26.6.08

Vai se fuder, Arlindo

O estrago começou na faculdade, com todas aquelas discussões sem conclusão, com os calores das vozes e o som dos pulsos que se agitavam a cada descoberta ou discordância. O que antes não entendia passou a me ser necessário, diariamente. Mas só alguns professores eram mestres na arte de promover debates inflamados, o professor de fotografia que me deu novos olhares e o professor de criação, o Arlindo, que me ensinou como se vê um filme. O dever de casa foi com Ata-me, do Almodóvar. Cheguei na aula e ele veio direto: o que achou do filme? Respondi com aquela cara de estudante que não sabe o que vai fazer da vida: ah, legal, meio louco, mas gostei.

A expressão dele mudou e a sala percebeu que iria haver uma reviravolta naquele papo ainda sem merecimento de atenção. Arlindo começou a falar sobre Almodóvar, sobre todas as nuances da preciosa película, dos contrastes de cores, sobre o sagrado e o profano, o quente e o frio, o permitido e o proibido, o prazer e a dor, a violência e o afeto. E mais uma lista disso e daquilo, de antagonismos que eu jamais teria percebido sozinha.

Acho que provavelmente foi aí que deixei de ser uma pessoa leve e simples – fiquei burocrática. Graças ao Arlindo, que infelizmente nem vivo mais está para eu agradecer ou xingar, passei a ver filmes e ler livros com aquele jeito de gente papo-cabeça. E passei adorar uma conversa mais intensa, um bom drama, uma dor existencial. Coincidentemente, a aula do Arlindo era a última na quarta-feira e antes dela tinha o horário vago. Aproveitava para ir ao cinema pulguento da universidade e chegava na sala com Wim Wenders, David Lynch, Gus Van Sant rondando minha cabeça.

Hoje todos os buracos são mais embaixo. Tento ver um significado diferente num pão com manteiga. Virei uma chata. A ponto de me emocionar numa livraria, de selecionar as pessoas pelo que elas assistem, de amar mais o sofrimento que a alegria. Homens melancólicos? Adoro. Sofrimentos alheios? Manda. Como se os meus não bastassem. E se está tudo bem, começo a sentir vontade de estragar pelo simples prazer de ter que consertar logo em seguida. Sou capaz de trocar uma noite de sexo selvagem por uma conversa cheia de referências, questionamentos, dúvidas, lágrimas, risos, dores de cabeça e nenhuma conclusão. Mas seria muito difícil não terminar em sexo porque tudo isso me deixa tão animada quanto um bom amasso.

Dias atrás, recusei o convite para ir ao cinema ver um filme desses bobinhos, que o bonequinho do Globo dorme enquanto assiste. Também não estava interessada no cara, mesmo ele sendo forte, bonito e atencioso. Mas se ele tivesse me chamado para ver um filme francês, iraniano, checo ou qualquer coisa parecida, iria pensar duas vezes. Porque certamente, depois do filme, iríamos falar sobre as impressões que tivemos, sobre o que sentimos, sobre o que lembramos e tudo o mais que adoro. Daí pra me apaixonar é um pulo. Só que infelizmente não se acha um exemplar assim todos os dias. É, Arlindo, sua bicha velha, você me fudeu.


Ilustração de Maurício Nunes: http://mauricionun.blogspot.com

17.6.08

Entendendo


Ele só queria entender.
Eu pensava que era mania de mulher essa coisa de querer entender. Puro machismo.
Ele estava lá, completamente perdido, tentando entender as atitudes dela. Na verdade, tentando decifrar por que as atitudes divergiam tanto das palavras.

Os encontros tinham um roteirinho fixo. Durante o cappuccino, a gente celebrava a vida de solteiro, falava das últimas aquisições sexuais, do porre que certamente seria o último, dos planos de passar um tempo fora. Quando chegavam as quiches, lorraine pra mim e quatro queijos pra ele, era hora de reclamar do tempo que passa cada vez mais rápido, do trabalho estressante, do amigo que sumiu. Enfim, na sobremesa, o assunto era ela.

Sempre escutei com paciência. Sabia como era passar por aquilo e achava quase encantador um homem sentir o mesmo. Ele nunca sabia como agir quando encontrava a pulga, apelidinho carinhoso e apropriadíssimo que arrumei pra ela. Ficava sem jeito com as mãos, falava umas merdas sem sentido. Mas no fim, os meios pouco importavam. Terminavam a noite furando algum lençol de motel com os cigarros que ela insistia em fumar até cochilar. O sexo era foda, apesar desse trocadilho. Tinham conversas para semanas. E as declarações eram mútuas. Você é foda. Quero te ver de novo. Como não te encontrei antes?

- Já te disse que ligo no dia seguinte? Sempre. Mas ela não atende.
- Nunca?
- Uma vez sim. Mas parecia que nada tinha acontecido. Vou ao banheiro, peraí.

Sentada lá, fazendo bolinhas de guardanapo, lembrei de outro dia, quando esbarrei num filme enquanto trocava de canais. A cena era clássica. Um cara seduzindo uma moça com as palavras e gestos mais mecânicos possíveis. Era o típico discurso em que ela diria “aposto que você fala isso para todas”. Ele diria que não. Ela saberia que estava mentindo, mas queria tanto dar pra ele que fingiria acreditar em tudo, pra poder manter a pose de moça inocente e usada. Assim, quando ele sumisse da face da terra e quebrasse aquelas promessas que pareciam tão sinceras e puras, ela diria “eu sabia que terminaria assim. aquele canalha.” E a grande verdade era essa. Ela sabia que terminaria assim. Mas também queria sexo, tanto quanto ele. Não estava apaixonada, mas como dar sem estar apaixonada? Como admitir que havia trepado porque o corpo pedia? Não poderia. Fica feio pra uma menina.

De repente, a mulher má que fazia meu amigo sofrer com seus esquivos virou minha heroína. Ela não estava interessada naquela conversinha patética pré-foda. Queria mesmo era fuder e pronto. Não precisava se fazer de vítima, de coitada, de abusada ou de apaixonada. Só que ele não sabia lidar com aquilo. E aí, virava o estereótipo manjado da mulher boba e usada. Com a diferença de ser um homem.

- Tô pensando que em vez de entender ela, é melhor entender você mesmo. Por que fica confuso assim com isso tudo? Por que essa mulher toma todo nosso tempo da torta de chocolate? Você nem é apaixonado por ela nem nada.
- Não sou, mas quero entender.
- O quê? Por que ela não quer nada além de ir pro motel? Nem você quer. Ou quer? Você quer passar as tardes de domingo com ela? Quer ter um cachorro com ela, conhecer a África do Sul com ela, ver o show do radiohead com ela, agüentar a tpm dela? Quer nada. Você quer o mesmo que ela. Sé-qui-ço.
- Você quer dizer que eu não consigo admitir que uma mulher só queira trepar comigo? Que tô me sentindo usado?
- Isso mesmo.
- Tô agindo igual mulherzinha?
- É. Mulherzinha style.
- É né...
- Sim. Você é a mulherzinha Indiana Jones da relação.
- Que porra é essa?
- A que fica tentando decifrar tudo.
- Tá engraçadinha hoje, hein? Acho que tem açúcar demais nessa sua torta
- Mulherzinha, mulherzinha.
- Se eu sou mulherzinha, a pulga é o quê? O homem?
- Não. É o mulherão.
- Odeio quando você detona comigo. Ainda mais na hora da torta. Era pra ser um momento doce. Sua azeda.
- Também te adoro, seu besta. Agora come essa calda e pára de rir, porque você tá ridículo com esse monte de calda de chocolate grudada no dente.
- Agora lembrei por que a gente só fala de coisa triste na hora da sobremesa.

ilustração de galvão.

3.6.08

O sonho

- Sonhou com o que essa noite?

Perguntava-me a mesma coisa todas as manhãs. Mas, na verdade, tinha mais interesse em que eu devolvesse a pergunta – pelo menos era o que eu pensava. Geralmente era assim que se dava nossa comunicação, com voltas, com indiretas, com desvios totalmente desnecessários. E as voltas eram tantas que quando começávamos a nos entender o cansaço ocupava mais espaço que a vontade que querer ficar bem de novo. Seria muito mais fácil me dizer: - preciso contar meu sonho para você. A chave, para mim, está na palavra ‘preciso’. Só que não conseguia perceber tais sutilezas e ele não percebia que tudo podia ser bem mais fácil e objetivo.

- Não lembro do meu sonho...

Eu respondia e ia fazer outras coisas. Escovava os dentes, arrumava o quarto, esquecia de devolver a pergunta. A essa hora, me preocupava apenas com coisas práticas, com o dinheiro trocado para o pão e o jornal, com a empregada que ainda não havia chegado. Quando me lembrava dele, encontrava-o deitado ainda na cama, tomando coragem para levantar. Era assim que nos separávamos um pouco todos os dias.

- Que foi?

O tom da voz. O jeito de perguntar. As duas coisas e mais um monte. Viver junto é isso, ter interpretações erradas acerca das coisas mais banais. Era ótima aluna em Português, mas geralmente me dava mal com interpretação de texto. Entendia tudo do meu jeito. E hoje em dia não é muito diferente. Continuo em recuperação.

- Que foi o quê?

- Por que tá com essa cara?

- Nada, vou tomar banho.

O que poderia ter ficado ali dentro do quarto ia com a gente para a mesa do café da manhã, nos acompanhava até o trabalho e resolvia voltar à cena em forma de bueiro entupido. Aliás, sonhei com isso dia desses.

- Sonhei que a cidade toda tava com todos os bueiros entupidos. Uma sensação muito estranha, senti medo, não conseguia fugir daquela água fétida e cinza.

- Ah, é?...Vai ao supermercado hoje? Se for, me traz um prestobarba?

Ilustração de Maurício Nunes: mauricionun.blogspot.com