24.10.07

Outros tempos

Bem que minha mãe dizia que eu entenderia. Ela sabia que um dia, eu daria razão.
Ser rebelde é fácil quando não se tem que arcar com as conseqüências. Quando não tem conta pra pagar, pais que protegem, a inocência como argumento. Talvez seja por isso que eu chore tanto com amores de filme. Eles largam tudo, abdicam das vidas aparentemente perfeitas por algo que nem sabem se vai ter futuro. Porque o futuro pouco importa perto de tanto presente. Lembra os impulsos da infância. Os mesmos que hoje são inconseqüentes.

Quando lembro de tudo que fiz quando era uma cabeçudinha dá arrepio na espinha. Como sobrevivi àquele atropelamento? Da onde tirei a idéia de que dava pra pular aquele fusca? E aquele dia em que, junto com a melhor amiga, inventei de comer formiga pra tentar curar miopia? Imagina que idéia besta. E se tem ferrão?
Inevitável não lembrar de todas as aventuras sem sorrir com aquele apertinho no peito. Uma saudade boa. Não dos bons tempos. Esse papo de bom tempo é um pé no saco. Cheira a naftalina, a tio do Napoleon Dynamite. É saudade da coragem inocente, que não vê motivos pra ter medo. Além de castigo dos pais. Pelo menos os meus sabiam castigar. E até nisso têm seus méritos. Obviamente não era assim que eu enxergava as coisas na época. Era um absurdo ser impedida de fazer o que quisesse na plenitude dos meus... doze anos.

Engraçado agora ver o outro lado. Como nossos pais. A música dizia isso e eu pensava “nunca vou ser como eles, nunca”.
Lembro que odiava eles por não gostarem de Guarapari no verão. Poxa, que motivo eles teriam pra não querer enfrentar uma praia lotada, num calor desumano, num mar cheio de xixi pra quando voltar pra casa ver que faltou água? Parecia uma grande aventura. “Todo mundo faz, mãe. Por que a gente não?”. Que paciência ela teve pra tentar explicar isso.
Em vez de Guarapari, a gente ia passear na fazenda. Eu ia sonhando em me jogar no rio Doce, caçar minhocas pra jogar na cabeça dos meus irmãos, brincar com os cachorros pulguentos que andavam soltos por lá. E minha mãe preparando almoço pra levar, arrumando mala pra três malinhas, levando produto de limpeza pra faxinar a casa. Será que ela gostava desses passeios como a gente?

E não é que hoje eu entendo meus pais? Me irrito com bagunça, carro com som alto, micaretas no meio da rua, gente inconveniente que fica querendo se socializar sempre. Tive espaço para minhas aventuras que, tenho certeza, eles conhecem bem e disfarçavam direitinho. Quero fazer o mesmo quando chegar minha vez. A infância tem que ter fotos engraçadas, com óculos escuros gigantes no rosto pequeno, pernas finas, pancinha saliente e durinha. Tem que ter uma cicatriz, um amor disfarçado por brigas e roupas ridículas. E pais corajosos, que saibam a hora de permitir e puxar as rédeas também.
Não tem nada mais chato que um adulto que cresce sem limites. E nada mais triste que não ter uma infância divertida pra se lembrar.

15.10.07

O sexo e eu


A primeira vez que me disseram um “hoje, não” ainda está bem viva na minha memória. Eu devia ter mais ou menos 9 anos e brincava de boneca na casa da minha melhor amiga de infância. Todos os sábados eu ia para a casa dela brincar. A rotina se repetia desde os meus 7 anos. Levava uma Susi, um Falcon (que pegava escondido do meu irmão) e duas Fofoletes. Na sacola amarela de plástico também iam fogão, armários de cozinha, mobília com mesa, cadeira, sofá, tapete, cama e guarda-roupa com milhares de roupas de Susi novinhas. Minha mãe me ajudava a atravessar a rua com a enorme sacola amarela e subir os quatro andares até chegar na casa da minha amiga.

Ela se chamava Ana Paula e era 4 anos mais velha que eu. Como todos os outros sábados da nossa infância, cheguei ávida por esparramar o conteúdo da sacola amarela no chão do quarto e começar a montar minha quase Dogville em versão infantil. Engraçado que mesmo com 9 anos consegui perceber que alguma coisa estava diferente. O olhar, o jeito de falar, a ausência. Começamos a brincadeira e em poucos minutos ela já tinha avacalhado várias cenas da história. Quando olhei para o que ela fazia, vi que a Susi e o Falcon dela estavam numa posição bem diferente. – Que isso, Ana? Perguntei com misto de medo e surpresa. – Isso que dá brincar com criança. Eles estão fazendo amor. É assim que os bebês nascem. Você não sabia disso, não? E quer saber, não quero mais brincar hoje.

Você pode imaginar o que senti. Levar um fora de alguém que você gosta e por alguma coisa que você está muito a fim de fazer é no mínimo horrível. Confesso que não sei lidar bem com isso. E até hoje morro de medo de levar uma dispensada. E por isso, mesmo querendo muito, não tenho o hábito de tomar a iniciativa. E para algumas coisas, mostrar iniciativa pode ser tão difícil quanto desenformar um pudim. Sexo é uma delas. Todo mundo fala de sexo, conta casos, fala baixaria na mesa do bar. Quando é começo de namoro também é fácil dizer: quero dar ou quero comer. Mas coloque os dois debaixo do mesmo teto para ver o que acontece.

Nem sempre acontece e isso é fato. Escuto das minhas amigas: - tenho preguiça de começar. Como? Tem preguiça de fazer uma das coisas mais prazerosas da vida? Vai ter vontade de fazer o que, então? Um não numa hora dessas desencadeia a série de neuroses, tanto femininas quanto masculinas. Você já conhece a ladainha – será que estou com bafo, será que ela acha meu piru pequeno ou fino ou grosso ou torto, será que ele acha minha perereca muito larga, meu peito tá caído, tá murcho. Tudo isso porque alguém disse não na hora H. Ou arrumou uma desculpa muito esfarrapada, ou virou pro lado e dormiu.

Taí uma coisa que queria simplificar. Que poderia acontecer assim: vamos trepar? Sem mistério, sem fundo musical, sem meia luz, sem calcinha de renda. Isso é baboseira de TV. Voltemos ao naturalismo, sem floreios e com muito mais prazer. Às vezes tenho muita preguiça de fazer sexo, é verdade. Mas prefiro dizer sim. Estragar a brincadeira de alguém traumatiza de verdade.

8.10.07

Sinal

Cachorros sabem atravessar a rua. Já reparou? Eu reparei. Juro que outro dia vi um checando a cor do semáforo antes de passar pro outro lado. Alguns, como seres humanos, calculam mal o momento de fazer a travessia. Compreensível. Os cachorros saem em desvantagem, porque não conseguem entender as campanhas sobre faixa de pedestre, as recomendações de esticar o braço para pedir passagem. Mas eu acho que é só questão de tempo. Eles vão acabar aprendendo isso também.

Porque as coisas são assim. A gente vai aprendendo. Coisa que você deveria fazer. Você sabia quem eu era. Sabia que eu não daria folga e mesmo assim se arriscou. Eu grito quando quero, choro quando quero, faço meus horários, crio minhas palavras e verdades. Eu não vou mudar. Eu gosto de confusão, de problemas, de intrigas. Mesmo que pra isso tenha que inventá-las. Coisa que você já deve ter notado, aliás.
Pena? Nunca vou sentir isso de você. Acho que você gosta. Não acredito que alguém se submeta ao que faço por simplesmente amar. Amar, ai ai. Por que você me amaria se eu só dou motivos para você me odiar? Porque você gosta de um desafio. Tem um quê de masoquista. O mundo taí, cheio de pessoas interessantes, de filmes novos, países exóticos. E você quer ficar comigo, tentando me mudar, me salvar? Você deveria fazer trabalho voluntário. A recompensa seria maior pra alguém que como você, acredita no impossível.

Pode continuar tentando. Eu só quero dizer que não vai adiantar. Meus vícios não vão mudar, minhas manias muito menos. Adoro minhas manias, adoro ser egoísta, adoro não dar satisfação. Gosto de você, claro. Você tem suas qualidades. Insistir em mim é uma delas. E não digo isso porque me acho foda ou merecedora de tanta dedicação. Mas porque faz com que você, por trás de toda máscara de bom moço, mostre que também é meio louco.

Desconfio inclusive dos reais motivos da sua obsessão por me mudar. Acho que é uma tentativa de se convencer de que seus princípios são bons, de que as coisas vistas do seu ângulo são melhores. Fica repetindo milhares de vezes que acredita nisso e naquilo, mesmo sabendo que eu não escuto nada. Não entra num ouvindo, muito menos sai pelo outro. Então é pra você mesmo que continua repetindo tudo?

Não gosto de dar conselhos, mas se você pedisse, eu daria um. Faça como os cachorros no sinal. Aprenda a hora de se afastar. Porque por mais que eu não goste de te ver sofrendo por mim, não vou te mandar embora.
ilustração em www.vidabesta.com