
A expressão dele mudou e a sala percebeu que iria haver uma reviravolta naquele papo ainda sem merecimento de atenção. Arlindo começou a falar sobre Almodóvar, sobre todas as nuances da preciosa película, dos contrastes de cores, sobre o sagrado e o profano, o quente e o frio, o permitido e o proibido, o prazer e a dor, a violência e o afeto. E mais uma lista disso e daquilo, de antagonismos que eu jamais teria percebido sozinha.
Acho que provavelmente foi aí que deixei de ser uma pessoa leve e simples – fiquei burocrática. Graças ao Arlindo, que infelizmente nem vivo mais está para eu agradecer ou xingar, passei a ver filmes e ler livros com aquele jeito de gente papo-cabeça. E passei adorar uma conversa mais intensa, um bom drama, uma dor existencial. Coincidentemente, a aula do Arlindo era a última na quarta-feira e antes dela tinha o horário vago. Aproveitava para ir ao cinema pulguento da universidade e chegava na sala com Wim Wenders, David Lynch, Gus Van Sant rondando minha cabeça.
Hoje todos os buracos são mais embaixo. Tento ver um significado diferente num pão com manteiga. Virei uma chata. A ponto de me emocionar numa livraria, de selecionar as pessoas pelo que elas assistem, de amar mais o sofrimento que a alegria. Homens melancólicos? Adoro. Sofrimentos alheios? Manda. Como se os meus não bastassem. E se está tudo bem, começo a sentir vontade de estragar pelo simples prazer de ter que consertar logo em seguida. Sou capaz de trocar uma noite de sexo selvagem por uma conversa cheia de referências, questionamentos, dúvidas, lágrimas, risos, dores de cabeça e nenhuma conclusão. Mas seria muito difícil não terminar em sexo porque tudo isso me deixa tão animada quanto um bom amasso.
Dias atrás, recusei o convite para ir ao cinema ver um filme desses bobinhos, que o bonequinho do Globo dorme enquanto assiste. Também não estava interessada no cara, mesmo ele sendo forte, bonito e atencioso. Mas se ele tivesse me chamado para ver um filme francês, iraniano, checo ou qualquer coisa parecida, iria pensar duas vezes. Porque certamente, depois do filme, iríamos falar sobre as impressões que tivemos, sobre o que sentimos, sobre o que lembramos e tudo o mais que adoro. Daí pra me apaixonar é um pulo. Só que infelizmente não se acha um exemplar assim todos os dias. É, Arlindo, sua bicha velha, você me fudeu.
Ilustração de Maurício Nunes: http://mauricionun.blogspot.com