20.5.10

O último - final

Se pudesse dividir sua vida em fatias qual o tamanho que o passado ocuparia neste bolo imaginário? Alguma vez já teve a sensação de não ver o presente acontecer por pensar demais no que já passou? Passou somente no tempo cronológico, mas as sensações ainda estão todas aqui. O quanto você é capaz de superar suas dores e suas perdas? Consegue enxergar quando chega esse momento, de ir para o outro lado e começar a viver realmente sem um peso nos ombros?

Luísa acordava todos os dias desejando que Roberto deixasse de vez seus pensamentos. Mas teimava em acreditar que estavam conectados por alguma frequência e que existia uma comunicação silenciosa entre eles. Preferia pensar assim do que aceitar a ideia de tudo ter sido nada, de toda a intensidade não ter passado de um entusiasmo apenas dela. Somos mestres em criar situações que somente nós enxergamos. Nos forçamos a encaixar a pessoa que está ao nosso lado nas nossas ambições. Imploramos para que aquele que divide a cama com você se encaixe na sua lordose e ofereça o ombro como travesseiro.

Já não sabia em qual dos dois pensava mais, se em Roberto ou se em Eliane. Tinha pensamentos absurdos com os dois, a ponto de querer estar entre eles, sendo ouvida e recebendo afeto. Todos os seus sentimentos estavam assim, completamente irracionais, sem parâmetros, alternados, inconstantes. Loucura deve ser isso. Tinha pena de Eliane e sabia que ela viveria tudo ou talvez pior do que ela viveu. E riu ao mesmo tempo. Pensou novamente em dedicar a crônica da próxima semana para ela.

“Ele não é fiel a você, mantive encontros com ele enquanto você estava trabalhando. Fui na sua casa, vi suas fotos, vi suas coisas, vi o quanto ele esta moldando você da mesma forma como fez comigo. Mas não julgue como traição. Ainda faço parte dele e você sabe disso. Estou mais presente do que ele próprio na sua vida. Assim como você está na minha. E isso me permite entender o que ele tanto gostou em você. Você topou o teatro.

Ele se faz de vítima e você diz o que ele quer ouvir. Ele se diz fraco e você retruca: você é forte. Ele se julga mau e você desfaz dizendo o quanto ele é bom. É uma boa maneira de tirá-lo do poço em que ele mesmo se jogou. Só que um dia a temporada de shows acaba. Você vai tirar a máscara e vai se tocar que nada do que você falou fez ele mudar ou melhorar. A peça é mesma e quem escreve é ele. Eu estou me livrando de vocês. Ainda vejo tudo de camarote e torço para que realmente alguma coisa nessa história toda tenha um final diferente. Quanto a você, aproveite. Se quiser saber o final da história, sabe onde me encontrar.”

Ao terminar o texto, Luíza nem mesmo o revisou. Clicou em enviar antes que se arrependesse. Quando a coluna foi publicada, ela leu linha por linha, tensa, com receio de se arrepender. Mas ao final, como que uma redenção merecida, mas tão inesperada, como achar dinheiro no bolso, ela sentiu-se arrebatada por uma sensação de liberdade. Noites de choro, fobias, planos maquiavélicos, tudo enfim foi substituído por um sentimento sorrateiro, mas muito bem-vindo.

Conseguiu ler sem sofrer, sem sentir o refluxo que trazia a história de volta ao esôfago. Porque aquela não era mais sua história. Era a história de duas pessoas, felizes ou não, loucas ou não, que se amam ou não, mas certamente fadadas à repetição e à mediocridade. Como é que algo assim levou anos pra parecer tão óbvio? Ver a situação do alto, como leitora e espectadora, deixou claro que não era mais preciso se vingar. Que a maior vingança não viria dela. Viria deles mesmos. Da convivência, da rotina, do peso do dia a dia, que fatalmente acabaria por consumir aqueles dois. Tantos planos de sangue, de escândalos e a vingança maior estava ali o tempo todo: condenar um ao outro. Nada que ela pensasse poderia ter sido mais cruel do que isso.

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com