23.2.07

Meu pai

Meu pai comprou um desses bichinhos que deixam o carro cheiroso e me deu de presente. É um golfinho azul. Um azul meio pálido, translúcido, com certo degradé. Estranho. Nada do meu agrado.

Pensei em escondê-lo, dar pra alguém, dizer que perdi. E assim fui deixando o golfinho num canto do quarto, junto com extratos de banco antigos, malas-diretas que esqueci de rasgar e clipes de papel que sempre surgem de não sei onde. Assim foi. Até o dia em que meu pai perguntou se eu tinha gostado do golfinho. Nem na TPM mais brava eu conseguiria dizer a verdade. Falei que amei e que ainda não tinha colocado no carro por falta de tempo.

No dia seguinte, transportei o golfinho até o carro, deixando tudo que encostava nele empesteado de um perfume inegavelmente feito para carros. Enquanto o pendurava, me senti mal por não tê-lo feito antes. Lembrei de tanta coisa que meu pai fez por mim, tanta coisa muito mais importante que um mero perfumador de carros.

Com cinco anos, quando fui atropelada, ele me segurou no colo e de tão nervoso e trêmulo, me deixou cair no chão novamente. Lá pros dez anos, me colocou de castigo incontáveis vezes e ensinou que vou pagar por tudo que fizer. Mais tarde, por ciúme e também por acreditar que estava me protegendo, não deixou que eu furasse a orelha antes dos 14, usasse batom antes dos 15, fosse a uma boate antes dos 16. E quando tinha 25, discuti porque queria dormir na casa do meu namorado. Entre gritos e muita discussão, começaram as lágrimas e ele disse algo que nunca esqueci:
- Quando você era pequena eu sabia como te proteger. Agora que cresceu não sei o que fazer.
Ele me abraçou rapidamente e sem jeito, como sempre faz, mas nunca mais tocou no assunto e aceitou minha decisão.

Meu pai me ensinou a gostar do flamengo, a comer pão com uva, a amar macarrão. Torceu muito quando participei de uma corrida no colégio e me abraçou quando perdi. Se tornou uma pessoa mais divertida com o tempo e com a aceitação de que sou adulta. Anda meio surdo, continua marrento, gritão e xingão, mas é o homem que sempre esteve ao meu lado, amando e protegendo ao seu modo. E claro, como esquecer, o homem que meu deu aquele golfinho lindo, pendurado ali no meu retrovisor.

ilustração linda linda do radael, que agora também é pai:)

16.2.07

Tudo pára



O relógio da cozinha marcava dez pras nove. Mas na verdade, a hora não era essa. A falta de pilhas atrasou o tempo. E o próprio relógio de fundo laranja marcava um outro tempo, do qual ela se lembrava com saudade. Era o tempo das coisas no lugar. Tempo em que as pilhas eram trocadas exatamente na hora em que paravam de funcionar para que nada, nada parasse no tempo por falta da vontade e de energia, seja qual fosse a fonte.

Sentada sozinha no banco de madeira da mesinha da copa, tentava em vão espantar o sono que iria fazer parte de todo o seu dia, deixaria seu olhar ainda mais sem brilho e despertaria a pena dos que iriam encontrá-la na reunião marcada para o início da tarde. – Que hora mais ingrata para uma reunião, pensou desejando desmaiar, ter um colapso, ficar toda torta para não ter de ir trabalhar. Olhou para a xícara branca de cerâmica comprada com tanto gosto para formar um conjunto bonito no armário da sala e um dia, se transformar na oportunidade de convidar alguns amigos para um café na varanda, em meio a plantas tropicais que havia ganhado no último verão.

Pensou no sentido de todas essas bobagens que acumulava em sua casa, em sua cabeça e em seus armários. Tinha um plano para tudo que pensava, mas não conseguia colocar em prática nenhum deles. O relógio, as plantas, as xícaras, o sofá, a tv, as cores da parede pertenciam a um desejo de deixar a vida mais intensa, mais divertida, com fotos que iriam registrar o sorriso de todos aqueles que faziam parte quase de uma confraria, amigos de fazer inveja, tão bacanas e modernos que só poderiam existir na sua imaginação.

E assim viveu imaginando que um dia tudo poderia acontecer da forma que havia planejado, e que nem ao menos sentiria aquele típico nervoso das pessoas que organizam festas e sofrem de ansiedade até que todos os convidados cheguem, felizes e com vontade de se divertir, sem hora para ir embora.

Mas entendeu que o tempo passou, as plantas murcharam, o relógio parou e as xícaras ficaram com o fundo amarelado dos cafés que tomou sozinha, todos os dias na mesa da cozinha. Queria comprar pilhas novas para o relógio, mas não tinha mais vontade de fazer nada funcionar. Nem o relógio nem sua vida.

12.2.07

Tanto amor



Por um segundo desejei que você morresse logo. Quis antecipar a dor que um dia será inevitável. Quis que você morresse, pra eu não ter que viver mais nem um minuto ao seu lado, cultivando tanto amor. Cada dia a mais, seria uma nova lembrança triste de como fui feliz um dia.

Não quero que duvide do quanto sou apaixonada. Nem imagino como seria chegar em casa sem te encontrar. Adoro dividir a cama com você. A cama e até o banheiro, quando você chega querendo usar a pia enquanto faço xixi. Acordar de manhã com você me chamando é começar o dia de bom-humor.


Mas me desculpe. Por aquele segundo, aquele mesmo, em que você me olhou tão fixamente que até taquicardia eu tive, eu desejei que você morresse de vez. Lamentaria pelo que ainda não teríamos vivido, choraria e sofreria por meses. Mas prolongar sua vida é aumentar o sofrimento da perda por anos.


Me imaginei, naqueles milésimos de segundos, ajoelhada, cotovelos no chão, olhando para sua lápide, aliviada por tanto amor ter acabado. Por que onde vou colocar ainda mais amor, se ele continuar crescendo assim? Não cabe em mim. Mas caberia num túmulo. Ali, escuro, quieto, trancado.


Se você morresse logo, eu poderia dizer a todos o quanto amei e fui amada e estaria livre para viver uma vida plena, em que a busca por tanto carinho não seria mais necessária.
Por aquele segundo pensei em deixar a porta da varanda aberta e entregar seu destino a Deus. Mas um segundo depois, talvez até menos, o arrependimento de ter desejado sua morte prematura me tomou num gole, e sentei porque não agüentei o peso da minha estupidez.

Engoli minha covardia, olhei para o céu azul, tão azul quanto seus olhos, e só encontrei motivos pra sorrir. Um dia você vai morrer. De repente, eu até vá antes. Mas não adianta pensar agora. Por um segundo, quero acreditar que somos eternos.


ilustração: www.vidabesta.com

7.2.07

Amigo pra chamar de meu


Acho que é a primeira vez que sinto essa necessidade, essa vontade que fecha a garganta e faz saltar as veias das têmporas. Não tenho grandes segredos, não tenho carência ao extremo, a não ser quando acaba a cartela de anticoncepcional, não choro sem necessidade. Mas agora, juro, preciso muito de um amigo, um amigo que seja homem e que como homem seja capaz de fazer entender por que um outro homem me faz sofrer tanto.

Quero um amigo que seja capaz de dormir comigo sem querer me comer, sem querer ver meus peitos. Que acorde no meio da noite para espantar os mosquitos que voam pelo quarto zumbido a verdade nos meus ouvidos: é impossível estar em paz mesmo quando se dorme. Que estique minhas cobertas até meus ombros para que eu não trema, nem de frio nem de medo das coisas que penso sem parar. Pensamentos que não me deixam, por nada me largam e me levam para mais longe de mim mesma.

Esse amigo precisa me buscar para ir ao cinema, à praia, pra sentar naquele bar que a gente adora e o garçom já sabe nosso nome e trazer pra gente todas as cervejas geladas que houver na geladeira. E na hora de me deixar em casa ter toda certeza do mundo de que eu irei ficar bem sozinha e que não vou chorar baixinho com a cara no travesseiro até pegar no sono de tanto cansaço de sofrer.

Para esse amigo vou guardar o melhor de mim, vou ser sincera e dizer a ele a verdade que ele precisa ouvir, mas vou fazer isso de mansinho, para ele também não sofrer. Vou ajudá-lo a comprar roupas e combinar meias com sapatos. Vou a sua casa colocar suas coisas em ordem, vou, pelo menos uma vez, deixar um jantar pronto para quando ele chegar do trabalho. Vou atender todas as ligações e responder todos os e-mails que você mandar. Prometo que não vou ser grudenta nem inconveniente. Não vou ter ciúmes de suas namoradas, mas também não vou deixar que elas tratem você mal.

Não vou ligar se um dia você precisar de sexo, pode me usar se eu não estiver triste nem apaixonada por ninguém. Prometo não ficar brava se você se masturbar pensando em mim, por pura falta de outro alguém para pensar. Não se esqueça do dia do meu aniversário, não precisa de presente, só mesmo um alô provando que você se lembrou. Avise ao seu novo amor que você já me conhece há muito tempo e que não há razão para ciúmes fúteis e supérfluos. Convidem-me para o casamento de vocês, para ser madrinha e me mande um postal da lua de mel. E jure pelos filhos que você tiver, que nunca vai achar que eu estou gorda.

2.2.07

Perfeições

Eram feios de dar dó, mas nem mesmo quando se conheceram viram isso um no outro. Ele sempre desejou as pernas dela, tortas e cheias de marcas de mordidas de mosquitos, envolvendo seu tronco desproporcional e exageradamente cabeludo. Imaginava o quadril extremamente fino e ossudo dela colado em sua pélvis.

Na primeira noite juntos viam apenas belezas. Ela colocava as mãos dele em sua bunda, tão escassa de carne, mas de onde ele tirava tudo o que precisava. O pescoço curto e grosso dele não a impedia de passar seus lábios finos por cada centímetro de pele. E os narizes avantajados não eram obstáculo para beijos que envolviam dentes tortos e bigodes, de ambos os lados.

Em suas imperfeições eram harmônicos. E isso fazia o desejo aumentar. Não se importavam com olhares, comentários feitos entre risinhos. Já estavam acostumados a conviver com aparências totalmente afastadas de padrões de beleza.

Juntos, sentiam-se fortes. Riam daqueles que corriam suados pela praia, que comiam apenas folhas no almoço, na tentativa de atrair alguém. Eles não precisaram disso.

Ela não foi a noiva mais linda. Ele não foi o príncipe dos sonhos. Não para os que viam. Mas eram, um para o outro, a personificação do amor. O que eles viam, ninguém mais enxergava. A aparência protegia aquele amor de invejas e cobranças. Ninguém perguntava sobre filhos. Tinham pena de imaginar os genes herdados pela criança.

Envelheceram juntos. Rugas nunca foram problemas. A atração sexual existia sim e nunca acabou. Nem de Viagra precisou. O amor nunca esteve ali na pele, nos músculos, na formação óssea, nos cabelos. O amor estava onde poucos vêem porque vivem distraídos com perfeições.