
- Por que você chora tanto?
- O quê?
- Acho que você chora muito, banaliza o choro.
Eles voltavam do fim de semana, ela no banco do carona, o rosto encostado no vidro tentando ver a paisagem verde que corria ao lado. Ficou pensando no que ele falou. Não tinha uma resposta, o choro simplesmente fazia parte dela. Mas teve medo.
- Você é engraçada. Chora com arte e com porcaria. Lembra do tanto que você chorou na exposição da Camille Claudel? Olhei pra você e só vi um rosto borrado. Você lá, mais parada que as esculturas. Dura que nem todo aquele bronze.
- Você sabe que a história dela me emociona. Por que esse assunto agora? Meu choro incomoda você?
- Não, mas me intriga. Porque chorar com uma exposição de arte acho que até consigo entender. Me emocionei com as fotos do Sebastião Salgado também, aquele monte de criança com olhar triste. Aquilo dói.
- É, eu chorei também...
- Isso eu entendo. Mas você também chora vendo comercial de celular. Chora vendo aquele reality ridículo de modelos. Tenha dó, né?
Não iria adiantar se defender, ele tem razão, em certo ponto. Mas o que poderia fazer? Sempre foi assim, desde criança. Também sentia vergonha das lágrimas bestas que algumas coisas provocavam. Uma música, uma lembrança, uma cena na rua. Achava cansativo ter que explicar o porquê, sentia que o choro era tão espontâneo quanto a sua risada, que também era fácil. Mas estava apreensiva.
- Você não acha que o riso e o choro são dois lados da mesma moeda?
- Nunca pensei assim. Mas quando você chora, por qualquer coisa, me sinto culpado.
- E falando assim eu que vou me sentir culpada daqui pra frente cada vez que eu deixar uma lágrima cair. Por favor, não me venha com essa. Me deixe chorar em paz. Esse assunto tá ficando um pouquinho pesado, você não acha? Daqui a pouco a gente começa a desenterrar coisas do tempo do bondinho. Aí sim, vou chorar com vontade.
- A gente nunca vai superar...
- Fábio, você quer realmente falar disso?
- Não, não. E o livro, você terminou de ler?
- Quase, é meio triste, achei melhor dar um tempo.
- Mariana, quer saber a verdade? Acho que você procura coisas pra se entristecer. Pronto, falei. É filme, é livro, é exposição. Você não assiste comédias, não participa de nada divertido, fica aí nessa introspecção, parece que gosta de sofrer. Não vejo você rindo, tá sempre calada, quieta, não sei mais o que se passa pela sua cabeça.
Ela não tinha forças pra retrucar. Sentia-se como um vulcão, longe de ser no sentido erótico que o termo pode provocar. Era um outro vulcão, mais aborrecido, mais angustiado, mais denso. É lógico que ela não tinha mais toda aquela leveza de antes. Era como se ela precisasse dissolver toda a dor que sentia. Mas achou melhor se calar e continuar olhando a paisagem, adorava ver bois na grama. Lembrou-se de quando atravessaram juntos uma fazenda de búfalos, bichos enormes dentro d’água, rira de seus chifres que pareciam um corte chanel.
- Lembra-se de quando fomos pra Bahia e passamos dentro daquela fazenda de búfalos?
- Lembro, você ficou cheia de medo.
- Claro, imagina se aqueles búfalos se zangassem? A gente iria ser pisoteado, com carro e tudo.
- Mari, búfalos são animais dóceis. É por isso que a estrada passa no meio da fazenda, porque eles não são perigosos.
- Eles me fazem lembrar da Luana, o cabelo dela parece o chifre deles. E ela também não tem uma carinha muito bonita.
Ela começou a rir da sua comparação. Um riso leve. Ele gostou de ouvir e soltou um suspiro de alívio. Mas sabia que ela estava tentando de tudo para que não brigassem ou levantassem assuntos espinhosos. Achou melhor dar uma trégua também.
- Um dia toda essa vontade de chorar vai passar. Tenha paciência.
O choro não iria passar. Não tinha vontade de mudar nada. Admitia a fraqueza e passou a gostar cada dia mais dessa nova pessoa amuada, cinza. Estavam juntos há três anos, não teve coragem de contar todas as coisas que viveu pra ele. Sequer tinha coragem de pronunciar. O que havia acontecido entre eles serviu de motivo principal pra que ela pudesse desaguar suas angústias. Já estava assim há dois verões. Não queria mais mudar.
A estrada era cheia de curvas, de um lado montanha, do outro lado, um vale. Ele dirigia bem, era uma cara centrado. Ouviam agora Body & Soul, um dia ele disse que essa música era tão perfeita quanto ela. Não conseguia acreditar, nisso e em nada mais. Soltou o cinto de segurança, abriu a porta do carro e deixou o corpo cair. Desceu mais de dois quilômetros, o corpo rolando numa velocidade cada vez maior. Enquanto teve consciência, deixou os pensamentos virem. O pai que se matou porque se afundou em dívidas por ter outra família, o tio que a molestou quando tinha apenas dez anos, a mãe que se fechou num mundo próprio, o fracasso de não trabalhar naquilo que gostava, a tentativa frustrada de ser mãe e não poder, a mulher que o Fábio engravidou, o filho que ele tinha e ela não. Tinha motivos demais para chorar. Mas se cansou de todos eles.
- O quê?
- Acho que você chora muito, banaliza o choro.
Eles voltavam do fim de semana, ela no banco do carona, o rosto encostado no vidro tentando ver a paisagem verde que corria ao lado. Ficou pensando no que ele falou. Não tinha uma resposta, o choro simplesmente fazia parte dela. Mas teve medo.
- Você é engraçada. Chora com arte e com porcaria. Lembra do tanto que você chorou na exposição da Camille Claudel? Olhei pra você e só vi um rosto borrado. Você lá, mais parada que as esculturas. Dura que nem todo aquele bronze.
- Você sabe que a história dela me emociona. Por que esse assunto agora? Meu choro incomoda você?
- Não, mas me intriga. Porque chorar com uma exposição de arte acho que até consigo entender. Me emocionei com as fotos do Sebastião Salgado também, aquele monte de criança com olhar triste. Aquilo dói.
- É, eu chorei também...
- Isso eu entendo. Mas você também chora vendo comercial de celular. Chora vendo aquele reality ridículo de modelos. Tenha dó, né?
Não iria adiantar se defender, ele tem razão, em certo ponto. Mas o que poderia fazer? Sempre foi assim, desde criança. Também sentia vergonha das lágrimas bestas que algumas coisas provocavam. Uma música, uma lembrança, uma cena na rua. Achava cansativo ter que explicar o porquê, sentia que o choro era tão espontâneo quanto a sua risada, que também era fácil. Mas estava apreensiva.
- Você não acha que o riso e o choro são dois lados da mesma moeda?
- Nunca pensei assim. Mas quando você chora, por qualquer coisa, me sinto culpado.
- E falando assim eu que vou me sentir culpada daqui pra frente cada vez que eu deixar uma lágrima cair. Por favor, não me venha com essa. Me deixe chorar em paz. Esse assunto tá ficando um pouquinho pesado, você não acha? Daqui a pouco a gente começa a desenterrar coisas do tempo do bondinho. Aí sim, vou chorar com vontade.
- A gente nunca vai superar...
- Fábio, você quer realmente falar disso?
- Não, não. E o livro, você terminou de ler?
- Quase, é meio triste, achei melhor dar um tempo.
- Mariana, quer saber a verdade? Acho que você procura coisas pra se entristecer. Pronto, falei. É filme, é livro, é exposição. Você não assiste comédias, não participa de nada divertido, fica aí nessa introspecção, parece que gosta de sofrer. Não vejo você rindo, tá sempre calada, quieta, não sei mais o que se passa pela sua cabeça.
Ela não tinha forças pra retrucar. Sentia-se como um vulcão, longe de ser no sentido erótico que o termo pode provocar. Era um outro vulcão, mais aborrecido, mais angustiado, mais denso. É lógico que ela não tinha mais toda aquela leveza de antes. Era como se ela precisasse dissolver toda a dor que sentia. Mas achou melhor se calar e continuar olhando a paisagem, adorava ver bois na grama. Lembrou-se de quando atravessaram juntos uma fazenda de búfalos, bichos enormes dentro d’água, rira de seus chifres que pareciam um corte chanel.
- Lembra-se de quando fomos pra Bahia e passamos dentro daquela fazenda de búfalos?
- Lembro, você ficou cheia de medo.
- Claro, imagina se aqueles búfalos se zangassem? A gente iria ser pisoteado, com carro e tudo.
- Mari, búfalos são animais dóceis. É por isso que a estrada passa no meio da fazenda, porque eles não são perigosos.
- Eles me fazem lembrar da Luana, o cabelo dela parece o chifre deles. E ela também não tem uma carinha muito bonita.
Ela começou a rir da sua comparação. Um riso leve. Ele gostou de ouvir e soltou um suspiro de alívio. Mas sabia que ela estava tentando de tudo para que não brigassem ou levantassem assuntos espinhosos. Achou melhor dar uma trégua também.
- Um dia toda essa vontade de chorar vai passar. Tenha paciência.
O choro não iria passar. Não tinha vontade de mudar nada. Admitia a fraqueza e passou a gostar cada dia mais dessa nova pessoa amuada, cinza. Estavam juntos há três anos, não teve coragem de contar todas as coisas que viveu pra ele. Sequer tinha coragem de pronunciar. O que havia acontecido entre eles serviu de motivo principal pra que ela pudesse desaguar suas angústias. Já estava assim há dois verões. Não queria mais mudar.
A estrada era cheia de curvas, de um lado montanha, do outro lado, um vale. Ele dirigia bem, era uma cara centrado. Ouviam agora Body & Soul, um dia ele disse que essa música era tão perfeita quanto ela. Não conseguia acreditar, nisso e em nada mais. Soltou o cinto de segurança, abriu a porta do carro e deixou o corpo cair. Desceu mais de dois quilômetros, o corpo rolando numa velocidade cada vez maior. Enquanto teve consciência, deixou os pensamentos virem. O pai que se matou porque se afundou em dívidas por ter outra família, o tio que a molestou quando tinha apenas dez anos, a mãe que se fechou num mundo próprio, o fracasso de não trabalhar naquilo que gostava, a tentativa frustrada de ser mãe e não poder, a mulher que o Fábio engravidou, o filho que ele tinha e ela não. Tinha motivos demais para chorar. Mas se cansou de todos eles.