28.1.09
Puta sorte
- Que merda!
Caiu sentado no chão depois de ver a chave escapulir da porca. Era a primeira vez que precisava trocar um pneu. Ela se aproximou com voz rouca e doce perguntando se ele queria ajuda. O carro ficou ali mesmo e o pneu continuou furado. Mas minutos mais tarde eles estavam na cozinha do apartamento dela tomando café e falando sobre a vida. Continuaram a conversa no quarto. Na sala. No corredor. De novo no quarto. No dia seguinte, foi demitido por não ter comunicado que iria faltar.
Ele nunca havia se apaixonado com tanta intensidade. O que está acontecendo era a pergunta que se fazia todos os dias enquanto escovava os dentes se olhando no espelho.
Arrumou um novo emprego depois de três meses. Iria ganhar menos, mas finalmente a angústia terminaria. “Pelo menos tenho alguém do meu lado que me ama.” E o amor dos dois ficava cada vez mais forte. E os contratempos, cada vez mais frequentes. Ele se sentia constrangido com tantas faltas de sorte e dizia que isso nunca tinha acontecido antes. Ela ficava ao lado tentando consolá-lo. Difícil era arrumar o que dizer depois de cada experiência trágica: um assalto, uma briga de rua que acabava sobrando porque ele passava naquele momento, um tropeção, a batida na pilastra do estacionamento, o café que caía na camisa na hora da reunião, os esquecimentos do celular, da carteira, do guarda-chuva.
- Amor, você sempre foi assim, sem sorte?
- Não, nunca...de um tempo pra cá que isso começou.
Estavam perto de fazer seis meses de namoro e ela sugeriu um restaurante novo, com poucos lugares, que dava pra ir a pé. Antes de a sobremesa chegar, ela estava ao telefone pedindo socorro ao paramédicos. Ele, no chão do restaurante, se contorcia de dor. O diagnóstico veio algumas horas depois: apendicite.
Verdade seja dita: era um cara bem-humorado e otimista. Desses que acordam sorrindo e dão bom-dia no elevador. Mas com tanta falta de sorte, não conseguia mais achar graça de nada. Começou a se questionar o porquê de viver. Não gostava do trabalho. Deixou de gostar da cidade onde vivia. E o pior, começou a gostar menos dela. Vou terminar com tudo, pensou.
- Chega.
Marchou até a casa dela, pisou num cocô de cachorro e na mesma hora viu que ela estava na janela. Mas não houve tempo para conversa. Um vaso de planta que ficava no parapeito da cobertura, no décimo quinto andar, acertou a cabeça dele causando traumatismo craniano e morte instantânea.
Mas é importante dizer os fatos como realmente aconteceram. Ao vê-la na janela, olhando pra ele, começou a pensar se realmente conseguiria terminar. Adorava aquela menina. Enquanto pensava, o vento movia o vaso de planta, que quase na ponta do parapeito, chegou a parar de balançar por alguns instantes. Ele decidiu então que não terminaria. Nessa hora, o vento decidiu soprar mais forte.
12.1.09
Sustento
Jacira tinha um talento. Era a melhor vendedora de sutiãs do bairro. Quiçá do mundo. Via, diariamente, peitinhos de tudo que é tipo e sempre sabia qual sutiã faria o milagre de levantar aqueles mais jururus. Mas algo a atormentava. Sua religião, rígida e conservadora, a deixava confusa quanto à dignidade de seu ofício. Por que deus foi dar um dom tão estranho pra ela?
Dava de tudo na loja. As sem-peito querendo um engana-bofe, cheio de enchimento. As M, as vesgas, os peitocos com formato de escorregador, os bem redondos, os murchos, os que invadiam a área do sovaco, os que davam oi pro umbigo e os falsos, que davam oi pro queixo. E por mais que olhar tetas alheias não fosse um passatempo legal, ela entendia da coisa. As clientes saíam sempre satisfeitas, seguras e empinadinhas. Ainda que pura enganação.
- Aniversário de casamento?
- É, mais ou menos. Pra comemorar.
- Nooooossa, é isso mesmo.
Mais uma mulher feliz saía da loja, pronta pra esquecer as celulites, estrias e assumir o posto da mais gostosa do mundo. Ao menos no quarto onde estivesse. E Jacira corria para os fundos, pedia perdão, rezava tudo que sabia e voltava ao trabalho, pensando que precisava de dinheiro para completar o enxoval pra casar com Murilo.
- Oi, Jacira, lembra de mim?
- Claro, claro. Dona Celeste. Tudo bem?
- Tudo ótimo, Jacira. Lembra que vim aqui comprar um sutiã pra reconquistar meu marido?
- Sim, se lembro. Me conta, como foi?
- Foi um sucesso.
- Ele gostou foi?
- Nada, aquele bosta nem reparou. Pra mim foi a gota d’água. Terminei tudo.
- Sangue de Jesus tem poder!
- Pois é. Larguei meu marido, estou muito feliz.
- A culpa foi minha...
- Culpa nada, Jacira. O mérito é teu. Aquele sutiã levantou mais que esses peitinhos aqui. Levantou minha moral, empinou até meu nariz. Cansei de ficar querendo agradar homem. E justamente quando pensei em mim, quando vi que posso me cuidar, que sou sim uma mulher bonita, me aparece o Dório.
- Dório? – a voz de Jacira mal saía.
- Um vizinho meu. Não aconteceu nada não. Mas acho que vai. Tem um clima rolando, sabe? Mas nem tô esquentando demais. Tô deixando acontecer, sabe como? Voltei a malhar, a ir ao cinema, a sair com meus amigos.
- É, vendo assim não parece tão ruim.
- Que ruim que nada, mulher. Ó. Vim pra agradecer e dizer que te indiquei pra tudo quanto é amiga.
- Ah, muito obrigada.
Era informação demais para Jacira. Deus não ia deixar essa passar. Alguma coisa ruim iria castigá-la. Em vez de esperar a vingança nos céus cair sobre sua cabeça, ela mesma providenciou uma penitência. Se absteve de comer doces, sua paixão, sua fuga para a falta de sexo, até o casamento. Mal sabia que isso seria o começo do fim.
O negócio foi um sucesso. As discípulas de seu templo adoraram a idéia e viraram clientes assíduas após os cultos. Quem não resistiu à descoberta da feminilidade e da sexualidade das mulheres foi a igreja. Fechou em três meses.
ilustração em vidabesta.com