25.1.08

Ela

As terças e quintas não eram mais as mesmas desde que ela invadiu minha rotina.
Comecei a fisioterapia por recomendação médica. Um mau jeito nas costas que cismava em entortar o corpo para o lado esquerdo. Tensão, diziam. Concordei.

Naquela manhã tudo parecia igual. Minha cara inchada de sono rumava ao consultório. A secretária tinha o mesmo sorriso, minha blusa estava acidentalmente vestida ao contrário novamente, a médica desfilava com seu habitual coque. Sentei na cadeira de sempre e peguei a única revista de fofocas que ainda não tinha metade das páginas desfiguradas. Tudo acontecia de acordo com meu déjà vu bisemanal. Até que ela entrou na sala. Assim que meus olhos pousaram em seu rosto, uma informação estranha foi processada em meu cérebro.
- Com essa eu namoraria.
Arregalei os olhos, assustada com o pensamento. Olhei pra baixo tentando esconder as órbitas ainda projetadas. Meu deus. Será que fui em quem pensou isso? Será que alguém falou e acho que fui eu?
Fui então chamada pela fisioterapeuta. Segui para minha sala. Mas naquele dia, não importava pra onde eu fosse. Não conseguia fugir da imagem dela.

Achava que, se um dia me sentisse atraída por mulheres, seriam altas, fartas, morenas, cabelos volumosos. Não me conhecia mesmo. Porque ela sim era meu tipo. Estava ligeiramente acima do peso e meio fora de forma. Mas eu nunca diria isso pra ela. Jamais. Tinha curvas bonitas ainda assim. Seios médios, quadril largo e uma bunda alta, daquelas que começam assim que a coluna acaba. Era loira. Que estranho eu me atrair por loiras. Cabelos lisos e uma franja que quase cobria os olhos. E toda vez que ela passava, eu pensava ‘olha lá minha namorada’. E ria de mim mesma.

Ela me despertava algo novo e gostoso. Empatia, admiração, carinho. Queria falar com ela, saber a cor preferida, onde cortava o cabelo, que livro andava lendo. Adoraria ouvir ela reclamar dos problemas no trabalho, da falta de tempo para academia.

As semanas se passaram e notei que ela percebia minha presença. Me conhecia de vista. Mas também nunca me dirigiu uma palavra. Acho até que a flagrei olhando pra mim algumas vezes. Ou será que foi ela quem me flagrou? Não sei bem. Mas a ausência de bons dias, tudos bens e olás, criava um certo clima. Se era delírio meu, uma fantasia para deixar minha primeira paixão por uma mulher perfeita, nunca vou saber. Segui com cautela.

Passei a me ajeitar um pouco mais para a fisioterapia. Cuidei para vestir a camiseta do lado certo, passei um pouquinho de perfume e disfarcei as olheiras. Quando parava pra pensar que estava me arrumando para uma mulher, ria sozinha. Medo, misturado com ansiedade e entusiasmo. Não parei para refletir sobre lesbianismo ou bisexualismo. Ainda era eu, com os mesmos gostos musicais, literários. Era eu, com os mesmos amigos, as mesmas preferências. Tudo igual, exceto o amor platônico por ela. Não foi algo planejado, não foi um impulso adolescente, uma curiosidade nascida por alguma necessidade de mudança, como quem pinta o cabelo do nada. Apareceu. Pipocou que nem espinha. E eu deixei ali.

Fui me tornando mais feminina, delicada, mais acessível. Com homens sempre foi o oposto. Tentava ser mais forte, durona, mostrar pulso firme. Mas pra ela eu queria me mostrar leve, delicada. Nunca me senti tão feminina como naquela época.

Juro que um dia ela sorriu pra mim. De repente tentando apenas quebrar o gelo. Educação. Por mais que eu quisesse acreditar que estava sendo correspondida, preferia deixar as coisas como estavam. O que faria se ela me quisesse? Chamaria pra sair? Com homens é mais fácil. A maioria se contenta com algumas piadinhas bem feitas, um belo decote e uma boa perspectiva de sexo. Mas como eu faria com ela? Toda linda, fofa, doce. Sendo mulher, achava que sabia mais sobre nós mesmas. Vi que não entendia nada.

Voltei à ortopedista semanas depois. Para meu total desespero, minha coluna havia voltado ao normal. Fui dispensada da fisioterapia. Pensei em voltar lá e me abrir para a loira. Provocar um encontro sem querer. Ou pelo menos falar um bom dia. Em vez disso fiz nada. Preferi ter pra sempre a lembrança do que ela me despertou. Sem rejeições, sem brigas, sem nada. Guardei o gostinho da surpresa, do susto, do desejo inesperado. Mas não tem um dia sequer em que eu não torça pra encontrar minha namorada por aí.
ilustração de claudio frança.

14.1.08

A culpa é toda sua




Antes de tudo, preciso dizer algo e você precisa jurar que aceita de coração aberto. Saiba que o que acontecer entre a gente que não for bom será sempre culpa sua. Dito isso e acordado para os próximos anos em que dividiremos nossas vidas, podemos ser felizes. Tenho inúmeras qualidades e topo compartilhar com você todas as dificuldades que invariavelmente vamos ter que passar – a vida cobra um preço alto e divide em várias prestações.

Não temos como escapar do que acontece com todos os terráqueos. Vamos ter problemas financeiros em algum momento, poderemos ser assaltados, alguém da nossa família irá morrer, ficar doente, nossos filhos ficarão de recuperação, vão quebrar alguma parte de corpo, terão que usar aparelho, vão sair com nosso carro escondido, vão fumar maconha ou encher a cara antes de terem juízo. Vamos passar por tudo isso e vou estar do seu lado. Mas no que diz respeito às nossas vidas, se eu estiver feia, talvez culpe você. Se eu ficar doente, também. Se eu chorar compulsivamente ou abrir o vidro do carro para xingar o motorista da frente, a culpa dessa loucura também poderá ser sua.

Mas posso assumir todas as tarefas domésticas sozinha. Não se preocupe com o vencimento das contas, eu cuido de tudo. Não precisa aprender a consertar descargas, montar guarda-roupas, usar a furadeira, levar o carro pra oficina, ir ao supermercado. É tudo por minha conta. Também abaixo a tampa da privada, estendo a toalha que ficou em cima da cama. Faço massagem nos seus pés e costuro os botões das suas camisas. Compro roupas novas pra você se não quiser entrar no shopping porque acha que o preço do estacionamento é absurdo. Também acho.

Nunca se esqueça de que ela vai estar sempre nos seus ombros. Aprenda a lidar com esse sentimento e tudo vai ficar mais fácil, prometo. Garanto que posso fazer você feliz e ser feliz se assim for. É só você saber que se brigamos, foi por sua causa. Se não conseguimos nos entender, é porque você não sabe se explicar direito. Se eu cheguei atrasada foi porque você se enganou com o horário. Se você me traiu é porque você é um canalha e eu não tenho nenhuma falha. E assuma a culpa, todo o resto eu assumo.

2.1.08

Sorte

Era começo de namoro. Para Jane, Fábio era definitivamente o melhor homem do mundo. Abria a porta do carro para ela entrar, puxava a cadeira para ela se sentar, dizia sempre ‘por favor’ e ‘obrigado’. Em dias mais monótonos, ele aparecia com pequenos presentinhos. O encanto do começo de namoro já durava mais de um ano.
Marta, melhor amiga de Jane, acompanhava cada nova peripécia de Fábio. Sabia de todos os detalhes daquele namoro. Sabia que o som do ronco dele era suave. Sabia que ele nunca deixou respingar xixi na privada. Sabia dos pequenos mimos que surpreendiam Jane. E também das suas habilidades sexuais.
Jane descrevia com riqueza de detalhes a perfomance sexual do rapaz. A mão pesada, mas sempre cuidadosa. Os movimentos firmes. Certo dia, até mediu em centímetros o amor que ele tinha por ela. Chegando em casa, ligou para Marta e compartilhou a marca de 18,7 cm, com 5cm de diâmetro. Era muito amor.
Quando saíam com outros casais, Jane e Fábio despertavam inveja. Trocavam carinhos, beijinhos, segredinhos, inhos e mais inhos. Ao lado dele, Jane sentia-se uma princesa, a mulher mais feliz do mundo. Uma sortuda.
Com o tempo, passou a sentir pena das outras mulheres. Nenhuma tinha um Fábio pra ela. Não imaginava como podiam ser felizes e completas sem um Fábio. Mesmo as que tinham namorado eram alvo da piedade de Jane.
- Tadinha da Dete. O Osvaldo nunca deu flores pra ela, acredita?
Fábio dizia pra ela parar com isso, que pena é um sentimento ruim. Mas era incontrolável.
- Acredita que o Carlos esqueceu do aniversário de um ano e três meses com a Shirlei?
A pena de Jane foi aumentando e logo se transformou em culpa. Não se achava mais digna de ter um homem tão bom. O que ela havia feito pra merecer tanto? Não era tão diferente de outras moças. Cabelos longos, corpo ajeitado, sorriso largo, personalidade fácil e uma mão ótima para doces. Fábio sim estava acima de qualquer outro homem. Até seus mínimos defeitos eram qualidades.
Um dia, não suportando mais a agonia de ser a mulher mais feliz do mundo em meio a tantas frustrações femininas, Jane decidiu terminar tudo. Havia surtado. Pegou o carro sem se dar conta de que eram três da manhã e voou para a casa do futuro ex. Enquanto estacionava em frente ao prédio, viu Marta sair pelo portão de mãos dadas com Fábio. Trocaram um beijo longo, um abraço nervoso e intenso, e então se despediram.
Jane ficou ali, parada, sem reação alguma. Sentia o peito explodindo, o rosto corado, o sangue correndo. Era felicidade. Estava aliviada por saber que Fábio não era assim tão perfeito. Agora sim sentia-se digna do amor dele. Voltou pra casa e dormiu como não fazia há noites.
ilustração biita de claudio frança.
ah. a gente quer dizer muito obrigada a quem visitou o blog em 2007. foi um ano de novidades, surpresas e comentários fofos. beijos e feliz 2008 a todos:)