30.12.06

Quereres de ano novo

Quero 2007 com gosto de Nutella, de cappuccino que só você faz, de tempero da minha mãe e dos biscoitos da minha vó.

Quero um 2007 revigorante que nem mergulhar no mar, secar no sol, descansar na sombra. Que nem garrafa de cerveja sendo aberta, espuma no buço e língua limpando.

Quero 2007 com som de criança gargalhando, de ginásio lotado, de chuva na janela. Aquele barulhinho de teclado digitado rapidamente, de chaveiro balançando quando alguém chega em casa, de apito no ouvido voltando de festa.

Quero 2007 com cheiro de bolo no forno, de dama-da-noite, de nuca de namorado. Quero 2007 cheirando a lençol limpo, óleo de pitanga e papel recém-impresso.

Quero 2007 com momentos simples, como subir no elevador sem ninguém, achar vaga no shopping e encontrar aquele sapato pela metade do preço.

Quero 2007 pingando como picolé na camisa, virando bola de chiclete, voando com balões, levantando os braços na montanha russa.

Quero 2007 fugaz como decolagem de avião, arrebatador como lágrima de alegria, redentor como um pedido de desculpas sincero.

Quero um 2007 supreendente como ganhar flores sem motivo, encontrar dinheiro no bolso, receber carta escrita à mão.

Quero um 2007 miraculoso como acordar sem ressaca depois de abusar tanto, não estragar as unhas depois de fazê-las, dormir de cabelo molhado e acordar sem parecer a maria bethânia.

Quero um 2007 acolhedor como abraço de mãe, mão dada no cinema, carona em guarda-chuva.

Quero um 2007 quente como suco de fruta mordida escorrendo pelo queixo, firme como sua mão apertando minha cintura, menos complicado que abrir um cinto.

Quero 2007 com mais vocabulário, menos colesterol e muitas promessas.
Quero 2007 de branco e verde e talvez dourado.
Quero tudo, mas só um pouco. Quero menos trocadilhos.
E finalmente, quero textos que terminem bem.

22.12.06

Imaginado


Hoje passei o dia olhando pra você. Mesmo nos momentos em que você não estava na minha frente. Construí cada pedaço seu, de dedo a umbigo, de nariz a tornozelo, de cabelo a panturrilha. Meu mal é inventar paixões platônicas; e essa agora — muito perfeita, muito direita, muito real. Penso, sonho, sinto, vivo com você aqui, no meio de todos meus pensamentos, dos mais nobres aos mais profanos.

Profano, não. Ainda não cheguei lá. Sinto o amor romântico, apenas, com todos os sintomas: frio na barriga, tremor, vergonha e de repente fico muda. Seria melhor virar puta. É você passar pra eu esquecer todo o repertório que passei por horas, tudo some, os músculos se paralisam, parece que tenho 12 anos. Só com uma diferença: com 12 anos já teria ido até você e falado todas essas coisas. Entendeu por que seria melhor eu virar puta? Toda essa agonia iria acabar no primeiro motel vagabundo, na primeira luz de néon piscando na beira do asfalto.

Preciso dizer o quanto você me faz bem. Melhora o meu humor, me faz ter vontade de emagrecer, de passar sombra nos olhos, de comprar vestidos, de viajar. Me coloca sorriso nos lábios e acelera minha pulsação. Vou amar você assim, sem ciúmes, sem cobranças, sem jogos, sem choro. Este último guardo só pra mim, sufocado, dissecado, suprimido para que você não saiba que mesmo este amor, que só existe em mim, também faz doer.

Não quero que você saiba de mim mais do que imagina. Não quero dividir com você minha solidão nem tampouco quero a sua. Juntar duas solidões não é amar. Amar sozinho também não. Como não tenho escolhas não quero que você as tenha também. Viu como sou egoísta? Por favor, não veja mais nada. Tudo isso vai terminar exatamente como começou. Assim que eu conseguir domar meu coração que me desobedece toda vez que vejo você.

15.12.06

Brigas


Antes mesmo de abrir os olhos senti meu coração murchinho. Estava zonza, sonolenta. Não conseguia entender o motivo daquela dorzinha. Apenas sentia um aperto.
Provavelmente um sonho ruim, pensei. Tentei descobrir enquanto virava de barriga pra cima com toda a lentidão do mundo. Então lembrei. A gente brigou ontem. Eu não queria, você não queria. Quem quer brigar?

Quando tinha uns 12, 13 anos, briguei feio com minha mãe. Eu escutava o jogo do flamengo no rádio quando meu irmão vascaíno chegou perto e tirou o fio da tomada. Fui lá e coloquei de volta. Ele insistentemente desligava o rádio. Virou uma pancadaria, digna de maracanã. Minha mãe foi ver o que estava acontecendo e não pensou duas vezes. Confiscou a prova do crime. Fiquei sem saber como o jogo havia terminado e parei de falar com minha mãe.

Sentia raiva por ela nem mesmo ter procurado saber o que estava acontecendo. Meu irmão, que estava errado, conseguiu exatamente o que queria. Fiquei uma semana sem falar com ela. Chorava de tristeza, mas me recusava a procurá-la. Será que ela não percebia?

Não. A verdade é essa. Ela não sabia que o jogo do flamengo tinha tanta importância pra mim. E é disso que brigas são feitas. Quem se sente injustiçado espera desculpas e quem, teoricamente foi injusto, não vê motivos pra se desculpar por não ter idéia da dimensão do estrago.

Meu pai pedia pra eu falar com ela. Dizia que ela chorava muito. Eu também sofria. Apesar dos anos, sinto a dor ainda. Sabia do sofrimento dela, ela sabia do meu. Sabia que ela, assim como eu, queria me abraçar e esquecer tudo. Mas ninguém movia uma peça. E ambas tinham suas razões.

De volta à minha cama, onde eu despertava devagar, sentia esse mesmo gosto. Um ranço, um rastro amargo. Uma ressaca. Pensava quantas vezes mais teria que passar por uma briga vaga. Medir sentimentos, sendo que eles são imensuráveis. Exigir desculpas, quando o outro não vê necessidade de pedir. Entender que não se trata de achar culpados, mas de dizer como se gosta ou não das coisas.

Levantei e fui até minha mãe. Perguntei se ela lembrava da briga de anos atrás. Nem precisei dar mais detalhes.
- Lembro.
- Quem foi que quebrou o silêncio?
- Fui eu.
- Mas mãe, eu tinha razão.
- Não vamos falar disso. Certas coisas não se discutem.

Mãe sabe o que diz. A minha então sabe tudo. Ouvi o que precisava para encarar a ressaca que me acompanharia durante uns dias, até tudo voltar ao normal. Da próxima vez quero lembrar disso. Discutir o que não se pode mudar é dolorido, inútil, desgastante. Algumas feridas não saram. Depois de abertas, só o tempo ajuda a ignorá-las.

Mesmo mais nova, fiz uma escolha que deveria repetir mais vezes. Ficar em silêncio.

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com

8.12.06

Saudade ultrapassada



Engraçado esses dias em que acordo saudade. Penso em todos que conheci, em todos que contei segredos, em todos que beijei, em todos que chorei, em todos que vivi, em todos que deixaram pedacinhos em mim e que eu, também assim, deixei pedaços. Mas talvez tão pequenos que ficaram invisíveis e esquecíveis. Quero contar pra você, que conheci na 4ª série, que hoje vivo de redação. Ah, sim, na escola eu já gostava e lembro de ganhar um chocolate por ter feito uma redação muito bonita. Também tive meu nome escrito no caderninho de ouro. Quero contar pra você que foi meu primeiro namorado que tenho vontade de rir quando lembro que você me beijou depois da festa junina da escola, eu de vestido de chita vermelho e fita no cabelo, bochechas rosas de tanta vergonha de nunca ter beijado. Quero contar pra você que não moro mais em Brasília, que moro em Vitória e que pode um dia me visitar, mesmo com mulher, filhos, família. Quero contar pra você que era a amiga da minha rua, que em Brasília se chama quadra, que enquanto você colecionava papel de carta, eu colecionava etiquetas de lojas porque gostava das formas e cores. Formas e cores que hoje se chamam logomarca e que acho que sim, eu já tinha um pezinho aqui nesta profissão que escolhi.

Nestes dias em que acordo assim, com o passado colado no meu rosto, marcando tanto quanto o travesseiro aquilo que passou e de que sinto muita saudade, me sinto só, órfã, pouca, pequena. Mesmo que essa saudade que é muita caiba em apenas algumas horas, até o dia tomar forma, o telefone tocar, os problemas aparecerem e as lembranças voltarem pra lá de onde vieram. E essa saudade, dizem, é verdade sim, é coisa de idade isso. Mas se é de idade, meus amigos lá da minha rua, que brincavam de queimada e carniça, que corriam depois de tocar a campainha de todas as casas, que roubavam pequenas balinhas na loja de doces do outro lado da rua, que assustavam todo mundo quando era dia das bruxas, que pegavam amora, abacate e manga nas árvores, esses mesmos que também têm hoje a minha idade, será que pensam em mim? Será que lembram que lá na garagem da minha casa a gente fazia festa americana e dançava música lenta?

Queria ligar para cada um de vocês e dizer que tenho coisas novas pra contar, que entre uma lembrança e outra, a gente toma uma cerveja e ri vai ser legal ficar quase bêbado com alguém que conheço há muito tempo e que ocupou uma parte tão importante da minha vida. Minha preciosa infância, que passei correndo na rua, brincando aos domingos até começar o Fantástico e aí entrar em casa, tomar banho, jantar e dormir. E acordar agora pra lembrar que nunca, eu acho, terei coragem de dizer todas essas coisas pra você, que era meu vizinho, que era da minha turma na escola, que era minha melhor amiga. Porque me sinto muito envergonhada de dizer tudo isso e de sentir também. Porque se é coisa de idade, não quero parecer ultrapassada. Moderno é não sentir saudade de vocês? Se assim for, não quero ser moderna não.

Ilustração: Claudio França

30.11.06

Aniversário de um ano - nossa declaração de amor ao blog.


Ó, docinho, fez um ano o nosso blog. Adorei conseguir manter isso, escrever de 15 em 15 dias, com poucos atrasos, nenhum furo e muito orgulho dos nossos poucos e fiéis leitores. Podemos chamar de conquista? Pra mim foi até mais. Exorcizei alguns fantasmas, troquei a análise pelos textos e oba, economizei. Conheci pessoas novas que conhecem mais de mim do que minha própria mãe. Com o Redatoras de Merda, abri uma caixa de pandora, acho que daqui não deixa mais de sair nada. Também não tô ligando se pensarem pô, esse menina só fala dela mesma, que coisa chata. Gostei muito de conseguir escrever sem precisar ter um job na frente. Querido blog, parabéns pra você.

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Lembra quando começamos a trocar textos que escrevíamos quando vinha a vontade de gritar? Lamentamos fazer isso com pouca freqüência. Daí surgiu a idéia do blog. Afinal, bem ou mal, sabemos conviver bem com prazos e obrigações. E transformamos escrever em um dever de casa, uma terapia, uma diversão. Lembra no início, como sentíamos vergonha de postar? Do frio na barriga? De descobrir que alguém lia?! Meu Deus, alguém lia aquilo, ai, socorro. E ainda lê. Depois ainda comentaram. Ficamos tímidas, mas felizes que nem crianças. Ainda ficamos, na (e de) verdade. Quando ninguém comenta, falamos “ninguém tá lendo porra nenhuma” e caímos na gargalhada. Obrigada, brógui por me aproximar de mim, da docinho e de pessoas fofas que apareceram no caminho.
(docinho, meu texto ficou maior que o seu pra manter a tradição, tá?)

ilustração: vlad paiva. adoramos:)

16.11.06

Sem pensar


Acordei pensando, pensando, pensando, cansada como se não tivesse dormido. Como se tivesse passado a noite inteira pensando, pensando. Acho que minha cabeça tem o maior HD do mundo. Cabe tanta coisa, tanta coisa, que pra ela ficar bem ocupada, tenho que enchê-la de informação.Quando tenho poucas coisas pra fazer e pensar, parece que os pensamentos tomam uma dimensão grande, incham, inflam e recebem mais atenção do que deveriam. É um perigo isso. Começo a pensar besteiras de todos os tipos e desenvolver assuntos que não têm que ser desenvolvidos.

Eu não gosto de nada complicado, não acredito que por trás de tudo que alguém diz ou faz exista outro significado. Não fico procurando duplo sentido em tudo que leio e escuto. Mas ser simples é difícil quando eu tenho espaço demais pra pensar. Porque acabo destrinchando demais as coisas. E aí fico chata, questionadora, implicante, querendo explicação pra tudo. Quem sofre mais são as pessoas que mais amo. É uma covardia isso, mas é histórico. Descarregar qualquer coisa em que mais amo é um defeito vergonhoso e que juro, venho lutando contra faz tempo. Com bons resultados. Falei que é covardia, porque brigar com quem gosta da gente é ter a garantia da desculpa. É esperar compreensão de volta. Fora que me parece uma busca desesperada por atenção.

Quando minha cabeça fica vazia, eu começo a procurar defeitos. Encaro o espelho e vejo imperfeições inaceitáveis, temíveis. Onde existem as usuais celulites e estrias, vejo deformidades que nem os melhores maquiadores hollywoodianos poderiam reproduzir.
Preciso encher a cabeça de ocupações. Divagando sou um perigo. Leio as entrelinhas quando elas não existem.

Difícil foi enxergar isso tudo e questionar: será que minhas reclamações conferem ou estou perdendo a razão? Se estivesse com problemas de verdade, estaria colocando chifre em cabeça de cavalo? Com certeza não. Piora quando, além de reclamar, grito, xingo e perco a razão. Mesmo estando com a razão. E aí, fico ainda mais nervosa, porque mesmo argumentando, vão achar que é apenas mais um piti.

Ainda não levantei da cama. Preguiça, vontade de não fazer nada. O gato entra no quarto e me olha com carinha de quem quer ser levado pra passear na varanda. Meu peixe olha pra mim querendo comida. Como é fácil vida de bicho. Acho que quero ser gato na próxima vida.

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com

3.11.06

Me tire daqui


De segunda a sexta acordo entre seis e seis e meia. Ando quatro quilômetros por dia. Às vezes, seis. Às vezes na areia da praia, às vezes no calçadão. Muitas vezes pela manhã. Poucas, à noite. Tomo café da manhã todos os dias. Nunca deixo de tomar. Nem de escovar os dentes. Fio dental eu tenho preguiça, às vezes esqueço. Vou à manicure uma vez por semana, depilo de 20 em 20 dias. Corto o cabelo a cada três ou quatro meses.

Vou ao dentista, cardiologista, ginecologista uma vez por ano. Vou ao cinema uma vez por semana, aos domingos. Mas estou preferindo as quartas mais em conta. Tenho vontade de chorar pelo menos uma vez por mês, mas não posso ver gente chorando na TV que também choro junto. Choro sempre que vejo uma cena de Crash, quando a menininha entra na frente do moço que atira no pai. Choro muito. Leio todas as noites antes de dormir. Durmo cada vez mais e leio cada vez menos. Menos de uma página por noite. É quase um ano para ler um livro. Uma vez por mês gosto de ir a um bom restaurante, japonês de preferência. Viajo uma vez por ano por pelo menos dez dias. Encontro minhas amigas de adolescência a cada dois meses ou mais. Muito pouco. Faço sexo nos finais de semana. Ou nos feriados. Muito pouco também. Vou ao supermercado todas as sextas-feiras. Pego filme na locadora às sextas também. Escrevo de quinze em quinze dias para este blog. Tento comer doce apenas nos fins de semana.

Trabalho todos os dias. E todos os dias me imagino saindo dessa rotina. Me imagino indo segunda à tarde para o cinema, dormindo até meio-dia em plena quarta-feira, nadando às cinco da tarde qualquer que seja o dia, almoçando em uma barraquinha na praia, sumindo por dois dias sem avisar a ninguém, bebendo vinho numa tarde fria, fazendo curso de teatro às 10 da manhã, lendo um livro inteiro em um dia, andando de barco, visitando uma exposição no centro da cidade, indo a uma festa na terça à noite e chegando às 8 da manhã em casa. E mais que tudo isso, imagino por quem, além de mim mesma, me motivaria a fazer tudo tão diferente.

27.10.06

Pra você


Olho pra você e não sei o que aconteceu. Não, não precisa ficar preocupada. Ainda te amo sim, tanto que olha só, já sorri lembrando de seu rosto. Será que você está mais triste? Não consigo enxergar bem. Será que fiquei míope com você? Sinto falta de nossas conversas, de ouvir uma frase saindo de você como se eu a tivesse pronunciado. E de ver sua expressão impressionada ao escutar eu descrever um pensamento que você já tinha há tempos, mas não contou porque precisou sair correndo pra atender ao telefone.

Acredito que seja só cansaço. Você tá cansada, né? Se eu fosse mais melosa, ofereceria colo. E se você também fosse mais grudenta, aceitaria. Mas a gente é assim e se ama sem frescura. É, colo não é frescura, mas não combina com a gente, porque um olhar é tudo que você precisa pra me consolar quando estou triste. Mesmo quando você fala pouco, eu escuto tanto, porque tem muito por trás de tudo que você faz e diz. Mas agora, tá tão amuada. Quer um café? Faço um capuccino pra você, quer? Compro a revista que você gosta ou uma roupa nova da sua marca preferida.

Ixi. Eu vi! Vi um brilhinho aí. Vi um fósforo riscando e um foguinho se acendendo. Será que...será que....Será que você está apaixonada? Já se viu no espelho quando fala o nome dele? Cara de boba, de feliz, de garota propaganda de sandálias. Qual foi mesmo a última vez em que vi esse sorrisão? Não, aquela piada não vale. Tô falando de sorriso que vem acompanhado de um suspiro que esvazia o pulmão e deixa você asfixiada. Você já fez planos com ele? Não me engana não, que conheço sua cabecinha. Aposto uma bolsa nova como já se imaginou dando pra ele. Acertei, não é? Mas o mais assustador é pensar que você já fechou os olhos imaginando como seria o primeiro beijo. Não me sinto trocada não. Até porque esse tipo de prazer eu não posso dar pra você. Se vai dar em algo? Aí já não sei. Mas quem disse que precisa dar em algo? O ruim é que quando esse novo objeto da sua paixão some, você volta a ficar quietinha, calminha, encolhidinha.

Se eu estiver errada e essa calmaria for apenas uma paz que você lutou tanto pra atingir, pode dizer que estou errada. Ofendida eu não vou ficar, só mais feliz ainda.

Chega de falar tanto. Vamos ao cinema, na sessão das 19h, ver um filme bobo e chorar pelos problemas dos outros. E os nossos problemas? Ah, vamos fazer o que sempre fomos mestras. Vamos rir deles?

19.10.06

Hoje eu iria embora


Hoje eu iria embora, embora tantas amarras me prendam aqui. Sem temor, acreditando em poder ficar longe disso tudo, iria embora. Ficaria bem longe dos seus gritos, da ausência de entendimento entre nós que a cada dia fica maior e mais difícil de se controlar. Tão grande que invade os lugares que mais tentei proteger. Lá onde acho o amor e a alegria que sinto por você. Não me importa mais, a dor ficou maior, o grito fala mais alto, todas as minhas lágrimas inundam os cantos de tudo que temos juntos.

Como sou eu que estou escrevendo falo por mim e falo das minhas dores. Da dor que causei em você quando não acreditei no que você me oferecia, era o começo e, muitas vezes, preciso começar devagar. Da dor que sinto de não conseguir desfazer esse sentimento em você. Da dor de não ter sido querida o suficiente por você por minha própria culpa. De sempre ver um pé seu do lado de fora. Da dor de ver o tempo passar e não mudar na direção que quero. De que é feito o amor? Construir coisas juntos é amar? Então a gente se amou pouco. Tudo sempre com tentativas, um medo que ronda a maior parte do tempo, a falta de fé, de esperança, de amor, não entre nós, mas em todo o resto.

Não vejo mais saída, eu que sempre acreditei. Assumo que não quero mais como está – e que fique bem claro que é como está. Também não sei se um dia foi diferente, se um dia deixamos de sofrer um por causa do outro. Pois estou me protegendo agora, e não o que temos em comum. Eu, eu e eu não quero mais isso pra mim. Não quero chorar por você, não acredito mais em um tempo melhor. Não acredito que possamos ficar uma semana sem brigar com toda essa intensidade. Aposto comigo mesma que não, estamos esperando o que para mudar essa história, pra interromper o caminho. Por que é tão difícil enxergar? Eu choro, você grita, não nos entendemos, não aceito o jeito de você falar, não me esforço pra entender mais. Não tenho mais força para querer. Quero apenas pensar em não sofrer. Já medi os sentimentos, acho que sei até onde posso ir. Não posso ir mais desse jeito, já dissemos isso um ao outro.

Disse que iria embora e vou. Já fiz meu roteiro. Estou lendo, lendo, lendo. Quero decorar os caminhos que agora vou percorrer sozinha. E sem dor.

Ilustração: Radael Jr.

11.10.06

Poltrona 4


Lá estava eu em mais uma viagem de ônibus repentina. Entrei e ocupei minha poltrona executiva do lado da janela. Guardei a mochila no compartimento acima da cabeça, coloquei a bolsa encostada no apoio do braço e lembrei que havia esquecido o Dramim em casa. Ô, merda. E se viesse aquela pessoa que vale por duas sentar do meu lado? Sem Dramim, como é que eu ia dormir? Ou ao menos abstrair a invasão do meu território?

Fiquei com o olhar parado, mirando a entrada do corredor do ônibus. Entrou um senhor. Passou reto. Entrou uma adolescente, loira e lisa de mentira. Passou reto. Entraram mais umas senhoras simpáticas, um homem sério e uma jovem com cara de cansada. Nem um deles sentou ao meu lado. Droga, pareciam todos aptos a não me proporcionar uma viagem com conversas. Fui ficando tensa, imaginando o que o destino, ou a maldita mulher do guichê da Águia Branca, havia aprontado pra mim. Fiquei lembrando se tinha sido simpática com ela. Dei bom dia, obrigada, por favor, paguei tudo rápido. É, não tinha por que ela colocar alguém fedorento, falador e enorme ao meu lado. Entraram mais algumas pessoas. Alguns congelaram todo o meu sistema nervoso. Um bombado, com bermuda florida foi um deles. Depois um outro jovenzinho, que já entrou no ônibus falando "aê, galera, boa noite!". Esse aí me deu até falta de ar. Mas ele passou direto pela minha poltrona.

De repente, vejo o motorista entrar no ônibus. Ele segue até o corredor, cumprimenta os passageiros, diz que vai nos conduzir até o Rio, numa viagem de aproximadamente 8 horas, que pararemos em Campos por 20 minutos e que no final do corredor tem água e café à disposição. Disse também que é totalmente proibido fumar no interior do ônibus, inclusive no banheiro. Terminado aquele bem treinado discurso, invenção de algum marqueteiro, com certeza, ele foi para sua cabine e iniciou a viagem. Parecia mentira de tão bom que era. Eu ia sozinha até o Rio, com duas poltronas só pra mim. Dormi tão bem que teria ido até o Acre.

Era hora de voltar para Vitória. Entro agitada no ônibus e quase arranco cada pentelho meu de raiva quando lembro que novamente esqueci o Dramim. Não, não daria a mesma sorte da ida. Essas coisas não acontecem duas vezes. Agora era certo que um ogro, melequento, flatulento, bafudo e tarado sentaria ao meu lado. E sem meu Dramim eu passaria oito longas horas encolhida que nem feto pra não encostar sequer a ponta da unha nele.

Começam a entrar os ilustres passageiros. Como na ida, tinha de tudo. Alguns simpáticos, outros assustadores. Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo de novo. Eu tensa, ombros duros, costas doendo, só de imaginar quem seria meu companheiro de viagem. As pessoas que vão entrando se aproximam da numeração da minha poltrona. Eu reparo tudo quase imóvel, apenas os olhos se mexem. E então, mais uma vez, o motorista começa o tal discurso e descubro que viajarei sozinha novamente. Tanta felicidade assim nem cabia naquelas duas poltronas executivas. Ri sozinha, olhei para os lados pra me certificar que era verdade e jurei pra mim mesma que daqui pra frente, não passo por essa tensão nunca mais.

Das próximas vezes não vou ficar imaginando quem comprou a cadeira ao meu lado. Vou ser a última a entrar e ser o pesadelo de outro passageiro. Urrárrárrá.

2.10.06

Na cama



- Vem cá, deita aqui do meu lado.
- Peraí, tô acabando de espremer um cravo.
- Faz isso não, gata, você vai ficar toda marcada. Vem cá, vem.
- Já vou, já vou.
- ...
- Meu nariz tá muito vermelho?
- Tá igual ao do Bozo.
- Pááára.
- Eu falei pra você não espremer.
- Ai, tô com frio, vou pegar uma coberta.
- Você não pára quieta.
- Quer água?
- Você sabe o que eu quero.
- Agora sim. Juro que não levanto mais.
- Humm...você tá tão cheirosinha.
- Mô, levanta um pouco o braço, você tá prendendo meu cabelo.
- Assim tá bom?
- Tá.
Triiiiiimmmmm
- Ah, não, putz...
- Deixa tocar, gata.
- Mas a Paula ficou de ligar pra gente combinar de ir ao cinema.
- Dane-se a Paula e o cinema. Quero ficar com você aqui, só existindo.
- Tá bom, chuchu.
- Ai, agora meu braço tá dormente. Vira um pouco de lado, isso. Levanta essa perna também. Agora tá bom. Quer dizer, tá meio quente aqui. Você desligou o ar?
- Só um pouquinho...
- Putz, por isso que eu tô suando. Levanta de novo e liga então. Não dá pra ficar fritando aqui.
- Tá bom, tá bom.
- Humm, vem cá, vem. Isso, agora tá ótimo.
- Coloca só esse braço aqui, assim.
- Melhorou?
- Tá ótimo.
-...
- Mô?
- Oi.
- Preciso levantar pra fazer xixi.

21.9.06

Minha grama é mais verde

Era casada. Bem casada até. Marido bonzinho, que leva café na cama, dá flores sem datas comemorativas e liga pra dar satisfação. Vivia com ele por oito anos e o amava de um jeito gostoso e tranqüilo, como nunca havia sido. A harmonia era perfeita. Combinavam tão bem quanto chocolate e tpm.

Mas um dia ela soube. Chegou ao seu ouvido que aquele tal de Fred, o rapaz lindo amigo de Betina e Davi, era perdidamente tarado por ela. Mas você vê só... o Fred. O Fred pode ter a mulher que quiser. Fred toca em uma banda. Toca bateria e faz as meninas quererem nascer bumbo na próxima encarnação. A timidez, hunpf, a timidez dele é minhoca em anzol. E como tem garota que fisga. Mas ela? Ela nunca, nunca pensou que com tantas candidatas disponíveis, seria a escolhida.

Gargalhou. Claro! Só porque ela era comprometida. O difícil é mais interessante, mais desafiador. Filho da puta esse tal de Fred. Mas que filho da puta mais gostosinho da mamãe. Filho da puta dez vezes, maldito. Por que foi querer justamente ela? Agora vivia ocupando aqueles segundos de ócio na vida dela. No momento em que mexia o açúcar no café, bu! Lá vinha o rosto dele em sua memória. Quando trocava o rolo de papel higiênico, bu! Fred na cabeça. Quando procurava o vidro de desinfetante, bu! Olha o Fred de novo. Já estava mais pra Fred Kruguer, de tanto que ele assombrava a vida dela.

Como queria nunca ter sabido disso. Agora se sentia uma estúpida, eterna insatisfeita, que tem a vida que sonhava ter desde os 12 anos, com cada meta cumprida no tempo ideal, mas desejando aquele baterista. Falando assim parece até que Fred não valia a aflição dela. Que nada. Fred era doce. Adorava animais, era fiel às namoradas, tratava a família com respeito, era esperto, tinha um emprego que amava.

Foda-se toda as qualidades do Fred. Ela queria odiar Fred. Não, odiar também não, porque aí ia acabar querendo mais ainda. Mais? Seria possível? Ele já podia entrar na justiça e pedir usucapião por tempo de ocupação da mente dela. No banho, imaginava ele entrando no box. Quando trocava de roupa após o banho, escutava a voz baixinha dele falando "sabia que você é linda?". Quando se vestia pra sair, o ouvia mandar tirar tudo de novo pra então treparem loucamente, até ela ligar para o 190 e pedir socorro. E logo depois de ter pensamentos grudentos e molhados, ela quase chorava olhando para a foto do marido.

A relação com Fred não tinha futuro. Resolveu deixar de lado, terminar tudo antes de começar. Nunca comentou nada, nem mesmo com as amigas. Fred era a prova de que ela ainda era capaz de atrair homens, apesar de comprometida. Pode parecer estranho, mas era a certeza de que seu marido era o homem certo. Afinal, ela poderia estar com Fred, definitivamente ou às vezes, pra dar uns pegas. Mas nada valia tudo que havia conquistado com seu esposo. Daí em diante, sempre que brigava com o marido, que se sentia feia ou precisava de um elogio, ela pensava "Fred me quer" e tudo ficava bem de novo.

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com

11.9.06

Backstage


Ele invadiu e por trás. Nem sequer perguntou se podia, a foda já estava mais do que quente para ser interrompida com cerimônias. Ela tremeu, se encolheu diante da dor extrema que o ato provoca. O bico do peito endureceu, não sabia se de excitação ou pavor. Foi se acostumando com a idéia, mais pela condição em que se encontrava. Estava totalmente dominada, era quase um estupro. E nos dias de hoje, com tanta luta das feministas pela igualdade, ser dominada assim havia se tornado um fetiche para ela. Era independente, bonita, tinha dinheiro e apartamento. Não precisava de ninguém. Podia sim ser subjugada. Nossa, que pau duro esse, pensou. E se sentiu molhada novamente, a dor estava dando lugar ao prazer. Demorou a admitir isso, mas sexo anal era bom, uma delícia. Leu que apenas 15% das mulheres admitem fazê-lo e se encheu de orgulho. Se sentiu inchada e quente e desejou mais e mais. Agora gritava. Entendeu que a mulher leva a melhor na hora em que trepa. Além dos peitos fartos, tem vagina, clitóris, lábios. Podem-lhe comer o rabo enquanto ela brinca com os dedos, enfiando, tirando, esfregando. Pensou que amanhã mesmo iria comprar um vibrador para sentir ainda mais prazer. Se orgulhou de novo em ser mulher. E riu da idéia de que o homem se contenta em comer seu cu, que se gaba por isso e nem consegue enxergar que quem se dá bem na verdade é ela.

30.8.06

Como acabar com um dia em menos de 24 horas



Teve um daqueles sonhos ruins. Lembrava-se de absoltamente nada, mas sentia resquícios amargos de pesadelos, como uma ressaca. Levantou-se rapidamente e foi direto lavar o rosto e tentar despertar o cérebro para uma nova realidade. Ao olhar-se no espelho viu que mantinha as sobrancelhas e a testa franzidas. Tratou de relaxar e mentalizou "foi só um sonho". Foi tomar o café e, no caminho para a cozinha, deu bom dia a todos. Apesar de seguir o ritual matutino, sua irmã notou uma expressão diferente e perguntou:
- Tá nervosa com o quê?

Achou a pergunta engraçada. Tudo bem, ela sabia que não era lá uma mulher calma, mas em vez de bom dia ouvir tá nervosa? era demais. Não se considerava atacada, mas a maioria dos amigos diziam que ela era sim. Dentro dela, sabia bem a diferença entre sentir raiva e sentir tensão. Mas por fora, devia ser que nem o Ricardo Macchi: não demonstrava a menor diferença entre as duas expressões. Daí a razão de todos sempre acharem que ela estava puta da vida quando na realidade estava só exaltada. Falava alto, com paixão, com gestos fortes. Mas isso não era raiva. Quando ficava com raiva, estressada, atacada, como diziam, ela ficava era quieta. Mas por mais que tentasse explicar isso pra alguém, sempre achavam que era desculpa.

- Nervosa? Não. Tive algum sonho estranho. Um daqueles que some da memória, mas deixa uma sensação ruim.
- Odeio esses sonhos, odeio.
Terminou o café e resolveu tomar um banho com seu óleo preferido, pra ver se chamava boas energias ou se conseguia chamar o sonho de volta, pra pelo menos entender o motivo do mal-estar.

Saiu para a aula. Era dia de Estatística. Chegou tarde, já que sua irmã, que odeia tudo, nesse dia odiou sair com pressa de casa e atrasou todos que estavam de carona com o pai. Entrou na sala, sentou, arrumou os cadernos em cima da mesa apertada, guardou uns livros embaixo da cadeira e respirou fundo. Agora começaria a assistir à aula.

- Eliane.
- Sim, professor - desde quando o professor sabe meu nome, pensou ela.
- Pela sua cara vejo que passou a noite estudando.
- Não, dormi mal mesmo.
- Tá irritada?
- Não, professor, tudo bem.
- Então aproveite que está bem e venha ao quadro responder à questão 6.
Ir ao quadro era um terror para ela. Até cogitou a hipótese do sonho ruim ter
sido exatamente isso. Mas pior ainda era ouvir de novo "tá irritada?". Porra,
mas será que por mais que se esforçasse, sempre parecia nervosa?
Terminada a aula, recebe um telefonema de Rafael.
- Bom dia, tchuquinha.
- Oi, môzin, bom dia.
- Tudo bem? Tá com uma vozinha triste.
- Impressão sua, tá tudo bem.
- Mô, tô ligando pra dizer que não vou poder jantar com seus pais hoje.
- Mas tá marcado há mais de um mês, Rafa.

E de repente, como se fosse sugada por um ralo, viu o sonho ruim voltar à sua mente. Via seu namorado com um abadá, abraçado a duas mulheres, uma lata de cerveja em cada mão dizendo "eu falei que comigo era assim. se quiser agüenta." Milésimos de segundos depois, tragada de volta ao telefone, piscou os olhos rapidamente e balançou a cabeça, tentando eliminar a vertigem.

- Porra, Rafa.
- Lili, não fica nervosa.
- Desculpa. Acabei de lembrar do sonho. Foi ruim mesmo. E o que você falou
não ajudou. Posso te ligar depois?
- Credo... não precisa estressar.
- Por que todo mundo cismou que tô estressada? é a terceira pessoa hoje, que coisa. não é estresse. Só preciso me recompor.
- Quem tá calma não precisa se recompor.
- Me ajuda, mô, vai.
- Ajudar a quê? Você tá me maltratando.
- Não tô maltratando, porra.
- Ó, já tá até xingando.
- Falei porra, nada demais, nem é xingar. É que nem poxa, putz, caramba.
- Se é igual você podia ter falado "não tô te maltratando, poxa".
- Rafa, sério, na boa. Deixa eu desligar. Te ligo depois, tá?
- Você tá puta porque desmarquei o jantar, fala a verdade.
- Rafa... Rafa... eu tive um sonho ruim com você e acabei de lembrar, tá? Acordei ruim, cheguei atrasada, fui pro quadro. Só que além de lembrar do sonho horrível que tive, acabei de ouvir de novo que tô estressada. Enfim, preciso respirar um pouco, deixar isso passar.
- Agora tá me culpando? Com todo mundo você foi calma, comigo é que fica dando ataque.
- Que ataque? Do que você tá falando? Tá doido? Não mudei o tom, não levantei a voz.
- Não, Eliane, quem tá doida é você. Tá nervosa comigo porque sua manhã foi uma merda.
- Eu não disse isso.
- Então agora eu também sou mentiroso?
- Não, Rafael, você tá entendo tudo errado.
- E burro também?!
- Melhor não falar mais nada.
- Também acho. Quer saber? Vou desligar e você fica aí pensando no seu pesadelo.
- Mas era isso que eu queria fazer desde o início.
- Então você já tava planejando essa conversa??
- Não, Rafael, eu.... ai, cansei.
- Eliane, quer saber. Se você queria terminar comigo, poderia ter feito ao vivo.
- Rafael, do que você tá falando? Meu Deus, que coisa sem sentido isso tudo
- Sem sentido mesmo. Quer saber? Depois a gente conversa.
tu tu tu tu tu.

Sem conseguir levantar o queixo, Eliane foi caminhando em direção à cantina. Inspirava e expirava lentamente. Decidiu pedir seu suco preferido. Pior não poderia ficar.
- Um suco de maracujá, por favor.
O coração ainda estava disparado, mas se recusava a entregar sua manhã à tanto mal-entendido. Jogou suas esperanças pro suco que logo logo ficaria pronto. Ia até colocar açúcar em vez de adoçante. E no final ia chupar e morder todos aqueles gelinhos, bem devagar, pra ajudar a espantar a tensão e o calor. E quando só sobrasse aquela espuminha no fim, puxaria com um canudinho até fazer barulho. Os outros que olhassem, ela nem ligaria.
- Suco de maracujá é de quem?!
- É meu, meu! - Ela respondeu feliz, quase saltitando, certa de que a salvação do dia estava naquele copo sujo de vidro, onde dois canudos, provavelmente anteriormente usados, a levariam ao nirvana.
- Suco de maracujá é bom pra acalmar.
- An-rã.
- Tá nervosa?
Sim. Agora ela estava.

ilustração: vlad paiva.

18.8.06

Do you wanna dance?


Tenho inveja de quem sabe dançar. E a culpa por eu não saber deixo toda com a minha mãe, que não me colocou no balé quando eu tinha três anos de idade, nem falou pra eu fazer jazz quando tinha dez. Não tenho ritmo, não sei acompanhar as coreografias inventadas na hora nas festinhas bagaceiras, sou desajeitada até.

Teve um filme que ficou seis meses em cartaz no cinema da UFES, o Metropólis. Acho que o nome era Vem dançar comigo, se não me engano era um filme australiano. Pelas filas que se formavam na porta do cinema, imagino que muita gente compartilha comigo a inveja de não saber rodopiar nos salões de baile com a elegância de uma bailarina russa (meu deus, de onde tirei isso?).

Se tenho um sonho, ou mais um, é aprender a dançar. E não é só isso. Sonho em ser levada pelos braços por alguém que também dance como Fred Astaire. Que me pegue pela mão na hora da música perfeita, que o tempo pare na hora, que a vida fique em câmera lenta. Na verdade, não precisa tanto. Já iria ficar feliz só com a encenação de uma dancinha de corpos encaixados, rostos colados e pés certamente pisados.

Perto do meu trabalho tem um clube, o Centenário, onde um professor chamado Emerson Barreto dá aulas de dança de salão. Quase todos os dias penso em ir lá me inscrever, mas ainda não consegui coragem suficiente. Fico pensando na seguinte cena: Olá, boa noite. Eu vim fazer a aula de salão. Se eu sei dançar? Não, não. Se eu gosto de musicais? Sim, por quê? Bee Gees, não, nunca dancei nenhuma música dos Bee Gees. E neste exato momento vem lá de dentro um rapaz de terno branco que atende pelo nome de Tony Manero, me puxa pela mão, as luzes se apagam, o globo espelhado começa a girar e só conseguimos ouvir ah, ha, ha, ha, stayin' alive, stayin' alive. Dançar pode ser muito arriscado.

9.8.06

Desisto

Qual é a hora de desistir? Quando tenho que tirar o time de campo? Como é que vou saber se estou sendo sensata ou se estou amarelando? Lembro de quando tinha uns 18 e alguns anos. Disse aos meus pais:
- Quero fazer aula de dança Flamenca.
Meu pai então respondeu:
- Mais uma coisa que você vai começar e parar pela metade.

Na época, não sei quantas coisas já havia largado no meio. Mas agora resolvi fazer uma retrospectiva. Balé eu fiz quando morava no Rio. Chegando aqui fiz Jazz. Devo ter saído porque aulas de Jazz pararam de existir. Até me apresentei no Carlos Gomes. Um talento desperdiçado. Inglês fiz até o fim. Foram 7 anos. Piano eu parei. Não gostava do professor. Voltei quando estava já na faculdade. Mas era meio carinho, não deu pra levar. Caratê. Fui até a faixa amarela. Parei porque minha coluna doía. Curso de escalada. Apesar de ter amado não continuei praticando. Curso de italiano. De francês. Faculdade. Pós-graduação. Hidroginástica. Body Jump. Duas aulas de alemão gratuitas. Curso de teatro. Cursos, cursos.

E agora eu penso: por que diabos eu teria que terminar tudo que começo?
Não tenho o direito de mudar de idéia? Sei que meu pai, em sua função difícil de educar uma cabeçuda, estava apenas me alertando para algo que julgava poder se transformar num problema. Imagina eu não conseguindo terminar nada?

Uma vez o Gaiarsa, aquele psiquiatra com idéias polêmicas, disse que não existe isso de uma relação "não dar certo". Enquanto existe dá certo, oras. E acho que ele tem razão. Quando não há mais prazer em realizar algo fica impossível aproveitar. E aí, desistir não é covarde. E até bem corajoso. Veja bem. Não estou falando em ver um problema pela frente e chutar o balde sem mesmo tentar. O meu desistir passa por todas as fases: a do prazer, a da dúvida, a da persistência, a da persistência, a da persistência e só então da aceitação de que acabou.

O problema é saber quando acaba. Aquele minuto em que você diz: não dá mais. Uma amizade, por exemplo. Como saber a hora em que ela não existe mais? É quando as pessoas param de se ver? De se falar? Ou dura enquanto há amor? Se bem que amor não basta. Mesmo. Então é até quando há sintonia, coisas em comum? Como saber a hora de desistir de um projeto? Ou menos até. Como mudar de idéia com a certeza de que você não está se deixando levar pelos outros, mas simplesmente pensando de outra forma?

Pra que meu pai foi dizer aquilo. Virei uma paranóica (como é bom culpar alguém). Triste admitir, mas a gente já faz tanta coisa por obrigação. É conta pra pagar, cliente pra acatar, vizinho pra agüentar, horário pra cumprir. E quando quer desistir não pode simplesmente porque tem que ser firme, íntegro, mostrar persistência?

Por isso, pai, sinto muito, mas desistir não tem nada a ver com perder e ser derrotada. Tem a ver com chegar cada vez mais perto do que eu quero ser. Bem. Mesmo que eu não tenha a menor idéia do que eu queira ser. Mas que mal há em continuar procurando? Pelo menos vou aprendendo e me divertindo, sabendo que desistir não vai apagar nenhuma experiência passada. Apenas abrir a possibilidade para outras muito mais interessantes.

Ilustração: Vitantonio Semeraro (meu pai)

31.7.06

Declaração de ódio



Odeio quem buzina. Não quem faz um bi rápido, mas quem faz questão de descer a mão e soltar um biiiiiiiiiii de doer a alma. Ou quem pára em frente ao portão de alguém e cria uma melodia: bibi bibibibi bi bi biiiiii. E repete isso umas quatro vezes. Odeio quem não pede licença, não dá bom dia no elevador e se faz de sonso ao entrar numa fila. Odeio o Faustão, Gugu e seus genéricos. Antes de ter TV paga, assistia à TV Cultura aos domingos. Prefiro os programas que mostram elefantes e pavões em seus habitats naturais. Odeio gente estressada o tempo todo e gente que não muda o discurso: ai, menina, to tão cansada, to trabalhando tanto...Só você né, fofa? Odeio gente blasé. Odeio gente mal-educada, pedante, arrogante e gente que arrota alto no meio da rua. Odeio gente grossa. Odeio axé e daí pra baixo. Odeio peruinhas com som alto que tocam, adivinha o que, axé em pleno sábado de manhã pra anunciar uma micareta qualquer. Odeio gente que quer se enturmar rápido demais. Odeio Campari. Odeio bar com lâmpada florescente e mesa de plástico, a não ser nos pés sujos originais. Odeio médico que atrasa no consultório e não pede desculpa pela demora. Odeio cachorro pincher quando late e poodle pintado de rosa. Odeio puxa-saco. Odeio simpatia em excesso. Odeio e-mail com mensagens mela-cueca. Odeio drama e gente melindrada. Odeio escândalo. Odeio frescura mas também odeio machos muito machos. Odeio gente que bebe e perde a noção. Odeio cocaína. E, por fim, odeio bala de coco.

21.7.06

Dente

Acho que não comprei a revista TPM que falava sobre dor, senão releria agora. Se comprei não lembro. Aliás, consigo pensar em pouca coisa. Tudo que lateja em minha cabeça é dor, dor, dor, dor. Não aquela de tristeza, de perda, de saudade, de amor. Falo da dor física em sua forma mais cruel, aquela que paralisa, que tira o pé do chão de tão intensa. Aquela dor que não dá intervalos, que varia entre fina e pesada o dia inteiro. Nenhum outro pensamento tem vez. Impossível me concentrar em qualquer outro objeto ou assunto. O enredo da minha mente gira em torno da dor: será que vai passar? Por que o remédio não funciona?

Uma das piores sensações é a de que nunca vai acabar. Depois de três dias de dor intensa, a memória esquece como é se sentir bem. Tento lembrar, mas não ficou nem um pedacinho pra eu me apegar. Por mais que me concentre, dormir uma noite inteira e acordar normalmente parecem vultos na minha lembrança, como memórias da infância ou flashs de um sonho.

A vontade de ser forte vai se distanciando e tudo que quero é ficar dopada, estirada numa cama, ouvindo vozes lá longe. A paciência para respirar fundo, manter a calma e esperar passar começa a ser invadida por ondas de desespero. Queria apertar o off e ser religada quando meu corpo puder sentir a ausência da dor. Desabitá-lo um pouco e só voltar quando a faxina com amoxicilina já estiver feita.

Coisa injusta é dor. Por que não sinto a não-dor com tanta intensidade quanto sinto dor? Por que quando estou ótima, com a saúde perfeita, meu corpo não reage inversamente e provoca uma incrível sensação de plenitude? Algo tão grande e tão insistentemente presente quanto a dor, só que agradável.

Sou resistente à idéia de tomar remédio. Adio o máximo que posso, para entender, até onde for suportável, o que está acontecendo com meu corpo. Mas nesse caso não dá mais. Quero meu raciocínio de volta. Minha rotina, meu sono, a capacidade de poder escolher no que pensar, sem ser dragada de novo para uma realidade escura, fechada e apertada, que me prende a um único pensamento.

Entrego então esse dia à dor. Aceito os antibióticos, antiinflamatórios, o repouso que for preciso para amanhã não mais vê-la. Deixo ela derramar seu sadomasoquismo todo em mim. Sadomasoquismo sim, porque se ela fosse apenas cruel, má, uma assassina fria, me mataria logo. Mas não. Ela é esperta. Deixa sofrer, penar, agonizar, porque sabe que se me matar, morre junto.

Ilustração: Vlad Paiva

10.7.06

Sonho de bicicleta


Suas vontades eram as mais simples, e ainda assim não conseguia entender porque era tão difícil realizá-las. Sonhava em ter uma bicicleta para andar nas tardes de domingo, quando fazia sol. Domingos assim deixavam-na mais triste que domingos de chuva. Era o dia em que sentia inveja. Olhava as praças, via mães, filhos e maridos saudáveis vivendo o domingo da forma como sempre quis. Perguntava-se porque não podia viver também.

Era doído ver o sol que entrecortava as folhas formando desenhos dançantes nas calçadas. Só de ouvir o som das risadinhas de crianças sentia vontade de chorar. Meninas magras com suas roupas esportivas cortavam o vento, seus cabelos se enrolavam na sua melancolia. Não parava de se perguntar porque todas aquelas cenas incomodavam tanto. Por que ela não conseguia fazer parte daquele ambiente? Tinha filhos, marido e dinheiro para comprar uma bicicleta, mas sabia que aquele mundo não era para ela. Se comprasse a bicicleta certamente iria empatar um dinheiro para ficar na garagem servindo de abrigo para casa de aranha.

Um domingo ensolarado numa tarde de inverno era, definitivamente, o pior dia que poderia existir. Ligou a TV, jogou-se no sofá e esperou ansiosamente pelo fim do programa.

28.6.06

Breve no Polishop


Ter personal alguma coisa está na moda. Pelo que me lembro, tudo começou com personal trainer. E nem invente de chamar de professor particular, que não é isso. É personal trainer. Fica mais chique. Na verdade, tudo com personal na frente fica mais chique. Personal language, poderia ser professor de idiomas. Personal maid, empregada e personal mate, sinônimo para namorado. Imagine só:
- Fatinha, esse é o Marcelo, meu personal mate.

Aqui em Vitória, onde a população de peruas e emergentes é a maior per capita do país, imagino até um personal guide. Seria assim: você quer fazer compras, mas a Praia do Canto é tão grande que tem medo de se perder. Para ter certeza de que vai ao lugar certo, chama seu personal guide. Ele sabe exatamente onde encontrar o que você quer e no número que precisa, entre todas as opções que a Praia do Canto, o Jardins capixaba, oferece.

E quando chegar em casa, caso tenha problemas em combinar aquela peça de roupa com as outras de que já dispõe em seu closet de 20m², você vai chamar quem, quem, quem? Seu personal stlyler, claro! Se precisar fazer uma viagem, pra que esquentar a cabeça cheia de laquê com malas? Chame o personal organizer, que sabe como ninguém separar os coringas do seu armário e dobrar tudo tão lindamente que você vai ter pena de usar. Tudo isso, enquanto a personal nutricionista prepara o cardápio para seus personal filhos.

Ironias à parte, acho que um personal pode ser útil de verdade em alguns casos. Se tivesse que escolher um, escolheria (ou inventaria) logo um definitivo: o personal me. Não limitaria tarefas. O personal me faria tudo aquilo que não estivesse a fim de fazer. Banco, supermercado, trocar óleo, velórios, reuniões e alguns eventos sociais. Imagina a cara dos outros quando chegasse lá meu personal e dissesse:
- Olá, boa noite. Sou o personal me da Val. Ela me mandou aqui porque tinha outros compromissos marcados. Disse que sente muito e que não perderá o próximo. A propósito, bela festa, parabéns.

Além de ser bem mais simpático que eu, ele ainda reverteria a situação. Em vez de ficarem chateados com minha ausência, os anfitriões ainda sentiriam-se honrados com minha preocupação em enviar um representante. Fora que, o Zig Zag e o Paulo Octavio noticiariam o ocorrido no dia seguinte, lançando a moda em proporções tsunâmicas pela alta capixaba.
O personal me também poderia ser usado para fins mais baixos. Se alguém dá uma fechada no trânsito, você anota a placa calmamente e passa para seu personal, que perseguirá o infeliz e devolverá a gentileza assim que possível.

Ou seja, o personal me tornaria o mundo um lugar mais preguiçoso e vingativo.
Alguém quer patentear?

Ilustração do Galvão: www.vidabesta.com

13.6.06

Amar é não sentir irc


Quando a gente sabe que realmente ama alguém? Que sinal, que prova, em que momento a gente tem essa descoberta tão necessária e importante e, ao mesmo, tempo tão difícil de precisar? Eu arrumei minha maneira. Descobri que amar é não sentir irc. Irc é, para mim, um dos piores sentimentos que você pode ter por alguém. Por isso determinei que ele é muito mais forte do que todas aquelas baboseiras juntas: superar as dificuldades, perdoar, se doar, ser companheiro, ser verdadeiro, sentir tesão de segunda a segunda, ter pinto grande, ter bunda dura, ter dinheiro no banco. O irc é o vírus que destrói o amor.

Faça o teste para saber se você já sentiu irc por alguém:
1) Vocês vão a um restaurante fresquinho, desses cheios de talher e copos na mesa. Ele está lindo, bem arrumado e cheiroso. Mas não sabe pegar o garfo direito, pendura o guardanapo no pescoço e bebe o vinho tinto na taça de água. Como você se sente? Se nem ligou, ótimo, você não tem irc. Mas se se irritou, minha amiga, é provável que você tenha irc.

Quanto aos homens, não sei se eles sentem irc. Até porque eles são meio desligados para alguns detalhes. Se você é homem e está lendo este texto, por favor, dê sua opinião.

O irc não é a aversão a um defeito de alguém. É o nervosinho que você sente pelo jeito de uma pessoa a ponto de não conseguir tolerar nem mais um mês ao lado da pobre ou do pobre coitado. O irc começa aos poucos, você nem percebe direito. É difícil de controlar, é crescente, é dominante. Se você sente irc por alguém, dificilmente ele ou ela vai ser o amor da sua vida. Eu superei os ircs, acho que posso dizer que já sei amar.

3.6.06

A difícil arte de ser simples


Por um momento pensou em chamá-la de alma gêmea. Desistiu. Não queria rebaixá-la a alma gêmea de alguém tão imperfeito.
Ele tão bruto, tão cru. Não sabia esconder seus sentimentos. Eles vinham à tona de um jeito descontrolado. Que nem soluço. Jurava para si mesmo que tentaria ser mais discreto. Incomodava o fato de ele ter as emoções que sentia por dentro sempre estampadas no rosto. Queria saber mentir, ou simplesmente disfarçar, mas nem isso conseguia. Acreditava que essa transparência era uma qualidade, mas desejava aprender a controlá-la. Era incapaz de engolir certas angústias. "Melhor assim", dizia a mãe dele. "Engolir frustrações pode até dar câncer". Ela não imaginava o quanto ele gostaria de correr o risco.

Sentia-se um louco quando, diante da mulher que tanto amava, tinha ataques aparentemente infundados. Experimentava tudo com tamanha intensidade que na adolescência, cercado de espinhas e ignorância, pensava se não era gay. Um homem pode ser assim, tão sensível a tudo? Chegou a considerar a hipótese de ser evoluído demais. Ou ao menos de estar um passo acima da humanidade na escala da evolução. Porque via os pormenores de tudo, ia além do que qualquer um poderia ver. Nada era o que parecia ser. Cansado da teoria darwiniana partiu para a da loucura. Estava convencido de que era doido, maluco mesmo. Que dava proporções absurdas a qualquer coisa.

Estar ao lado dela era a prova maior de que sua mente funcionava de forma misteriosa. Ela sempre calma. Demonstrava algumas inquietações. Mas não chorava diante de pequenos imprevistos ou quando algum programa de TV mostrava dois irmãos se reencontrando depois de anos. TPM, rompantes, ataques. Nada disso acontecia com ela. E quem poderia culpá-la? Apenas invejá-la pela simplicidade com que encarava tudo. Sim, poderiam acusá-la de ser superficial. Pura inveja. Quantos como ele, que não só vêem beleza na tristeza, como gostam de degustá-la, não sonhavam em conseguir ser como ela? Não complicar a vida. Não ter que disfarçar o que sente porque simplesmente não sente. Não se sentir refém de qualquer emoção vagabunda. Não ter medo de se arriscar por desconhecer o tamanho do tombo que pode levar. Não questionar o quanto se é capaz, não se comparar a outros. Apenas fazer o que acreditava fazer bem. Não precisar sofrer, cair, apanhar pra conseguir ver graça em piadas bobas ou comédias românticas.

Ele a admirava. Lutava pra tentar chegar perto do que ela era. Mas sempre que se via diante uma situação em que perdia o controle de suas lágrimas, percebia que nunca conseguiria. Aquilo era sua natureza. E aquilo um dia, ainda acabaria com tudo.
E de fato foi isso que aconteceu. Ele terminou. Não suportava mais tentar entender por que ela o amava e como eles davam certo apesar de tão diferentes. Pensava tanto que não tinha tempo de ser feliz. Que estúpido.

Ilustração: Paulo Prot
http://deliriumtremens.zip.net

24.5.06

Só nos resta viver


Encontrei a solidão esses dias, entre 9 e 10 da noite. Era uma terça-feira, e as terças-feiras sempre se mostraram difíceis e ardilosas. Sinto o gosto da terça-feira, nem chega a ser amargo, tem gosto de inseto que entra pela boca quando você está distraído. As memórias de outras terças-feiras, do peso do dia que parece ter mais de 24 horas, que parece ser longo como um sermão na igreja, que é insuportável como o horário político. É terça-feira, estou sozinha, vulnerável, o tempo é gelado, o vento é cinza. Perfeito para um encontro com ela, justamente de quem mais procuro fugir, me esconder, evitar esbarrões desnecessários.

A solidão é supérflua, não preciso dela, não sinto falta, não desejo e aprendi a me livrar dela com o tempo. Aliás, fazia muito tempo que não pensava nela. Mas bastou ser terça-feira, fazer frio e ser 9 horas da noite, entrar no carro, dar algumas voltas pela rua, ver os bares com casais, ver outros bares vazios, não ver nenhuma mulher sentada sozinha em nenhum deles para me sentir sozinha. Vejo um homem sozinho no bar, bebendo e fumando. A solidão veste melhor um homem que uma mulher. A visão de uma mulher no bar, sozinha, fumando e bebendo é dura e estranha. Além da solidão ainda encontro o preconceito. Estou muito bem acompanhada nesta terça, como já deu pra notar.

De nada adianta os livros que li, o quanto amadureci antes do tempo, todos os perrengues que passei, não adianta o que algumas pessoas já falaram de mim, que sou forte, que agüento tudo, que seguro qualquer coisa. As frases prontas estalam na cabeça: você não precisa de ninguém para ser feliz, você tem que se bastar, você não pode depender de ninguém. Quem falou tudo isso não estava no meu lugar, numa terça-feira fria, com a solidão ali, sentada no banco do carona olhando pra mim. E quanto mais voltas eu dava, querendo encontrar um lugar para me livrar dela, mais ela se recostava no banco e ria. Também dói em mim saber que a solidão existe e insiste.

16.5.06

Sem querer querendo

Odeio pedir desculpas por várias razões. Orgulho nem é a pior delas. O que mata é o que vem por trás das desculpas. Algumas situações são simples de lidar. Um pisão no pé, por exemplo, foi mal aê resolve. Mas em outros casos, desculpa só soa como uma palavra vazia, que tenta reverter algo que não tem volta.

Outro dia eu fui, digamos, um tanto quanto grossa com alguém que amo na frente de outras pessoas. Sim, eu sabia que estava fazendo merda. Mas dentro de mim, em algum lugar, tem um botão que aciona meu Personal Pica-Pau Mau. Não sei precisar o que faz isso surgir, mas normalmente é algo que mexe, de forma que nem eu entendo bem, com meu orgulho ou minha segurança. E aí não consigo me controlar. Vem brotando lá das profundezas do pior lado do cérebro um pensamento maldoso que toma a temida forma de uma frase extremamente escrota, dessas capazes de acabar com o clima de qualquer situação. E aí, depois de um papelão desse, me sinto ainda mais estúpida de ter que pedir desculpas. Como se pronunciar a palavra fosse consertar o que aconteceu. Sim, eu sei que o objetivo de se desculpar não é reparar o passado, mas mostrar que está arrependido, que sente muito pela cagada que fez. Mas a culpa, a consciência de que a qualquer momento algo pode novamente acionar aquele botão do pica-pau mau, faz qualquer desculpa parecer inútil. Não para o outro, mas para mim.

Desculpas não têm propriedade de fazer o fato passado entrar em ebulição e evaporar no ar. A grosseria continua lá, registrada na mente de quem sofreu com minha estupidez. Assumir o erro não faz a culpa sumir. Continuo envergonhada por um bom tempo, até provar pela convivência, que a merda que fiz foi exceção e não regra.

E é essa a razão maior de eu odiar desculpas: saber que eu cheguei ao extremo, que passei por várias etapas, que tive a chance de parar antes, mas fui adiante, até chegar ao ponto de cometer um erro cretino e ter que me desculpar. Pior que isso é saber que pedir desculpas não me livra de cometer o mesmo erro novamente e aí então, me sentir um cocô outra vez.

Por isso que tenho pavor de gente que faz da desculpa um hábito, um vício. Que ofende, erra, trai, mente e pensa que tudo se resolve com um olhar de cachorro que caiu da mudança e um “me desculpa”. Pra agredir mais só falta dizer “sou humano”. Sou capaz de mandar se fuder.

Como hoje estou num dia bom, vou ser otimista. Vou acreditar que se guardar direitinho na minha memória a sensação ruim que é se arrepender e ter que se desculpar, talvez cometa menos erros. E quando ainda assim vacilar, não vou sofrer tanto quanto ou até mais que a vítima. Porque pior que ter que pronunciar essa bendita palavra, é não admitir o erro e negar se desculpar.

Ilustração do Galvão. www.vidabesta.com

4.5.06

Merda

Vou fazer jus ao nome deste blog. Vou falar sobre cocô. O pior deles, na minha opinião. Aquele que insiste em ficar nadando e se exibindo no fundo do vaso. Geralmente, o tipo é um cocozinho pequeno, mas desafiador. Observe a cena: sua mão está determinada, uma, duas, três vezes você aperta o botão da descarga. E o que acontece? Nada. O maldito cocozinho sobe, desce e finge que se vai no redemoinho formado pelas corredeiras que saem de todos aqueles furinhos da louça. Mas quando tudo volta ao normal, as águas da latrina se acalmam, lá está ele de volta. Parece um personagem de filme de terror – quando você pensa que tudo acabou bem, ele ressurge das profundezas.

Ele nada contra a corrente, é praticamente um subversivo. Só o que vai por água abaixo nessa brincadeira é sua consciência ecológica. Cada desejo de ver o mísero cocô desaparecer da sua frente significam, dizem, 25 litros de água limpa indo parar em alguma praia longínqua. Essa merda de cocozinho não merece tanto. Então porque ele não vai embora de uma vez, que nem os outros? Já sei porque. Enquanto ele brinca de dançar no fundo da privada ao mesmo tempo me encara e deixa bem claro a que veio. O tal cocozinho é o medo que tenho de errar, o pavor que tenho de falhar, o pânico que me bate de esquecer. Por isso ele fica ali, me fazendo lembrar que preciso ficar atenta até mesmo depois de, você sabe. Senão, o sujeito principal deste texto volta de onde nunca deveria ter saído pra contar pra todo mundo: ela cagou.

26.4.06

Descarga



Hoje é um desses dias que sinto vontade de agredir todo mundo. É, assim mesmo, sem motivo. Ou melhor, por qualquer motivo que me derem.

- Bom dia, Val. Dormiu bem?
- Ahhh.... vá se fuder que você não tem nada a ver com isso.

- Ontem minha namorada fez um pavê de chocolate só pra mim.
- Se afoga nessa merda de pavê. Morra.

- Fire Comunicação, boa tarde.
- Oi, da onde fala?
- Da putaquetepariu, seu bastardo, filho duma égua. Como é que você liga prum lugar sem saber onde é? Seu escroto!

- Valeria, o tanque do carro tá pela metade (nesse caso minha consciência falando comigo).
- Pega esse tanque e enfia sabe onde, porra (nesse caso eu agredindo a mim mesma).

- O elevador tá subindo?
- Sua anta, é o último andar. Vai subir pra onde? Tinha é que subir sangue é pra essa sua cabeça cheia de merda.

- Valeria, hoje é dia de mudar sua série de exercícios.
- É dia de mudar o caralho. Mudo essa desgraça quando quiser. O corpo é meu, eu que pago seu salário. Vai cagar, sai daqui. Xô.

- Por favor, leia a questão seis do seu livro.
- Eu ler? Nem fudendo, lê você se quiser.

- Amiga.... tô mal hoje. Queria xingar todo mundo.
- Fica assim não, Val.
- Hunpf...
- Ah, lembra que ia depilar a virilha em formato de rosa? Eu fiz! Ficou jóia.
- Mas hein? Eu triste e você falando da depilação? Foda-se sua buceta! Tomara que você nunca mais dê essa rosa pentelhuda nem prum cachorro, sua insensível.

- Val, eu vi até o 12º episódio de Lost, lálálá lá lááá lá. Se eu quiser posso contar, lálá lá lááá lá.
- Conta, por favor, conta. Conta que arranco seu olho no dente, seu inútil, seu puto. Quero que você se foda muito, vai se fuder, você e o 12º episódio de Lost.

- Você cortou o cabelo, Val?
- Não, ele diminuiu, seu retardado. Que pergunta estúpida. Sempre te achei um
bosta mesmo.

- Olha, Val, você tem um blog.
- Sim, eu e Elisa.
- Mas que texto grande. Tenho preguiça de ler.
- ENTÃO VÁ SE FODER. Não pedi pra você ler porra nenhuma, pedi?
Então não me enche a porra do saco, sua piranha. Pega um desses rolos de macarrão, sabe? Então, e enfia nessa bunda gorda e roda ele até sair macarrão pela boca, sua vaca.


Me sinto melhor agora. Não é que consegui até rir? Descarregar uma raiva infundada no papel, sem gritar com ninguém, é bem divertido, saudável e o melhor, não deixa seqüelas nem provoca brigas.
Só queria conseguir isso mais vezes.

Ilustração do Galvão. www.vidabesta.com

17.4.06

Nada a reclamar

Mudei com meus pais para Vitória quando tinha 14 anos. Achei a cidade uma droga. Eu morava em Brasília, tinha lá meus amigos, minhas histórias de infância, minha escola onde estudei desde pequena, todas as minhas referências. Mudar para Vitória foi o primeiro trauma que vivi. No avião, vindo pra cá, chorei nas 2 horas que duraram o vôo. Nem a visão da praia de Camburi, que eu ainda não sabia que era poluída, serviu para me alegrar. Que se dane a praia, quero minha rua, que lá em Brasília a gente chama de quadra. Quero jogar vôlei aos domingos, andar de bicicleta no Parque da Cidade, ir aos shows da Plebe Rude. Ninguém aqui conhece a Plebe Rude? Um absurdo. Passei um ano inteiro trocando cartas com todos os meus queridos amigos de Brasília, que me contavam detalhes das melhores festas, quem havia ficado com quem, quem havia terminado com quem. Falavam também do futuro, do vestibular que iriam fazer, para onde iriam nas próximas férias. Como era de se esperar, o tempo passou, as cartas sumiram, o contato se perdeu.

Tenho 33 anos agora, ainda moro em Vitória e resolvi que preciso me apaixonar pela cidade. E não preciso esquecer Brasília pra isso acontecer. Na verdade, moro em Vila Velha. Mas como são municípios próximos – Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica - acabo chamando tudo pelo nome da capital. Conheço pouco sobre a história do lugar onde vivo – e pelo que tenho visto, meu filho também não tem aprendido muito. Não sei dizer se isso é geral, mas acho que as escolas não dedicam muito tempo às histórias locais. Decidi então que vou conhecer e respeitar a cidade onde moro. Geograficamente falando, acho Vitória linda. É um privilégio morar numa ilha, ter um porto no centro da cidade, ter o mangue, as praias, a baía, o canal. Os recortes são bonitos, as pedras e montanhas, ah, sim, os morros com suas casinhas formando as favelas. Que cidade não tem isso? Vitória tem tudo para ser uma cidade charmosa. Não sei por que ainda não é. Sinto falta de livrarias com cafés, de cinemas nas ruas, de mais praças, de calçadas bem cuidadas, de menos lixo, de fachadas bonitas nas lojas. De música, de festivais, de teatro, de cultura popular, de expressividade. De bares com mais identidade, de restaurantes com mais a oferecer do que um cardápio sem nexo. De pessoas perambulando nos finais de semana, andando, almoçando mais tarde, visitando exposições de arte. Sinto que falta em Vitória as pessoas viverem a cidade. Fiz minha parte no último fim de semana. Fui ao Museu de Arte do ES ver uma exposição chamada Universo do Cordel. Aproveitei e também fui no Museu da Vale do Rio Doce ver outra exposição. No próximo fim de semana quero pegar uma escuna e conhecer os mangues que permeiam a cidade.

Tudo que quero mesmo é parar de reclamar, reclamar sem realmente saber do que estou falando. Resolvi começar pela cidade. E assim quero que seja com as pessoas, com o trabalho, com a vida. Reclamar é muito chato.

Ilustração: Claudio França. Links: www.vitoria.es.gov.br;www.maes.es.gov.br

7.4.06

Texto ultrapassado

Chegou a conta de celular de fevereiro. Mês de Rolling Stones, Franz Ferdinand, carnaval. Ou seja, mês de pagar o maldito deslocamento. Nem cito valores, para não reviver a tristeza que senti ao ver o quanto tive que desembolsar.
Resolvi então ir à loja da minha operadora para trocar o plano com urgência.
Sento com uma atendente muito da grossa, com a cara cheia de espinhas e voz de macha. Lembrei do Massaranduba.
- Qual é seu plano?
- Não sei o nome. Comprei na promoção do Dia dos Pais de 2004.
- Ihh, seu plano é bem antigo.

Antigo? Mas hein? Quer dizer que agosto de 2004 agora é antigo? A noção de tempo mundial mudou mesmo, isso não é mistério. Mas daí a 2004 ser antigamente é demais. Só faltou ela falar que em algumas cavernas já encontraram até desenhos com seres humanos caçando mamutes e usando um celular igual ao meu. E isso porque o comprei em 2003. Sempre foi perfeito para mim. Nunca senti falta de máquina fotográfica, tela colorida, toques polifônicos, poliglotas, enfim.
Máquina fotográfica é igual. Quando surgiu a digital, foi aquele furor anal nos famintos por lançamentos tecnológicos. De repente, ter uma máquina de 2 MP passou a ser credo, ridículo, que vergonha. Comprei a minha com 5 MP, pensando em também usar sua poderosa definição e recursos fantásticos em layouts. Na colação de grau do meu irmão, uma mulher sentada ao meu lado olhou para minha máquina com aquela carinha de inveja e perguntou:
- Quantos megapixels a sua tem? Sete?
- Não. Tem 5.
Pronto. A expressão dela voltou a relaxar e um sorriso de canto de boca aflorou naquela cara cheia de pancake:
- A minha tem 7.
Mal sabe ela que provavelmente nunca vai desfrutar de seus tão bem-dotados sete megapixels. Que pra uma câmera ser boa, outros fatores também têm que ser considerados. Optei por fazer minha boa ação do dia. Fiquei quieta.
E nem foi só a tecnologia que ficou mais perecível. Tudo vai ficando ultrapassado com uma velocidade maior que nossa memória e conta bancária podem suportar. Até as relações pessoais. Acompanha só:
Você quer conhecer uma banda nova. Vai e baixa em casa mesmo. Só que não tem tempo pra escutar. Então compra um MP3 player. Mas celular e MP3 player ocupam muito espaço. Compra um celular com MP3 player e máquina fotográfica. A resolução da máquina fotográfica não é tão boa assim. Compra um supermáquina digital. Aí você começa a tirar foto de tudo quanto é coisa: você no espelho, amigo bêbado, fotos poéticas. Pensa então: vou criar um fotolog. Aproveita e entra no Orkut também. Olha!, que jóia, todos seus amigos lá, até aqueles sumidos. Adiciona todos no Messenger. Toda vez que entra na internet, faz malabarismo indo ao Orkut, fotolog, checando seus emails, baixando músicas e ainda falando pelo Messenger. Quando você vê, tudo que foi criado pra “ganhar” tempo, “ganhar” espaço, só fez você passar mais horas num mundo virtual, fazendo a manutenção de tudo que criou. E por mais que as maravilhas da modernidade deixem tudo mais prático, nada se compara a encontros ao vivo, pessoas reais.
- Me deu um ninja, hein?
- Foi mal, não deu pra ir. Não viu o recado que deixei pra você no orkut?
- Não acessei essa semana.
- Também mandei email.
- Não acessei também.
- Te mandei torpedo, cara.
- Meu celular quebrou, contei não?
- Porra, assim fica difícil te encontrar. Mas bem que tentei avisar.
- Mas por que você não foi?
- Marquei de encontrar uma amiga que mora na Inglaterra no Skype.
- Porra, cara, mas era nosso chope mensal.
- Foi mal. Mas é que antigamente eu tinha mais tempo. Entra aí no Messenger que a gente se fala mais.

31.3.06

Hormônio, hormônio meu


Sacaneio demais meus hormônios e eles, em troca, fazem meu corpo produzir leite. Sim, fico com os peitos cheios como uma vaca - e não se deixe enganar, não é gravidez. Se fico estressada, eles agem assim, me aprontando essa. Quando não são os peitos é a pele que começa a pipocar, fica em erupção parecendo um abacaxi. Além de me estressar um dia sim o outro também, tomo o anticoncepcional só quando lembro. Ou seja, sempre na hora errada, duas ao mesmo tempo e por aí vai. E nessa bagunça os tais hormônios começam a entrar em parafuso. Malditos. Brincam de montanha russa com o meu humor, me fazem chorar que nem louca.

Esses dias fiquei sabendo que o pior ainda está por vir. Sim, os hormônios aprontam mais. Lá entre os 40 e 50 anos, quando a gente mais precisa deles, puf, os desgraçados somem. O resultado é desastroso: a vagina resseca (pra mim isso é o pior), o cabelo cai em tufos, a gente fica anêmica e sem falar nas tais famosas ondas súbitas de calor extremo. Por serem tão danados, comecei a culpar meus hormônios por tudo de ruim que me acontece. Xinguei no trânsito? Briguei com meu filho? Dormi mal? Tudo culpa deles. Tem quem culpe a TPM, mas acho que esse argumento ficou meio fraquinho, hormônio é mais científico. Eu e eles vivemos em crise, disso tenho certeza. Mas pelo menos tenho alguém em quem pôr a culpa.

23.3.06

Nulo


Ela prometeu que não esqueceria mais a toalha molhada na cama, não deixaria louça acumulada na pia e que, tudo que abrisse, fecharia.
Ele prometeu que beberia menos, que ouviria Motörhead bem baixo e só veria os amigos quando ela deixasse.

Ela jurou que não o chamaria mais pra ir à missa, que falaria menos ao telefone e que nunca mais atrasaria.
Ele jurou escutá-la mais atentamente, não discutir política com o sogrão e parar de arrotar nas refeições.

Ela disse que pararia de rir tão alto, que compraria menos sapatos, se era isso que ele queria.
Ele falou que dirigiria mais devagar, que deixaria o futebol pra lá e voltaria a malhar.

Um dia se olharam e viram que não havia mais nada a pedir. Mais que isso, que já não conheciam nem ao outro, nem a si.
De tantas afirmações e exclamações, sobrou apenas uma pergunta: cadê a pessoa com quem me casei?

Ilustração: Ramon Alves (http://semsabersonhar.blogspot.com)

16.3.06

Espinhos para a vida


Comprei dez cactos para enfeitar minha janela. Muito bonitinhos, cada um de um jeito, fofos mesmo. Fiquei bastante feliz por comprá-los, estava recém-separada, indo morar com meu filho de um ano em um apartamento simples e, como descobri mais tarde, muito quente. Mas, ainda assim, representava uma conquista, uma nova etapa na minha vida, um passo dado – tanto o apartamento quanto a coleção de cactos. Enquanto a vida passava, os cactos se mantinham ali na janela, uns bem, outros nem tanto. A vida passava pra mim também.

Dois cactos morreram na mesma semana. Fui demitida de um emprego, sete meses depois minha querida vó morreu - meu irmão se foi um ano antes. Fique com oito cactos. Fui para um novo emprego, que me deu muita experiência, meus primeiros prêmios e a maturidade que hoje me faz entender que poderia ter aproveitado aquela época melhor.

Sobraram dois cactos, a janela agora é uma varanda. Me mudei novamente, agora para meu próprio apartamento, graças ao meu pai. Apenas um cacto foi comigo. Fui demitida mais uma vez, tive problemas de sobra, alguns ainda não estão totalmente resolvidos, pelo menos não dentro da minha cabeça. Não corro mais o risco de ser demitida. Troquei-o pelo risco de falir. Da minha varanda vejo o mar, o apartamento é bastante arejado. Posso dizer que agora está tudo melhor. O último cacto ainda está comigo. Nós sobrevivemos, mesmo com todos os espinhos.

Ilustração: Claudio França.

10.3.06

Levanta-te e anda, minha filha.



28 de novembro. A despedida. Fiquei sem imaginar como seria passar um mês sem lentes de contato, apenas de óculos. Totalmente dependente daquela armação modernosa e aquelas lentes nojentamente arranhadas. Sair à noite seria um pesadelo. Ninguém ia me querer, em sentido algum. Por que alguém bateria papo com uma pessoa com cara de nerd? Com uma menina que parece ter saído do trabalho direto pra noite? Com tantos olhos bonitos, com lápis preto, delineador e sombra, quem olharia pra um par de lentes grossas? E não adiantava ninguém falar. Pra mim, sair de óculos é praticamente virar óculos. Algo que chama tanto a atenção pra si que neutraliza qualquer outro acessório ou atributo que eu destacasse. Se eu saísse correndo pelada de cabeça pra baixo, ninguém gritaria:
- Olha, uma menina pelada de cabeça pra baixo!
Apenas diriam:
- Olha, uma menina de óculos! E veja isso, não acredito! Ela está de cabeça pra baixo!

Paralelo à abstinência de lentes de contato, venho vivendo outra ainda mais dilacerante (chama de fútil que não ligo). A falta de meu carro. Eu? Sem carro? Quem poderia imaginar isso? Sou daquelas que quando entra no ônibus com um amigo escuta:
- (risadinha escrota) Que engraçado você num ônibus.
Engraçado, né? Sei. Já peguei sim muito ônibus, sem querer dar uma de filha de Francisco. Até pouco tempo atrás, ia de ônibus pro trabalho, mesmo com carro na garagem. E gostava sim. Foi a época em que mais li livros. Lia no ponto, no ônibus, no elevador. Fora que não tinha que lidar com flanelinha. Mas ficar sem minha carteira de motorista, aquela maldita habilitação para categoria B tirada com custo na terceira tentativa, me fez murchar.

Duas coisas que não imaginava ter que abrir mão, que não me enxergava sem. Pensei, meditei profundamente, gastei horas divagando sobre isso e conclui: fudeu. Amigos se afastariam, perderia rocks, oportunidades, deixaria de ir à praia, mudaria de academia, teria que virar caroneira. Tudo isso de óculos, pra garantir que a auto-estima continuaria lá no lugar dela, na chón.

(...)
Faz dois meses e dois dias que só ando de óculos e dois meses e meio que estou sem carteira. E sabe o que minha vida virou nesse tempo? Tudo, menos ruim. Eu, que nunca me considerei uma superficial, que sempre achei que conviveria bem com grandes mudanças, balancei quando precisei me despir de carro e lente. Dois meses depois, me vejo como uma menina de 15 anos, que descobre, lendo O Pequeno Príncipe e escutando Legião entre lágrimas, que é capaz de muito mais do que imaginava.

E agora, leio esse texto todo e acho que ele parece mesmo algo que eu escreveria 10 anos atrás. Será que a gente nunca aprende? Ou será que tudo é um ciclo? Se for, quero conseguir a proeza de me abster de coisas que amo de vez em quando. Deixar de ver um seriado que acompanho. Comer doce durante a semana. Faltar um dia na academia e não ficar paranóica achando que já caiu tudo. Esquecer o celular em casa, sem medo de perder o telefonema da minha vida.

É difícil, como é, tirar alguma peça-chave do dia-a-dia em nome da manutenção da identidade. Só que de vez em quando, quero lembrar que sou mais que carro, mais que lentes de contato. Quero tirar isso tudo e perguntar a mim mesma o que sobrou. Aliás, não quero ser a sobra. Quero o contrário. Vou me tirar. O que sobrar, aí sim, é resto.

Ilustração do Galvão. www.vidabesta.com

2.3.06

Defeitos

Sou eu apenas para quem eu quero ser. Não estranhe se eu não me mostrar inteira pra você, pode saber que não quero ser sua amiga ou não gostei do seu jeito. E muitas vezes não sei como dizer isso. Por isso, me fecho. Sorrio pouco, não estico a conversa, não acho graça nas brincadeiras. Não gosto de intimidades repentinas. Se você não conhece meu filho, não pergunte por ele como se conhecesse há tempos. Vai soar falso pra mim e é bem provável que, ao responder, eu faça uma careta sem perceber. Minha simpatia não é gratuita. Escolho bem para quem vou dar os meus sorrisos.

Provavelmente você vai ouvir dos meus amigos uma descrição que não bate com o que você acha que conhece de mim. Vai ouvir que sou alegre e converso bastante, que falo coisas bobas e divertidas. É, não parece a mesma pessoa. Me desculpe, não posso ser como eu sou com todo mundo. Tenho que ser conquistada com sinceridade. Gosto de pessoas autênticas, carinhosas e abertas. Não me venha com seu ar blasé, garanto a você que o meu é bem pior. Nem force a barra me comparando com você, dizendo que somos do mesmo signo, temos gostos parecidos, que somos iguais nisso ou naquilo. Comigo é devagar, é com inteligência, com humor, com refino. Sou isso mesmo que você está pensando, sou metida a besta, me acho melhor em muita coisa, gosto de ter razão, acho que estou certa na maioria das vezes, sou orgulhosa. Agora me diga você os seus defeitos, que não sejam esses que já coloquei aqui.

17.2.06

That's the way, ãrã ãrã, I like it





Envelhecer? Não obrigada. Posso só ganhar mais um ano? Posso só ficar mais esperta, ser mais experiente, ler mais livros, escutar mais músicas, saber mais do que falo? Posso continuar querendo diversão despretensiosa, indo trabalhar de ressaca de vez em quando?

Quero nunca deixar de gostar de festa. Porque festa é mais do que estar lá, no meio de pessoas suadas, dançando, lutando pra pegar uma bebida e mijando na calça na fila do banheiro. Festa é antes, durante e depois.

É pensar no que vou vestir. E de repente até comprar roupa nova. É sentir o burburinho aumentando. Você vai? Fulano vai? Vamos juntas? Quem dirige? Sabe quem vai? Ah, não acredito! Já comprou ingresso? Vai acabar, hein?
E o imediatamente antes também é bom. O se arrumar, os telefonemas de “já tô chegando”, as logísticas de quem vai com quem.

E aquela ansiedadezinha, a mesma que tinha aos 18 anos, e pela qual tanto estimo, vai aumentando com a proximidade da festa. Ao mesmo tempo dá até dó de pensar que o momento tão esperado finalmente tá chegando e, portanto, acabando.
Eis que a festa começa. E aí, parece que tudo dispensa palavras. Luzes piscando, gente, bebida. Música preferida! Quero dançar essa. Hora de fazer xixi. Descanso com amigos. Papo, risadas, papo, risadas, papo, risadas. Pista, mais pista. Suor, esfregação nas amigas, caras e bocas, bebida, bebida derramada no pé, cotovelada, suor, beijo. Luzes mais frenéticas. Gritos na tentativa de conversar.
De repente, o cérebro parece entrar numa outra freqüência. Tudo começa a acontecer num tempo diferente. E não é só bebida. É um tempo de festa. Uma catarse, uma hipnose. Um momento que não se mede em ponteiro, mas em sensações. E quando se cai no mundo real, já são 4 da manhã.

Apesar de ser uma degustadora de festas, assumo que é um alívio chegar em casa, tomar um banho e dormir rindo. Porque suor, pé pisado e sujo, cheiro de cigarro no cabelo e maquiagem borrada não combinam mesmo com espelho na manhã seguinte. Pro day after prefiro quando ficam só aquelas imagens picadas na cabeça, um quebra-cabeça que sempre fica incompleto, porque alguns momentos se perdem totalmente. Será que cada um guarda pra si um pedaço de recordação? Será que cada um vive um pouco da festa e ela só funciona porque esse coletivo se completa? Será que tô precisando de uma festa pra parar de inventar teorias esquisitas?

Melhor que isso tudo, só festa de aniversário. E não se trata de ser o centro das atenções. Mas de ser aquela (no meu caso “aquelas”) que reúne, que organiza, que premedita todo o evento. Ver amigos chegando, se divertindo e tudo indo bem, num dia tão significativo, é a felicidade no estado mais besta e volátil que existe.

Envelhecer? Não, obrigada. Muito menos na minha festa de aniversário.

9.2.06

As dores e o tempo


Experimente fazer um corte no seu próprio braço. Nada de mais, algo superficial. Vai doer, ficar vermelho, sangrar, arder na hora do banho. Provavelmente você tenha que colocar um band-aid. Vai incomodar. Mas no dia seguinte o corte terá uma fina casquinha. Mais dois ou três dias a casca ficará mais forte e a pele por baixo vai estar quase sarada. Em uma semana a casca já se foi e seu braço estará lá, com uma leve marca branca, um fio que irá desaparecer com o tempo. Mas você olha e tem certeza de que o machucado fechou e não abre mais, a não ser que você se corte novamente. A cicatriz não incomoda, a pele está praticamente perfeita, tudo certo.

Experimente um corte na alma. Uma dor qualquer – uma decepção, uma traição, uma perda. Você consegue saber quando a cicatriz fecha de vez? Prefiro mil cortes no braço a uma dor na alma. Não vejo o quanto ela sangra, acho que já estou curada e de repente, sem eu saber por que, a dor volta e sangra tudo novamente. O tempo cura tudo? Os cortes no meu braço, sim, na minha alma, desconfio que não. Ou pelo menos esse tempo é bem maior do que eu pensava. E também me engana, pois vejo ele passar e não vejo minha alma sarar. O problema está em mim ou no tempo? Ou nos cortes que tenho? Se souber o nome do remédio pra isso, me conte. Tempo eu já sei que não é.

Para Marcelo, meu irmão. Ilustração: Paulo Prot.

2.2.06

Dom

Amor é uma merda.

Diz meu antigo psicólogo que é criação do homem. Uma palavra inventada pra justificar uma necessidade social nossa: a de criar família, ser monogâmico e ter a obrigação moral de manter isso até que a morte nos separe (ou seria até que a morte nos salve?).
Amor que faz a gente ficar cego, surdo, mudo, paralítico, retardado, tolerante demais até.

Queria conseguir ver as pessoas que amo há tempos como quem acabou de conhecê-las. Ver seus defeitos, seus podres e chutar pra longe na primeira encheção de saco. Mas esse amor, invenção ou não, não deixa. Será que é medo? Sou uma covarde que prefere acreditar que é melhor aceitar amores incondicionais a buscar novas paixões? Ou seria o medo de deixar de ser amada?

Ah, mas que pretensão a minha. Quem disse que esses, a quem amo sem saber mais o porquê, também me amam? Quem garante que não dizem “ufa” quando desligo o telefone? Vai ver que com o tempo o amor vira isso. Uma encenação.

Tentando ser otimista, pode ser também uma forma evoluída de amor, por que não? Esse cansaço, esse nervosinho de já saber o que o outro vai dizer e fazer, pode ser algo perto da telepatia. Um sentimento transcendental, que nos coloca perto de Deus por evidenciarmos nossa bondade de espírito ao suportar o que nos é agora intragável.

Se é invenção, se é evolução, se é outra rima besta qualquer, não interessa agora. Jurei não sentir mais raiva quando fosse espizinhada por alguém que amo. Não quero perder meu tempo com isso. Nem com ódio, com lamento, com planos de vingança. Vou ser indiferente e fingir que continua tudo bem.

Porque se amor é invenção, deixar de amar é um dom.

Ilustração: Paulo Prot (Valeu, tem-tem. Vou abusar mais vezes:)

26.1.06

"Às sextas sou mais feliz"


Acordei pensando em ir pro trabalho com meu tênis adidas laranja, jeans e camiseta branca. Era sexta-feira, um dia que, mesmo sendo útil, tá mais pro clima de relax do que pra mules e saias-lápis típicas de reunião com cliente. Além da roupa, meu humor também estava mais casual. Perguntei-me se era somente o efeito sexta-feira, se só de olhar pela janela e enxergar somente os sorrisos das pessoas era uma atitude normal ou acontecia por ser o melhor dia da semana. Mas, como era sexta-feira, não quis pensar muito sobre isso. A semana tinha sido longa, quase uma montanha russa, com alterações bastante acentuadas. Já sei que são meus hormônios que se alteram, mas isso é assunto para outra história.

E já que é sexta-feira, quero usar branco, quero estar com vestidos floridos, quero ter cabelos longos e esvoaçantes, quero tomar sorvete, quero sair do trabalho antes do sol se pôr, quero ler um romance açucarado, quero ouvir cigarras cantando, quero receber um aumento, quero pegar um avião e chegar ao Rio na hora do rush. E foi numa dessas sextas-feiras que, estando desse jeito, pintei os pés e as mãos de rosa para ficar com dez pétalas me sentido flor.

Gus, obrigada pelo título e pelo incentivo.

24.1.06

Só pra mim

Nas últimas semanas vi duas cenas incríveis. Descrevendo não vai ser a mesma coisa porque, afinal, sou uma mera redatora de merda.

A primeira delas aconteceu semana passada, num típico dia sauninha. Aquele ar abafado, denso, quase sólido. Céu com algumas poucas nuvens largas, daquelas que são mais pra filó do que pra algodão. Lá no fundo, umas bem cinzas e carregadas chegavam. A luz do dia era estourada, parecia flash: bem branca, que incomoda mais do que dia de solão amarelo. Andava para o trabalho pensando em alguma besteira quando vejo passar, bem na frente das nuvens escuras, um avião. O contraste foi o que mais me chamou a atenção. O avião, que já era claro, reluzia ainda mais com os raios brancos que batiam nele. A diferença de tons entre ele e a nuvem era tão grande que o avião parecia haver sido recortado e colado lá. Depois fiquei impressionada com a imensidão daquela nuvem, que fazia aquela geringonça, de metros de largura e mais metros de altura, ficar igual a um brinquedo.

Agora a segunda história.
Voltando pra casa do trabalho, em um dia diferente, aconteceu a outra cena. O vento estava forte e eu caminhava contra ele. Contra, mas a favor, já que ele muito me apetecia naquele instante. Estava de cabeça baixa quando senti algo encostar em meu rosto. Troquei o chão pelo horizonte e olhei pra frente. As flores de uma árvore, alguns metros adiante, cansaram de resistir ao vento e passaram a segui-lo. Eram tantas que nem sei como tentar enumerar e vinham na minha direção. Com toda delicadeza elas tocavam meu cabelo, meu rosto, os braços, as pernas. O vento continuava sacudindo a árvore que já estava totalmente arqueada, provavelmente lamentando a perda das suas tão estimadas florzinhas amarelas. Elas vinham em formato de casquinha de sorvete. É cônico que se chama, né? Partiam da árvore e vinham se abrindo círculos cada vez maiores, como bolinha de fumaça de cigarro que vai se dissipando no ar.

Pronto. Foi isso.
Parece bobo, banal, simples. Mas essa é a melhor parte: não foi.

Fiquei pensando no porquê daquelas cenas terem martelado minha cabeça por dias. Me dei conta que só consegui admirar os dois momentos porque estava bem. Se eu estivesse de mau humor, ressaca ou acordado com o cabelo horroroso, acharia o avião barulhento e as flores grudentas. Mas não. Lá estava eu, uma pessoa feliz, caminhando pela Eugênio Neto. Não que eu já não fosse. Mas ser lembrada disso de forma inusitada e tão vertiginosa, me fez cair na real.
O melhor é que adorei esse gostinho de pessoa abobada, que sorri com qualquer coisa. Deve ser por isso que ando exigente. Quero o bonito, o doce, o recheio, a parte mais crocante, o último pedaço, a cereja, o elevador vazio, o ônibus no ponto, quero achar dinheiro no bolso, quero o lado bom de tudo.
A tpm vai chegar, o cabelo ainda vai ficar sem jeito, vou queimar alguma coisa na hora de passar. Mas na hora eu penso nisso. Agora quero dar bom dia pra cachorro, achar elogio de peão legal e, assim, ir transformando tudo em aviões prateados e flores amarelas.

13.1.06

Fadiga


Cansei de tudo, começando por mim (para início de ano, esse texto não me parece muito apropriado). Mas não consigo parar com a idéia fixa de cansaço. Os fogos da virada não abafaram os pensamentos que explodem cada vez mais fortes com a mesma nota. Não me diga para procurar um médico, fazer exercícios, tomar vitaminas, fazer análise. Já fiz tudo isso. Já voltei a ficar bem em alguns momentos mas o cansaço sempre volta, e cada vez mais forte, que nem gripe mal curada.

Cansei mesmo. Esses dias, me cansei da minha mãe, no outro, de ser mãe. Cansei de ter que ter tesão, cansei de ficar à toa, do meu trabalho acho que já cansei faz tempo. Cansei das minhas amigas, de saber da vida delas, de ouvi-las com os mesmos problemas. Será que elas também não se cansam daquela vidinha? Cansei de malhar, de querer emagrecer e de estar acima do peso, cansei de comer frutas e beber dois litros d’água por dia. Cansei de arrumar a casa, de escolher cores novas para as paredes, de mudar os móveis de lugar para fazer a energia fluir. Cansei de fumar maconha. Cansei de comprar roupas, fazer as unhas, cortar o cabelo.

Não pense que cansei de viver. Só me cansei da vida que aprontei pra mim. Certinha, normal aos olhos dos outros, tudo no lugar, nada pra se queixar. Nem mesmo da empregada que é honesta e esforçada. Eu me achava normal e equilibrada mas o Grande Cansaço me derrubou. Penso em fugir da minha vida pelo menos umas três vezes por dia. Estou presa a tantos papéis, acordos verbais, documentos assinados que nem sei por onde começar a cavar o túnel pra minha fuga. Notei que isso estava realmente grave quanto cansei de ler e ir ao cinema. Escrever é uma das poucas coisas de que não me cansei ainda.