6.10.08

Valsa


redatorasdemerda.blogspot.com
Viu Viagem a Darjeeling dias antes e ficou pensando com quem poderia dançar aquela valsa que fazia parte da trilha sonora da película. O filme falava de três irmãos que partiam numa viagem espiritual. Um bom motivo para viajar, pensou. Mas o que grudou mesmo foi a musiquinha que sofreu a ação do repeat em seu som por uma semana inteira.

Dias depois recebeu um pedido. Disse sim sem pensar direito no que estava fazendo. Tinha perdido o medo do desconhecido. O que achava que conhecia lhe assustava mais.

– Sim, o moço pode ficar lá em casa por alguns dias.

O rapaz era conhecido de uma conhecida que era amiga da mãe dele. Algo assim. Não quis entender também. Vinha em viagem, precisava de dois dias de pouso antes de continuar a jornada.

Chegou num domingo, tarde da noite. Isso já a aborreceu, a previsão era chegar à tarde. Detestava ter que mudar seus hábitos, ainda mais quando estava fazendo um favor. Por volta da meia-noite ela o recebeu em casa. E já nos primeiros quinze minutos ficou desconcertada por tamanhos olhos verdes que a olhavam agradecendo pela gentileza concedida. Há muito tempo não via ninguém olhar assim nos olhos dela com tanta sinceridade. Pensou por que as pessoas não se olham nos olhos. Lembrou-se do namorado que conversava com ela olhando para frente.

Trocaram algumas palavras, ela ofereceu comida, uma toalha limpa e indicou o caminho do banheiro. Deram-se um sincero boa-noite e foram dormir, cada um em seu quarto. Ela tentou se livrar o mais rápido possível da lembrança daquelas duas bolotas verdes que pareciam atravessar o pensamento. Na manhã seguinte, saiu para o trabalho e não chegou a ver o rapaz. À noite, na volta do trabalho, veio pensando se não era uma maluca por ter deixado um estranho ficar em sua casa. Em tempos que filhos matam pai e pais matam filhos, como se pode confiar em alguém?

Pouco lhe importava a resposta, já estava feito. Ia sair e ficou sem pensando se o convidava ou não. E sem muita alternativa, levou ele junto pro boteco. Os de sempre estavam lá, amigos de falar besteira e agora curiosos para conhecer o sujeito. E como tudo numa mesa de bar fica mais divertido, assim foi. Conversaram até o bar expulsá-los. Ela e o visitante voltaram pra casa como se fossem velhos conhecidos. E dividiram a mesma indignação por terem que interromper a conversa, a bebida e as risadas. Ela resolveu o problema: ficaram na varanda do apartamento acompanhados de vinho, música e bom papo.

A noite já estava virando dia quando ela se lembrou da valsa do filme e da imensa vontade de dançá-la com alguém. Ele não tinha como negar, pensou, ia ser um favor em troca de outro. Tratou de correr para buscar o CD e colocar no aparelho de som. Ele, com as bolas de gude no lugar dos olhos, ficou observando sem entender o que ela fazia. Apertou o play e nos primeiros acordes de Where do you go to, my lovely, pediu que ele a tirasse para dançar. Dançaram meio que sem ritmo no meio da sala, tropeçando numa cadeira, esbarrando na estante. Ninguém se importou, nem mesmo quando a música acabou e a dança continuou de outras formas.

E de tudo o que aconteceu, a visita inesperada, a possibilidade de estar fazendo uma loucura, os contratempos de se ter um hóspede desconhecido em casa, de todas as coisas ela só se arrepende de uma. De não ter acendido a luz durante o tempo em que não se desgrudaram, com e sem música. E de não ter visto bem de pertinho todo aquele verde que bem dizem, quer dizer esperança.

Ilustração de Maurício Nunes.