31.7.06

Declaração de ódio



Odeio quem buzina. Não quem faz um bi rápido, mas quem faz questão de descer a mão e soltar um biiiiiiiiiii de doer a alma. Ou quem pára em frente ao portão de alguém e cria uma melodia: bibi bibibibi bi bi biiiiii. E repete isso umas quatro vezes. Odeio quem não pede licença, não dá bom dia no elevador e se faz de sonso ao entrar numa fila. Odeio o Faustão, Gugu e seus genéricos. Antes de ter TV paga, assistia à TV Cultura aos domingos. Prefiro os programas que mostram elefantes e pavões em seus habitats naturais. Odeio gente estressada o tempo todo e gente que não muda o discurso: ai, menina, to tão cansada, to trabalhando tanto...Só você né, fofa? Odeio gente blasé. Odeio gente mal-educada, pedante, arrogante e gente que arrota alto no meio da rua. Odeio gente grossa. Odeio axé e daí pra baixo. Odeio peruinhas com som alto que tocam, adivinha o que, axé em pleno sábado de manhã pra anunciar uma micareta qualquer. Odeio gente que quer se enturmar rápido demais. Odeio Campari. Odeio bar com lâmpada florescente e mesa de plástico, a não ser nos pés sujos originais. Odeio médico que atrasa no consultório e não pede desculpa pela demora. Odeio cachorro pincher quando late e poodle pintado de rosa. Odeio puxa-saco. Odeio simpatia em excesso. Odeio e-mail com mensagens mela-cueca. Odeio drama e gente melindrada. Odeio escândalo. Odeio frescura mas também odeio machos muito machos. Odeio gente que bebe e perde a noção. Odeio cocaína. E, por fim, odeio bala de coco.

21.7.06

Dente

Acho que não comprei a revista TPM que falava sobre dor, senão releria agora. Se comprei não lembro. Aliás, consigo pensar em pouca coisa. Tudo que lateja em minha cabeça é dor, dor, dor, dor. Não aquela de tristeza, de perda, de saudade, de amor. Falo da dor física em sua forma mais cruel, aquela que paralisa, que tira o pé do chão de tão intensa. Aquela dor que não dá intervalos, que varia entre fina e pesada o dia inteiro. Nenhum outro pensamento tem vez. Impossível me concentrar em qualquer outro objeto ou assunto. O enredo da minha mente gira em torno da dor: será que vai passar? Por que o remédio não funciona?

Uma das piores sensações é a de que nunca vai acabar. Depois de três dias de dor intensa, a memória esquece como é se sentir bem. Tento lembrar, mas não ficou nem um pedacinho pra eu me apegar. Por mais que me concentre, dormir uma noite inteira e acordar normalmente parecem vultos na minha lembrança, como memórias da infância ou flashs de um sonho.

A vontade de ser forte vai se distanciando e tudo que quero é ficar dopada, estirada numa cama, ouvindo vozes lá longe. A paciência para respirar fundo, manter a calma e esperar passar começa a ser invadida por ondas de desespero. Queria apertar o off e ser religada quando meu corpo puder sentir a ausência da dor. Desabitá-lo um pouco e só voltar quando a faxina com amoxicilina já estiver feita.

Coisa injusta é dor. Por que não sinto a não-dor com tanta intensidade quanto sinto dor? Por que quando estou ótima, com a saúde perfeita, meu corpo não reage inversamente e provoca uma incrível sensação de plenitude? Algo tão grande e tão insistentemente presente quanto a dor, só que agradável.

Sou resistente à idéia de tomar remédio. Adio o máximo que posso, para entender, até onde for suportável, o que está acontecendo com meu corpo. Mas nesse caso não dá mais. Quero meu raciocínio de volta. Minha rotina, meu sono, a capacidade de poder escolher no que pensar, sem ser dragada de novo para uma realidade escura, fechada e apertada, que me prende a um único pensamento.

Entrego então esse dia à dor. Aceito os antibióticos, antiinflamatórios, o repouso que for preciso para amanhã não mais vê-la. Deixo ela derramar seu sadomasoquismo todo em mim. Sadomasoquismo sim, porque se ela fosse apenas cruel, má, uma assassina fria, me mataria logo. Mas não. Ela é esperta. Deixa sofrer, penar, agonizar, porque sabe que se me matar, morre junto.

Ilustração: Vlad Paiva

10.7.06

Sonho de bicicleta


Suas vontades eram as mais simples, e ainda assim não conseguia entender porque era tão difícil realizá-las. Sonhava em ter uma bicicleta para andar nas tardes de domingo, quando fazia sol. Domingos assim deixavam-na mais triste que domingos de chuva. Era o dia em que sentia inveja. Olhava as praças, via mães, filhos e maridos saudáveis vivendo o domingo da forma como sempre quis. Perguntava-se porque não podia viver também.

Era doído ver o sol que entrecortava as folhas formando desenhos dançantes nas calçadas. Só de ouvir o som das risadinhas de crianças sentia vontade de chorar. Meninas magras com suas roupas esportivas cortavam o vento, seus cabelos se enrolavam na sua melancolia. Não parava de se perguntar porque todas aquelas cenas incomodavam tanto. Por que ela não conseguia fazer parte daquele ambiente? Tinha filhos, marido e dinheiro para comprar uma bicicleta, mas sabia que aquele mundo não era para ela. Se comprasse a bicicleta certamente iria empatar um dinheiro para ficar na garagem servindo de abrigo para casa de aranha.

Um domingo ensolarado numa tarde de inverno era, definitivamente, o pior dia que poderia existir. Ligou a TV, jogou-se no sofá e esperou ansiosamente pelo fim do programa.