29.9.10

Um minuto



- Alô, mãe?
- Oi, Lia. Como você tá, minha filha?
- Tô indo.
- Indo? Indo pro trabalho?
- Não, mãe. Não tô. Na verdade... ah, vou contar logo antes que a coragem evapore. Eu pedi
demissão. Pedi, pedi mesmo. E antes mandei aquela Lúcia, do meu departamento, mandei ela tomar lá onde é mão única. Mentira. Mandei ela enfiar o dedo e rasgar em cruz. Eu sei mãe, eu sei que você disse pra eu ter paciência. Juro que tentei. Até tomei uns remédios tarja preta pra conseguir dormir, me acalmar, mas não funcionou. Aí mãe, ai, me desculpa, mas eu fumei maconha mesmo. Mas eu não comprei não. Plantei, viu? Mais ecológico, menos arriscado. O Arnaldo, sabe? O namorado que você adorava tanto, ele meio que tinha uns contatos, que tinham uma estufa e, ah, deixa pra lá. Eu terminei com ele mesmo. Quer dizer, ele me pegou com o Júlio, pronto falei, mãe. Pegou a gente lá, fazendo um movimento. O pior é que minha menstruação não veio. Enfim, mãe, é isso aí. Não sou virgem, não sou santa, posso estar grávida do Arnaldo, ou do Júlio, gosto de maconha e tô desempregada.
- Alô? Alô?
- Mãe?
- Oi, Lia. A ligação sumiu. Você disse alguma coisa?
- ... disse que tá tudo ótimo e que fim de semana que vem vou visitar você, tá?
- Ótimo. Traz o Arnaldo, viu? Um beijo. Juízo.


ilustra do Galvão

3.8.10

Reencontro



- Marisa?
- Marília.
Ele levou a palma da mão ao rosto envergonhado com o engano.
- Desculpa, desculpa. É que a gente não se falava muito na escola.
Ela sorriu e colocou a mão no ombro dele, tentando descontrair e aproveitando para tirar uma breve casquinha.
- Eu sei, não fica sem graça. Eu também não lembro o seu.
Na verdade ela lembrava bem, mas sabia que um homem daqueles não podia ganhar um elogio tão facilmente.
- Luiz. É que a gente sentava longe um do outro e...
- E eu era megabaranga.
Ele ficou sem saber se ria com a direta dela, o que significaria que concordava, ou se mentia gentilmente. Assim que o viu sem jeito, ela riu e disse:
- Eu sei que era esquisita. Não precisa ficar sem graça.
- Você era, como se diz?... exótica.
Ela não conteve o riso.
- Que bondade a sua.
- Mas você está bem diferente. Tá mais…
- Gostosa?, cortou ela sem a menor cerimônia.
Ele ficou novamente sem jeito, mas entrou no ritmo e continuou:
- Eu ia dizer bonita, mas quem sou eu pra negar o gostosa. Maaaas entããão, disse ele prolongando bastante as vogais, buscando ali tempo para refletir sobre o mole que havia acabado de dar e pensar em como continuar demonstrando interesse sem parecer exagerado - Veio ver um filme?
- Hum, na verdade vim tomar um café.
Ele pensou em perguntar se ela estava acompanhada. Ela ficou aguardando a pergunta, tentando não ser tão abusada. O segundo de silêncio desconsertaou os dois. Era fato que estava rolando um clima. Na tentativa de recuperar a conversa sem constrangimentos, os dois começaram uma frase ao mesmo tempo.
- O que você, disse ele.
- Sabe quem, disse ela.
Ele se desculpou por interrompê-la. Ela falou "que isso, não foi nada", mas ficou pensando em que pergunta ele iria fazer.
- Continua, Marília.
- Eu ia dizer que você não acredita em quem vi aqui.
- Algum ex-professor?
- Não. Muito mais surpreendente. Uma dica: a gostosa da escola.
- Lurdinha coxão?
- Ela mesma. Olha ali, sentada no café.
- Não tô vendo…
- Ali, na mesa do meio.
- Do lado daquela senhora?
- Senhora?
- A de azul.
- Essa de azul é a Lurdinha.
Ele se espantou, mas foi delicado ao tentar disfarçar tudo que passava em sua cabeça. Percebendo a situação, ela emendou:
- Eu sei. Ela mudou, né? Ela era a gostosa, a popular. Com aquelas coxas não precisava ser simpática mesmo.
- E nem inteligente. Todo menino colocava o nome dela nos trabalhos. Já você era mais quieta. Usava aqueles óculos modernos.
- Que fofo você tentar amenizar. Eram bizarros mesmo, pode falar.
- Pode?
- Pode, ela sorriu.
- Eram, eram bizarros, ele confirmou arancando um brilhinho dos olhos dela. Mas me diz, vocês têm algum contato?
- Você quer saber se eu sei o que aconteceu com ela, né?
O sorriso dele entregou a surpresa boa que aquela situação toda representava pra ele.
- É, fiquei curioso.
- Bem, eu tenho uma teoria, uma teoria de verdade. Tem até nome. É EBA. Excesso de Beleza na Adolescência.
- Ah, é? disse ele dando um passinho discreto pra frente e se aproximando dela. Me conta essa teoria.
Ela notou a aproximação e fez um esforço descomunal para se manter focada no que ia dizer.
- É assim. Uma adolescente muito bonita não tem que se esforçar pra ganhar a atenção dos outros. Elas podem falar menas, gostar de funk, vomitar rodando a cabeça que nada, nada vai impedir que os garotos se matem por um beijo delas.
- Isso é verdade. Enquanto aquelas que não arrancam um suspiro de ninguém têm que correr atrás e comer pelas beiradas. Têm que ser divertida, inteligente, ter sacadas.
- Exatamente. Você entendeu.
- Uau. Então ela barangou porque quis se livrar da praga da beleza? Quis descobrir o que havia por trás daquelas pernas torneadas e daquela bunda esculpida?
- Boa tentativa. Mas não foi isso não. No caso da Lurdinha foi porque ela engravidou de um idiota, casou com ele, tomou uns, sei lá, 57 chifres, se separou e comeu 20kg de tristeza no sabor doce de leite com chocolate.
- E você, além de ficar bonita, se especializou em piadinhas?
- Eu era a feia que tinha que se esforçar. Desenvolvi outros dotes.
- Você não quer levar seus dotes pro cinema?
- Tá me convidando?
- Você conseguiu me deixar sem graça umas 15 vezes nessa conversa.
A sinceridade dele a surpreendeu dessa vez.
- Ai, desculpa. Sou uma falastrona mesmo.
- Ah, tadinha. Não era pra ficar sem graça. Esse papel é meu. E sim, tô te convidando.
Era inacreditável. Dez anos depois de ser a feia simpática do colégio, ela estava levando um papo de igual pra igual com sua paixonite adolescente. E enquanto isso, a gostosa da 5ª série mostrava toda sua falta de beleza e charme no café do cinema. Mas depois de tantos anos, ela tinha que mostrar que sim, estava bonita, interessante e claro, interessada. Mas nem tanto. Afinal, Luiz era uma raridade: um sobrevivente, sem sequelas, do EBA. Continuava lindo como no colégio, mas estava ainda mais fofo. Ela precisava ser sagaz. Ser diferente do que ele estava acostumado. E assim, agiu como uma ex-feia. Usou todas as suas habilidades para testar o nível do interesse do rapaz.
- Luiz, eu realmente queria ir, mas é que hoje não posso.
- Ah, que pena...
- É... já tinha uma coisa marcada.
- E outro dia? Pode?
Marília precisou olhar para baixo nesse instante. O medo de demonstrar no olhar toda a explosão de felicidade e hormônios era grande. Não podia colocar tudo a perder ali.
- Boa ideia. Me dá seu telefone?
- Me dá você. Vai que você não liga?
- Toma meu cartão, mais fácil.
- Hum, cheia de moral... Bem, já vou, tem até fila pra minha sessão.
Se despediram com um abraço perfeitamente simétrico e se viraram. Ele foi para o cinema pensando nela. E ela foi com as pernas bambas até o banquinho mais próximo.

ilustra de galvão em vidabesta.com

20.5.10

O último - final

Se pudesse dividir sua vida em fatias qual o tamanho que o passado ocuparia neste bolo imaginário? Alguma vez já teve a sensação de não ver o presente acontecer por pensar demais no que já passou? Passou somente no tempo cronológico, mas as sensações ainda estão todas aqui. O quanto você é capaz de superar suas dores e suas perdas? Consegue enxergar quando chega esse momento, de ir para o outro lado e começar a viver realmente sem um peso nos ombros?

Luísa acordava todos os dias desejando que Roberto deixasse de vez seus pensamentos. Mas teimava em acreditar que estavam conectados por alguma frequência e que existia uma comunicação silenciosa entre eles. Preferia pensar assim do que aceitar a ideia de tudo ter sido nada, de toda a intensidade não ter passado de um entusiasmo apenas dela. Somos mestres em criar situações que somente nós enxergamos. Nos forçamos a encaixar a pessoa que está ao nosso lado nas nossas ambições. Imploramos para que aquele que divide a cama com você se encaixe na sua lordose e ofereça o ombro como travesseiro.

Já não sabia em qual dos dois pensava mais, se em Roberto ou se em Eliane. Tinha pensamentos absurdos com os dois, a ponto de querer estar entre eles, sendo ouvida e recebendo afeto. Todos os seus sentimentos estavam assim, completamente irracionais, sem parâmetros, alternados, inconstantes. Loucura deve ser isso. Tinha pena de Eliane e sabia que ela viveria tudo ou talvez pior do que ela viveu. E riu ao mesmo tempo. Pensou novamente em dedicar a crônica da próxima semana para ela.

“Ele não é fiel a você, mantive encontros com ele enquanto você estava trabalhando. Fui na sua casa, vi suas fotos, vi suas coisas, vi o quanto ele esta moldando você da mesma forma como fez comigo. Mas não julgue como traição. Ainda faço parte dele e você sabe disso. Estou mais presente do que ele próprio na sua vida. Assim como você está na minha. E isso me permite entender o que ele tanto gostou em você. Você topou o teatro.

Ele se faz de vítima e você diz o que ele quer ouvir. Ele se diz fraco e você retruca: você é forte. Ele se julga mau e você desfaz dizendo o quanto ele é bom. É uma boa maneira de tirá-lo do poço em que ele mesmo se jogou. Só que um dia a temporada de shows acaba. Você vai tirar a máscara e vai se tocar que nada do que você falou fez ele mudar ou melhorar. A peça é mesma e quem escreve é ele. Eu estou me livrando de vocês. Ainda vejo tudo de camarote e torço para que realmente alguma coisa nessa história toda tenha um final diferente. Quanto a você, aproveite. Se quiser saber o final da história, sabe onde me encontrar.”

Ao terminar o texto, Luíza nem mesmo o revisou. Clicou em enviar antes que se arrependesse. Quando a coluna foi publicada, ela leu linha por linha, tensa, com receio de se arrepender. Mas ao final, como que uma redenção merecida, mas tão inesperada, como achar dinheiro no bolso, ela sentiu-se arrebatada por uma sensação de liberdade. Noites de choro, fobias, planos maquiavélicos, tudo enfim foi substituído por um sentimento sorrateiro, mas muito bem-vindo.

Conseguiu ler sem sofrer, sem sentir o refluxo que trazia a história de volta ao esôfago. Porque aquela não era mais sua história. Era a história de duas pessoas, felizes ou não, loucas ou não, que se amam ou não, mas certamente fadadas à repetição e à mediocridade. Como é que algo assim levou anos pra parecer tão óbvio? Ver a situação do alto, como leitora e espectadora, deixou claro que não era mais preciso se vingar. Que a maior vingança não viria dela. Viria deles mesmos. Da convivência, da rotina, do peso do dia a dia, que fatalmente acabaria por consumir aqueles dois. Tantos planos de sangue, de escândalos e a vingança maior estava ali o tempo todo: condenar um ao outro. Nada que ela pensasse poderia ter sido mais cruel do que isso.

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com

30.3.10

O último - 2a parte

Eliane chegou mais cedo e escolheu a cadeira do meio, na terceira fila, bem de frente para o palco. O teatro acabara de abrir as portas e as luzes ainda estavam acesas. Ela pode reparar na pintura com data do início do século XX e nas cortinas de um vinho desbotado que cheiravam a mofo. “Vou espirrar no meio da peça”.

Roberto conseguiu convencer Luísa a não assisti-lo desta vez. Na verdade, há algum tempo que ela também não tinha mais prazer em vê-lo. Os finais eram sempre os mesmos. Depois da apresentação, ele queria emendar em algum bar sem graça, ela louca para voltar para casa e dormir o mais rápido possível.

- Já vou indo, não quero me atrasar desta vez, falou enquanto fechava a porta ao mesmo tempo. Roberto tentou ser natural mas pouco conseguiu disfarçar o nervosismo. Só pensava em rever Eliane.

Por mais que Luísa perguntasse se ele estava saindo com outra pessoa, Roberto negava insistentemente. De nada adiantava, desconfiança era algo que latejava em sua cabeça. Tentar descobrir cada mentira do marido se tornou uma obsessão. Traição era seu assunto preferido. Cogitava a possibilidade de aceitar e entender as razões do comportamento de Roberto, comprou livros de filosofia, antropologia, feminismo, tudo para se convencer de que poderia mudar seu ponto de vista e aceitar a situação. E aí residia sua maior vaidade: queria ser reconhecida como alguém capaz de aceitar o que é impossível, de passar por cima feito um trator de todas as mágoas abertas e ficar com ele que ainda era seu grande amor.

“Amor? O que define isso?” Queria ficar com Roberto por que não aceitava a ideia de perdê-lo para outra ou por que tinha medo de ficar sozinha?

Ela descobriu o número do telefone de Eliane, e agora pensava se teria coragem de confrontá-la. Não era bem coragem, não tinha mais forças. Quatro anos atrás, descobriu o primeiro caso de Roberto e se separaram pela primeira vez. Mas não conseguia se ver sem ele e, mesmo decepcionada, foi ela quem quis voltar.

Descobriu também que Roberto conheceu Eliane em uma de suas apresentações e se culpou por não estar presente em todas elas. Sem dúvida, nos últimos meses, Luísa preferia ficar em casa escrevendo. Já estivera bem mais próxima, acompanhava o marido em todas as cidades, buscava patrocínio, vendia camisas com o nome da peça. Mas toda essa dedicação de nada valia. Queria que ele sentisse sua falta na primeira fila do teatro, que ele reclamasse pela sua presença. Não ir vê-lo era uma maneira de dizer que não se importava mais com ele e que isso provocasse uma reação. Mas o tiro saiu pelo outro lado.

Roberto era um incorrigível e, apesar de ter feito juras e mais juras, o casamento deles ficava pior a cada dia. Sem ter com quem dividir todas as suas angústias, Luísa usava seus textos para entender a si mesma. Ao escrever, conseguia organizar seu pensamento e formular hipóteses. Criava histórias a partir da sua própria. E sem querer percebeu que era por ali poderia se vingar a sua maneira, sem fazer nenhum escândalo. E ainda teria a possibilidade de dizer: é tudo ficção.

Queria incomodar Eliane, mostrar que ela não estava livre da mentira de Roberto. Sim, queria perturbar. Queria que ela sofresse tanto quanto ela. Queria machucar os dois da mesma forma como fora machucada. Esse era o plano. E ele estava apenas no começo.

Ilustração do Galvão.

18.3.10

O último

Todas as sextas ocupava a coluna de crônicas do jornal. Era lida por milhares de pessoas e recebia cartas que desejavam desde longa inspiração até pequenos bilhetes com ameaças assustadoras. Sabia que seria assim quando aceitou a proposta para ser cronista. Gostava de falar o que pensava. Ou melhor, falava sem pensar por justamente dizer tudo que lhe vinha à cabeça, sem filtros, disfarces ou excesso de metáforas. Narrava em primeira pessoa e sabia que cada frase sua espetava cuidadosamente seu alvo da semana.

Mas uma leitora era especial. Leu o primeiro texto há três anos. E então passou a repetir o mesmo ritual. Ao fim de cada texto, pegava a tesoura e seguia a linha que margeava a coluna, procurando manter reto o corte até chegar ao mesmo ponto de partida. Com o pedaço de jornal em mãos, lia-o mais uma vez, devagar, palavra por palavra e em seguida colocava o recorte junto aos outros, na primeira gaveta do criado-mudo. As sensações que se seguiam já eram conhecidas. Tinha calafrios, os olhos ardiam e a boca secava. Mas ao invés de parar de ler, esperava o próximo com ainda mais ansiedade.

Há três anos também que a escritora começou a achar que alguém mais fazia parte de seu casamento, e por mais que tivesse certeza disso, engoliu uma história esfarrapada e tentou seguir em frente. Fez do seu espaço no jornal um confessionário. Mas tudo precisa ter um fim e resolveu escrever um último texto. Esse era o seu presente para ela: a verdade.

“Ele a traiu mais de uma vez e ela descobria a cada novo nome. Tornou-se obsessiva, mexia nas coisas dele, fuçava gaveta, bolsos, comportamento típico de uma mulher desconfiada. Descobriu pela conta de telefone essa última, que até hoje está com ele.

Se separaram depois de um ano vivendo um tormento. Ele não tinha coragem de sair de casa, ela não tinha coragem de expulsá-lo. Depois de separados, voltaram a se encontrar, a tentar às escondidas uma brecha para a salvação do que já não tinha mais terreno para viver. Ela tentou de todas as formas se afastar, ele a procurava para falar sobre seus medos e aflições. Não a deixava em paz. Não tirava ela da cabeça.

Dizia a todo momento o quanto a amava e emendava logo em seguida dizendo que era impossível ficarem juntos. Ela via através de todas essas palavras e via ele repetir com a outra o que fizera antes com ela. Descobriu que ele usava com as duas os mesmo apelidos carinhosos, as mesmas brincadeiras e lhes dedicava um amor parecido.

Entendeu que ele continuava mentindo porque sua insegurança era tão intensa quanto ele. Viu a outra ocupando o lugar que era seu nos roteiros de viagens, nos restaurantes, nos cinemas. Suportou tudo isso sozinha, sem dar um grito, sem fazer um escândalo, sem machucar ninguém. O único conforto que tinha era a certeza de que um dia tudo volta para a superfície, por mais que você tente manter ali bem no fundo. Um dia, um novo nome iria aparecer e o ciclo se repetiria. Ele não mudou. Ainda mente, é egoísta, confuso, perdido. Ela vai descobrir, ele vai negar, ela vai vasculhar as coisas dele, ele vai se aborrecer e gritar com ela, ela vai chorar, ele vai se desesperar. Só mudam os personagens. A história vai continuar sendo a mesma.”

Salvou o texto e mandou para o jornal. E torceu para que, dessa vez, ela não lesse.

Ilustração em vidabesta.com

7.2.10

Carta aberta

Docinho, de novo estou atrasada com o texto para o blog. E de novo posso arrumar inúmeras justificativas injustificáveis. Não sei se está incomodando você esse tempo em que não estamos tendo para falar de coisas corriqueiras. Pra mim, tá começando a ficar bem chato. Porque gosto de saber das coisas comuns, se você está aproveitando as promoções do quase fim do verão, se está lendo algum livro, pra onde tem ido, que filmes tem visto, se seu apartamento já ficou pronto. Só não tenha dúvidas de que acordo pensando em duas coisas: preciso escrever e preciso falar com a Val.

Hoje, em especial, gostaria de estar perto de falar de como estou me sentindo. Acho que estou perto desse fim de balanço. E, talvez por isso, não tenho tido assunto suficiente para transformar em um texto. Você inventa histórias e eu só sei falar de mim mesma. As poucas que criei não chegam a fazer número para eu poder acreditar que também consigo.

Como acabei transformando meus textos num meio de vomitar todas as dores que me incomodavam e após cinco anos eu me colocando como a personagem principal de quase tudo que está escrito aqui, parece que esvaziei. E agora? Sim, uma redatora de Merda, com m maiúsculo. Além de atrasar o blog transforma ele em consultório sentimental.

Cuspi aqui muita coisa que estava agarrada e posso dizer que me sinto melhor – mas que fique bem claro, foram cinco anos pra me recuperar de um tanto de trancos. Pelo jeito, vou decepcionar os autores de auto-ajuda. Não consigo ser feliz em dez lições. Dez mil, talvez.

Quero comentar com você o último filme que vi, Deixa ela entrar. E saber se você gostou tanto quanto eu. Quase não tenho saído, e agora que Léo voltou a estudar, quero pegar no pé dele para que de novo não fique quase reprovado.

Fui no restaurante que éramos para ter conhecido, adorei. O lugar é bem bonito e a comida não decepciona. O preço é honesto e os garcons, sorridentes. Precisamos ir da próxima vez.

Seu aniversário está próximo e torço muito para que você esteja por aqui, existe uma tradição de festas cheias de frenesi, inaugurada por você e Dani, que não pode deixar de acontecer.

Estou meio lerda para formular ideias, tenho trabalhado, ou melhor, executado um sem número de pedidos. E como estou novamente fora de minha praia, me perco, morro de medo de esquecer alguma coisa, tenho sonhos com clientes brigando comigo e na verdade eles brigam mesmo. Não sei lidar muito bem com isso, fico um tanto quanto atormentada.

Minha mãe ainda está aqui em casa e sinto que nosso tempo já está perto da data de validade. Todo ano é igual, ela chega, eu fico entusiasmada, me empolgo para sair, levá-la para passear, ir ao cinema, tomar café. Mas alguma coisa entre a gente é frágil, e em um mês já estamos nos tropeçando. Depois do carnaval, ela volta pra cidade dela. E eu volto a ser dona da minha cozinha.

Além desta carta, iniciei outros textos, e vou deixá-los prontos para não passarmos por isso novamente. Em novembro o blog faz cinco anos e quero entupir isso aqui de textos dignos. Cansei de sentir que estou atrasada.

Beijo,

Docinho

Ilustração do Galvão.