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- Ô, treco-treco, já pedi pra você não misturar as cuecas sujas
com o resto da roupa.
- Ah, treca-treca. Todo mundo faz isso.
Nada era pior do que ouvir isso. O “todo mundo faz” e suas
variações assombravam o lar cheio de amor de Ana Lúcia e
Milton. Não havia uma bendita reclamação dela que não fosse
rebatida com a maldita frase.
Esquecer de levantar o assento da privada, do aniversário de
casamento, não ajudar a lavar louça, dividir tudo em parcelas a
se perder de vista. Todo mundo faz.
Por mais que tentasse ignorar, Ana Lúcia se irritava cada vez
mais com a desculpa porca do marido. Da onde ele tirou que
agindo igual a todo mundo estaria fazendo a coisa certa? No
começo apelou para máximas infantis:
- E se todo mundo se jogar de uma ponte? Você também se joga?
Se todo mundo comer cocô você também come
- Aí é diferente, trequinha.
Mas ela não acreditava mais. Àquela altura, se Milton oferecesse
um bolo de chocolate, ela olharia desconfiada.
- Trequinho, gritou Ana estatelada no sofá, aproveitando o bom
humor de Milton, que havia acabado de sair do banheiro batendo
na barriga. Amanhã de manhã o pintor vem aqui. A gente precisa
arrastar os móveis todos pra varanda. Tem como desmarcar o
futebol de hoje à noite pra gente ver isso?
Ela ainda foi educada ao perguntar se “tinha como”, quando na
verdade estava sendo imperativa. Milton não entendia as
sutilezas da fala feminina.
- Treca, me pede tudo, menos isso. É semifinal, aninha. Guerreiros
contra os Goonies.Todo mundo vai estar lá.
Ana Lúcia ensaia falar algo, mas corta a palavra antes mesmo de
emitir qualquer som. Engole o ar, tenta disfarçar a expressão de
raiva e diz:
- Não é a casa de todo mundo que vai ser pintada. É a nossa.
- Eu sei. Mas você nem precisa de mim. Chama o Nelson.
- Milton, você acha mesmo que eu ia ter cara de pau de chamar o
vizinho pra fazer um trabalho que é meu e teu?
- Ele já te olha de um jeito diferente que eu sei. Arrasta um
caminhão por você. Imagine então uma mesinha, umsofá. Fácil.
Irritada, Ana Lúcia vira as costas e segue pelo corredor pisando
pesado. Dois passos depois, volta, aponta o dedo na direção de
Milton, ensaia começar alguma frase e então se recompõe.
- Você não tem ciúme? Não tem orgulho? Não tem porra
nenhuma, né?
- Tenho sim. Tenho futebol hoje à noite e todo mundo tá contando
comigo.
Entre maldições e pragas, Ana Lúcia sai da sala e vai embora sem
nem se despedir de Milton. À noite, sem ajuda de vizinho nenhum,
ela arrasta tudo sozinha. Milton chega tarde, depois do futebol,
fedendo a uma mistura de caipirinha barata e cerveja que secou
na roupa.
- Ô, amor... eu ia te ajudar. Mas é que os Goonies ganharam e a
gente fez concurso de quem imitava melhor o Slot.
A história era engraçada, mas Ana Lúcia se manteve imóvel,
olhando para a TV, fingindo escutar o que os repórteres
falavam. Jurava que no lugar da cabeça tinha uma chaleira.
Sentia a fumaça saindo e um apito irritante avisando que a
coisa estava feia.
- Você não pode ficar nervosa. Eu contei pros caras dessa
situação nossa e eles disseram que todo homem precisa disso
mesmo. Não fica chateada. Não tem nada a ver com a gente
enquanto casal. É coisa de homem, sabe como?
Tá entendendo?
Antes que explodisse, Ana Lúcia caminhou para o banheiro e
bateu a porta na cara de Milton. Lá dentro, pegou uma
toalha, apertou contra o rosto e gritou até onde ao
abafamento permitia. Saiu do banheiro mais calma e meio
rouca, e falou:
- Fale qualquer coisa. Admita que não queria ajudar. Admita
que é um merda, um preguiçoso. Mas pare, em nome do
Santo Antônio que me arrumou você, pare de falar que faz
as coisas porque todo mundo faz.
Lembrou-se de todas as vezes em que ele colocou o mundo
inteiro a seu favor de forma totalmente inapropriada. Quando
a pediu em casamento disse ‘vamos casar gatinha? Tá todo
mundo casando, é nossa vez”. Na hora de escolher um
apartamento, cismou que queria Bento Ferreira. “É o bairro
do futuro, todo mundo tá comprando lá”. E a raiva que fez
ela distribuir perdigotos na toalha, foi se transformando em
algo pior. Uma decepção enorme e irreversível.
Um dia, Milton chegou em casa e não encontrou a mulher lendo
no sofá, como de costume. Achou que ela ainda não tivesse
chegado e seguiu para o quarto. Sentiu ainda no corredor cheiro
de cigarro. “Mas que diabos é isso se Ana não fuma?”. Quando
abriu a porta, lá estava trequinha e o vizinho, deitados, cobertos
apenas pelo lençol, fumando um Malborão vermelho.
Enquanto Nelson rolava para baixo da cama, Ana Lúcia se
manteve firme encarando Milton. Parado também ficou ele.
Bufando na porta, indignado, estático. Foram 10 segundos,
que para Nelson pareceram horas.
- Por que você fez isso? Por quê?!
Ela ensaiou um sorrisinho de lado, apenas com o canto da boca.
Lá dentro apenas repetia em silêncio: ué, todo mundo faz isso.
Pensava com força, como criança que se concentra para tentar
mexer objetos. Queria que Milton lesse a mente dela.
Deixou ele se esgoelar na porta.
- Fala! Fala! Eu sei que é vingança. Eu sei que você tá doida pra
dizer que todo mundo faz isso. Num é? Fala! Fala!
E ela se manteve em silêncio. Milton saiu chutando a parede
pintada, os móveis que comprou na loja onde todos amigos
compravam. Mas não ouviu nada dela. Antes tivesse.
Na quarta seguinte foi ao futebol defender os Goonies.
- Qualé, Miltão, cadê a coleira de dedo?
- Deixa pra lá.
- Ih, foi briga. Fica puto não, cara. Todo mundo passa por isso.
Ninguém entendeu por que Milton voou no pescoço de Adélio,
sacudindo ele de um lado para o outro, gritando coisas
incompreensíveis. Nem nunca entenderiam. Milton largou o
futebol e foi largado por Ana Lúcia. E quando perguntam se a
culpa é dele, ele diz que não. Que a culpa é de todo mundo.
ilustração de Claudio França