sonhadores. Ela determina o perfil dos conformados e confronta os questionadores. Quem vai mudar alguma coisa nesse mundo se não parar para perguntar o porquê das coisas? Portanto, fico desse lado. Do lado dos que reclamam. Por que sei que sou capaz de reclamar e de fazer também. Questionar é só deixar de aceitar as coisas como elas aparecem.

Quero o conforto. Quero a conta recheada de dinheiro. Definitivamente, dinheiro me traz muita paz. Fico muito feliz com muito dinheiro. Uma coisa depende da outra, claramente. E ter muito dinheiro não me traria para o ponto onde estou. De ficar com esses questionamentos estúpidos sobre como será minha vida em 2013.

Tenho pensado na velhice com uma certa frequência. Os velhos com os quais convivo me dão nervoso e não quero ficar como eles. Tenho uma vida não convencional – não me casei oficialmente, mas tive dois relacionamentos longos, não batizei meu filho, não almoço aos domingos na casa dos meus pais. Fico bastante tempo longe da minha família - minha paciência se esgota na primeira hora, justo quando sentamos à mesa e alguém teima em falar mal de alguma cunhada ou sobrinha. Meu fígado não suporta mais tais chateações. Prefiro ficar à distância, com meus livros e revistas me fazendo companhia.

Livros não me perguntam nada, pelo contrário, me jogam na cara as melhores verdades. É isso que quero. Quero endurecer emocionalmente. Não quero me sentir vítima de nada nem de ninguém. Não quero ter autocompaixão. Quero sobreviver sem enlouquecer. Pelos próximos cinco anos.

Ilustração do Galvão.

11.2.09

amor?


Havia algo errado. Já tinha passado dos 27, vivido um bocado de namoros, casos, enrolações. E por mais diferente que uma história fosse da outra, havia um padrão na forma de agir, no jeito como as coisas acabavam ou começavam. O mesmo sentimento de coisa mal resolvida, um déjá vu de atitudes. Na tentativa de entender o motivo dessa repetição patética, fechou os olhos e resgatou lembranças picadas e mofadas dos seus primeiros relacionamentos.


Ele era o mais bonito da turma. E ela, bem, ela não era. Mas foi
escolhida. E como a menina não tão bonita nem tão popular poderia desprezar o objeto de desejo do colégio? A falta de amor era compensada pela fama rapidamente adquirida. Desfilar com ele pelos corredores e ser alvo de olhares cortantes era o máximo aos 17 anos. Ele gostava dela, gostava mesmo. Deixava bombom na mesa, escondia bilhetes na mochila, ficava tímido quando ela olhava bem firme nos olhos. Dizia que ela era diferente de todas porque não gostava de Capricho, não fazia escova nem escutava New Kids on the Block.

Só que a menina gostava mesmo do esquisito da Exatas. Não conversava
direito com ninguém, matava educação física pra ler na biblioteca e ostentava uma barba rala e mal feita. Passou a esbarrar nada acidentalmente com ele no ponto de ônibus e pegou uma matéria extra na turma de inglês que cursava. E um dia, coitadinha, um dia perdeu a aula e foi à casa dele buscar as anotações. Era decidida, determinada. E safada também. Com 18 anos, sabia que mulheres, quando querem, conseguem as coisas assim. Chegou à casa dele com seu batom cor de boca, pra fingir que não estava maquiada, e a bochecha coradinha depois de tapinhas leves. Assim que ele abriu a porta, fez cara de doente e, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, fingiu um quase desmaio. Pronto. Duas semanas foram o suficiente pra beijar o misterioso. E dez segundos o suficiente para a graça sumir. Sentiu nojo. Na hora achou que fosse da barba. Ou da baba. Empurrou ele, pediu desculpas e saiu correndo.

Chorou horrores no caminho de casa. Sentia culpa, pena no namoradinho
bonito e uma sensação esquisita. Se estava indo atrás do que queria, por que diabos tinha sido tão ruim? A crise de consciência deu febre, dor de barriga, de estômago. Depois dessa achou que tinha aprendido uma lição. Mas não sabia qual. De repente que trair fazia mal ao estômago. Ou que deus castiga quem mente. Mas nada que realmente pudesse ensinar algo como ser humano. Pensou que o tempo e outras experiências acabariam esclarecendo esses episódios.

Dez anos depois lá está ela, novamente perdendo o sono.
Ele é fotógrafo. Magro, alto, ombros peludos. Cabelos crespos e ralos, pele grossa e melada. Está longe de ser a primeira imagem que gostaria de ver assim que abre os olhos pela manhã. Mas ele é fotógrafo. Ele vê tudo de um jeito poético. Enxerga beleza em ângulos tortos. Repara naquele pedaço de corpo que só você vê que é tão bonito. E descobre outros que você desprezava.

Sei por que ela sonha tanto com ele. Por que passa a mão nos cabelos, encolhe a barriga e força a lordose assim que ele passa. Sei tudo. Não é vontade de dar, de estar junto. Não é romance, não é vontade de compartilhar uma história, uma vida, de preparar um café da manhã na cama. É querer ser a musa, a inspiração. A que faz ele querer trabalhar feliz. Aquela para quem ele agradece quando ganha um prêmio. A dedicatória do livro. O tema da melhor exposição da carreira dele. E talvez ela vá atrás. Talvez use a mesma tática que usou quando era uma menina. Bata à porta com uma desculpa besta, finja que é frágil e viva uma história.

Depois de pensar, pensar e pensar ela veio pedir minha opinião.

- Vai ver não nasci pra amar, sei lá.

- Vai ver que isso que você anda procurando não é amor.

- Eu quero um cara que babe por mim, só isso. Que nem cachorro
raivoso. Isso me dá segurança, sabe? Eu sei que parece carência mal direcionada, mas foda-se.
- Então desencana. Esquece amor. Fica todo mundo procurando amor, amor, amor e nem sabe direito o que quer. Pelo menos agora você sabe: quer ter o ego massageado o tempo todo.
- Sou uma vaca por causa disso?

- Não. É só uma frustrada a menos no mundo.


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28.1.09

Puta sorte

Se apaixonaram em condições adversas: ele tinha acabado de furar o pneu em frente ao prédio cinza e preto no fim da rua, onde manobrava todos os dias antes de ir pro trabalho. Ela vinha caminhando, olhando para o chão. Chegava trazendo o pão e o jornal. Um pedaço da baguete ainda quente já havia sido devorado enquanto ela andava. E antes de subir, precisou rir da situação que acabou de ver: ele agachado, um pedaço das costas e outro da bunda aparecendo, xingava o pneu.

- Que merda!

Caiu sentado no chão depois de ver a chave escapulir da porca. Era a primeira vez que precisava trocar um pneu. Ela se aproximou com voz rouca e doce perguntando se ele queria ajuda. O carro ficou ali mesmo e o pneu continuou furado. Mas minutos mais tarde eles estavam na cozinha do apartamento dela tomando café e falando sobre a vida. Continuaram a conversa no quarto. Na sala. No corredor. De novo no quarto. No dia seguinte, foi demitido por não ter comunicado que iria faltar.

Ele nunca havia se apaixonado com tanta intensidade. O que está acontecendo era a pergunta que se fazia todos os dias enquanto escovava os dentes se olhando no espelho.
Arrumou um novo emprego depois de três meses. Iria ganhar menos, mas finalmente a angústia terminaria. “Pelo menos tenho alguém do meu lado que me ama.” E o amor dos dois ficava cada vez mais forte. E os contratempos, cada vez mais frequentes. Ele se sentia constrangido com tantas faltas de sorte e dizia que isso nunca tinha acontecido antes. Ela ficava ao lado tentando consolá-lo. Difícil era arrumar o que dizer depois de cada experiência trágica: um assalto, uma briga de rua que acabava sobrando porque ele passava naquele momento, um tropeção, a batida na pilastra do estacionamento, o café que caía na camisa na hora da reunião, os esquecimentos do celular, da carteira, do guarda-chuva.

- Amor, você sempre foi assim, sem sorte?
- Não, nunca...de um tempo pra cá que isso começou.

Estavam perto de fazer seis meses de namoro e ela sugeriu um restaurante novo, com poucos lugares, que dava pra ir a pé. Antes de a sobremesa chegar, ela estava ao telefone pedindo socorro ao paramédicos. Ele, no chão do restaurante, se contorcia de dor. O diagnóstico veio algumas horas depois: apendicite.

Verdade seja dita: era um cara bem-humorado e otimista. Desses que acordam sorrindo e dão bom-dia no elevador. Mas com tanta falta de sorte, não conseguia mais achar graça de nada. Começou a se questionar o porquê de viver. Não gostava do trabalho. Deixou de gostar da cidade onde vivia. E o pior, começou a gostar menos dela. Vou terminar com tudo, pensou.

- Chega.

Marchou até a casa dela, pisou num cocô de cachorro e na mesma hora viu que ela estava na janela. Mas não houve tempo para conversa. Um vaso de planta que ficava no parapeito da cobertura, no décimo quinto andar, acertou a cabeça dele causando traumatismo craniano e morte instantânea.

Mas é importante dizer os fatos como realmente aconteceram. Ao vê-la na janela, olhando pra ele, começou a pensar se realmente conseguiria terminar. Adorava aquela menina. Enquanto pensava, o vento movia o vaso de planta, que quase na ponta do parapeito, chegou a parar de balançar por alguns instantes. Ele decidiu então que não terminaria. Nessa hora, o vento decidiu soprar mais forte.

12.1.09

Sustento


Jacira tinha um talento. Era a melhor vendedora de sutiãs do bairro. Quiçá do mundo. Via, diariamente, peitinhos de tudo que é tipo e sempre sabia qual sutiã faria o milagre de levantar aqueles mais jururus. Mas algo a atormentava. Sua religião, rígida e conservadora, a deixava confusa quanto à dignidade de seu ofício. Por que deus foi dar um dom tão estranho pra ela?

Defendia a castidade, achava que mulheres deviam viver pelo marido, entendia que homens fazem besteiras porque são homens. Mas quando entrava na loja, pedia perdão após cada venda. Principalmente as más intencionadas, no ponto de vista dela, claro.

Dava de tudo na loja. As sem-peito querendo um engana-bofe, cheio de enchimento. As M, as vesgas, os peitocos com formato de escorregador, os bem redondos, os murchos, os que invadiam a área do sovaco, os que davam oi pro umbigo e os falsos, que davam oi pro queixo. E por mais que olhar tetas alheias não fosse um passatempo legal, ela entendia da coisa. As clientes saíam sempre satisfeitas, seguras e empinadinhas. Ainda que pura enganação.

- Moça, preciso de um sutiã bem sexy, pra uma ocasião especial.
- Aniversário de casamento?
- É, mais ou menos. Pra comemorar.

Ela coçou a orelha, desconfiada. Sentiu cheiro de Pinho Sol ali. Aquela era puta na certa. Ofereceu um conjunto completinho, com corpete, cinta-liga, tudo rendado, pequeno, enfiado.

- O que acha desse?
- Nooooossa, é isso mesmo.

Mais uma mulher feliz saía da loja, pronta pra esquecer as celulites, estrias e assumir o posto da mais gostosa do mundo. Ao menos no quarto onde estivesse. E Jacira corria para os fundos, pedia perdão, rezava tudo que sabia e voltava ao trabalho, pensando que precisava de dinheiro para completar o enxoval pra casar com Murilo.

Nesse dia mesmo, ela recebeu uma visita.

- Oi, Jacira, lembra de mim?
- Claro, claro. Dona Celeste. Tudo bem?
- Tudo ótimo, Jacira. Lembra que vim aqui comprar um sutiã pra reconquistar meu marido?
- Sim, se lembro. Me conta, como foi?
- Foi um sucesso.
- Ele gostou foi?
- Nada, aquele bosta nem reparou. Pra mim foi a gota d’água. Terminei tudo.
- Sangue de Jesus tem poder!
 - Pois é. Larguei meu marido, estou muito feliz.
- A culpa foi minha...
- Culpa nada, Jacira. O mérito é teu. Aquele sutiã levantou mais que esses peitinhos aqui. Levantou minha moral, empinou até meu nariz. Cansei de ficar querendo agradar homem. E justamente quando pensei em mim, quando vi que posso me cuidar, que sou sim uma mulher bonita, me aparece o Dório.
- Dório? – a voz de Jacira mal saía.
- Um vizinho meu. Não aconteceu nada não. Mas acho que vai. Tem um clima rolando, sabe? Mas nem tô esquentando demais. Tô deixando acontecer, sabe como? Voltei a malhar, a ir ao cinema, a sair com meus amigos.
- É, vendo assim não parece tão ruim.
- Que ruim que nada, mulher. Ó. Vim pra agradecer e dizer que te indiquei pra tudo quanto é amiga.
- Ah, muito obrigada.

Era informação demais para Jacira. Deus não ia deixar essa passar. Alguma coisa ruim iria castigá-la. Em vez de esperar a vingança nos céus cair sobre sua cabeça, ela mesma providenciou uma penitência. Se absteve de comer doces, sua paixão, sua fuga para a falta de sexo, até o casamento. Mal sabia que isso seria o começo do fim.

Sem doces, Jacira começou a ficar triste, irritada. Passou a brigar com Murilo à toa. O trabalho rendeu menos. Um dia chegou a chamar o motorista do ônibus de burro. Precisou tomar uma decisão radical. Largou o emprego, se casou logo e abriu um negócio do lado da igreja. Deu à loja o nome de Levantai. Continuaria vendendo sutiãs, mas agora, apenas para mulher casada.

O negócio foi um sucesso. As discípulas de seu templo adoraram a idéia e viraram clientes assíduas após os cultos. Quem não resistiu à descoberta da feminilidade e da sexualidade das mulheres foi a igreja. Fechou em três meses.

ilustração em vidabesta.com