23.12.08

Balanço

A época é essa, boa hora para se fazer um balanço. Demorei a entender o que isso significava, de ver o ano como se fosse a análise do livro-caixa de uma empresa. De um lado o que entrou, do outro o que saiu. E no fim das contas, se foi positivo ou negativo. Caneta vermelha ou azul. Suponho que seja mais fácil fazer isso com números do que com emoções, conquistas e sentimentos. Ninguém fica contabilizando quantos amigos ganhou no ano que se finda e nem quantos pretende conseguir no que se aproxima. Mas, ainda assim, resolvi colocar 2008 na ponta do lápis.

Comecei o ano me separando, depois de doze anos de convivência. E a conta foi alta, no bolso e no coração. Mas agora, faltando poucos dias para começar 2009 no calendário cristão, realmente foi uma decisão acertada. As coisas se ajeitam com boa vontade. Pra suprir o que ficou menor no orçamento, levei à frente um projeto que há tempos estava adormecido na minha cabeça. Contei a idéia para dois malucos que me apoiaram e fizeram dar certo, ou seja, a grana entrou. E como diz o Lobão, o riso corre frouxo quando a grana corre solta. O coração também vai bem, obrigada. Mais sossegado, apaixonado por várias coisas, aberto e disponível para amar novamente.

Mas não se deixe levar pela aparência, nada foi fácil. Fiquei muitos domingos sem me levantar da cama. E muitos outros em que tentei e não tive força suficiente. E outros tantos em que só não sucumbi porque tinha gente do meu lado pra me agüentar chorando – que nem manteiga derretida, como diz meu pai. Continuando o dramalhão, no meio do ano, outro golpe que doeu bonito. Eu e Val, a outra redatora de merda, agora estamos separadas por uma hora e meia de avião ou quinze horas de ônibus - algumas a menos de carro, mas não me arriscaria dirigir em São Paulo. O dinheiro também nos separa, companhias aéreas não dão desconto, não sabem o que é ter amigos longe. Tá uma droga ficar longe da Val, mas é assim e pronto. Vamos em frente.

Em 2008, voltei pro tae know do. E consegui mais uma graduação. Em 2008 também comprei meu primeiro carro zero. Em 2008, vi o Escafandro e a Borboleta e me deu uma puta vontade de fazer um trabalho voluntário: ler para cegos. Em 2008 conheci alguém com disposição de vir de Pernambuco ao Espírito Santo de bicicleta. Em 2008, tomei um porre inesquecível – principalmente por não lembrar de quase nada. Posso dizer com toda a certeza: 2008 foi difícil pra cacete. E, na mesma medida, foi um grande ano. Feliz 2009 pra você.

Ilustração de Claudio França.

14.12.08

Alceu



Era difícil de acontecer, porque ele odiava quando acontecia. Mas sim, chegou atrasado ao cinema. Atrapalhado entre pegar a carteira, falar com a mocinha da bilheteria, segurar o milk-shake de quase mil calorias e umas coisas boas crocantes dentro, ele pediu:
- Queime depois de ler, sessão das nove.

Entrou na sala correndo e viu alguns lugares vazios no meio das carinhas mal iluminadas pela tela. Foi examinando uma a uma com cuidado para escolher um vizinho perfeito: um com cara de mudo. Durante a busca, viu uma silhueta interessante. Ficou concentrado esperando um flash de luz branca sair da tela pra acender o rosto.
- Puta merda, falou sem conter a boa impressão.

Em vez de se sentar, ficou ali com uma tremenda cara de besta que, por sorte, a escuridão escondia. Ela estava sozinha, na terceira fileira de trás pra frente, na poltrona bem do meio. De um lado, um casal, uma cadeira vazia e ela. Do outro, um rapaz solteiro, um espaço e ela. Não era possível que ela estivesse sozinha.
- Ô, meu filho, tu não é transparente não.
Precisou do grito pra se dar conta que estava em pé fazia mais de um minuto, encarando a menina. Sentou ali mesmo, na poltrona do canto da fila e continuou analisando a situação. Ela tinha lábios grossos, mas nada exagerado, um nariz levemente batatinha que combinava com um queixo proeminente e uma estrutura óssea perfeita do rosto.
- Estrutura óssea perfeita, repetiu baixinho.
Ah, se um amigo escutasse essa viadice.
Ficou intrigado com o fato de ninguém ter sentado ao lado dela. Será que cheirava mal? Vai ver tinha chiclete na cadeira vizinha. Mas eram duas vazias, uma de cada lado... ah, claro! Deviam ter bolsas ocupando as cadeiras. Ou de repente alguém derramou alguma coisa. Sorvete. Ou alguém limpou a mão cheia de gordura de batata-frita. Ou podia ter uma criança, claro. Mas a censura não permitia crianças ali. Um anão, isso, um anão. Que idéia imbecil.
Ele tinha que ir. Tinha que perder a vergonha que sentia quando passava na frente de uma fileira de pessoas, obrigando todos a dançar balé pra levantar as pernas e dar espaço. Fora que tinha pânico de ser atingido com pipoca babada, cuspe, ou um grito ofensivo qualquer. Começou a planejar cada passo. Como passaria por cada pessoa da fileira. Mas aí foi interrompido por uma voz.
- Dá licença?
Nem teve tempo de pensar. Um casal passou por ele, chegou até a silhueta ossuda, pediu que ela pulasse uma cadeira e se acomodou.
Pensou que era melhor assim. Pelo menos ia conseguir ver o filme.
Saindo de lá foi encontrar o Armando no Furinga.
- E o filme, bom?
- Foda. Mas perdi o começo.
- Chegou atrasado?
E contou tudo.
- Porra, bicho. Mas tu é uma besta mesmo. Vai ser racional assim na casa do caralho.
- Você me conhece, Armando. Eu estava planejando tudo.
- Planejando nada. Você estava é se cagando de medo.
- Mas você não sabe de tudo. Eu esperei ela na saída.
- Todo cagado?
- É sério, cara. Esperei e perguntei se ela gostou do filme.
- E ela?
- Disse que não.
- E você?
- Eu falei assim: foda-se.
- Foda-se? Foda-se? Você virou e disse foda-se?
- É, virei e disse. Porra, o filme era foda.
- Alceu, você é doente.
- Cara. Se a mulher não gostou de Queime depois de ler, não vai ser mulher pra mim.
- Tu é um medroso. Só uma inflável pra aguentar você. Aliás, tem um site legal aí se você quis...
- Ah, dá um tempo, Armando. Não é isso. Eu só acho que a coisa tem que ser perfeita pra acontecer.
- Deve ser por isso que nunca acontece nada bom na sua vida.
- O filme era bom.
- Você lia historinha da Disney quando era uma menininha? Porra, que papo de princesa. Eu fico pensando se você é um romântico imbecil ou um cara que pensa demais. Imbecil também. Tua vida é que nem a sessão de hoje. Você fica olhando o que tá acontecendo de bom em volta, lá do canto, deixando todo mundo passar por cima de você.
- Mas pense por um outro lado. Quando acaba a sessão sou o primeiro a sair.
- Peraí, peraí. Então você chega pensando na saída?
- Precaução.
- Ah, cara. Morre logo então. Ou então bebe, vai. Você fica legal quando enche a cara. Ô, Moreira. Traz uma dose daquelazinha pro Alceu.
- Ô, Moreira! E traz também o Engov. E uma água.

4.12.08

Dulce

- Vai passar o que hoje, Dona Júlia?

Era sexta-feira, no mesmo horário de sempre: pouquinho antes do almoço. Fazia as unhas religiosamente e mantinha o velho hábito de passar um vermelhinho. Só que de uns tempos pra cá, parece que os fabricantes de esmalte resolveram sacaneá-la. Estava solteira desde o início do ano, e sexta era o dia de “o que vou fazer hoje?”. A ansiedade começaria daqui a pouco, junto com o início da digestão. Iria perder a concentração pra preparar o relatório da semana e arrancaria alguns cabelos até o fim do expediente.

- Tem algum novo, Dulce?
- Tem, tem sim, ó, chegou esse, o Atração Fatal. Mas eu gosto mais é desse aqui, o Deixa Beijar.
- Não tem nenhum mais direto, Me Come Agora?
- Que isso, Dona Júlia.

Dulce era uma senhora com seus quase 50 anos. Bem, 50 anos hoje não é mais idade de senhora, na verdade. Susana Vieira que o diga. Elba Ramalho também. Mas Dulce ainda pertencia ao tempo em que as mulheres se tornavam senhoras lá pelos 40 anos. E há10, fazia as unhas da Júlia como ninguém. Era exímia tiradora de cutículas, lixava com perfeição matemática e passava o esmalte com tanta sabedoria que ele durava os seis dias sem estragar, mesmo depois de muita louça lavada. “É o jeito de puxar o pincel” – ela dizia, categórica. Se houvesse faculdade pra manicure, Dulce seria a primeira da turma.

- Então passa qualquer um aí, disse entre os dentes. Não, não. Me dá essa caixa aqui. Por favor.

Mulher com TPM, mulher sem fazer sexo, mulher sem dinheiro pra comprar a porcaria da sandália-gladiador, mulher sem tempo de pintar o cabelo: evite. Invariavelmente ela vai estar mal-humorada e louca pra achar um bode expiatório. No caso, a pobre da Dulce.

- Vê se isso é nome pra se colocar num esmalte: Beijo Molhado. Ninfa. E esse: Dama da Noite. Isso é eufemismo pra puta.

- Eu o quê?

- Por que quem cria esses nomes não faz coleções? Nomes de fruta, por exemplo. Ó que bonito esse aqui, Tâmara. Ou então, nome de gente. Nome de gente é legal. Já tem Gabriela, podiam fazer Lorena, Sofia, Bárbara. Bárbara tem até duplo sentido.

- Quer passar o Tâmara, Dona Júlia?

- Isso já é zoação com a minha cara. Desejo. E esse, Love. Amor profundo. Volúpia. Obsessão. Paixão. Loucura. É quase um texto. Um texto brega, diga-se de passagem.

A coitada da Dulce permanecia ali, sentada numa cadeirinha anatomicamente desenvolvida para o ofício de manicure, meio sem entender aquele ataque à caixa de esmaltes dela. Dulce organizava-os todos os dias. Os mais claros, os cintilantes, os estranhos (abóbora, verde, amarelo – odiava esses esmaltes), todos eram colocados criteriosamente, lado a lado, em ordem crescente: do mais claro para o mais escuro.

- Vou passar nada não, Dulce. Deixa só com a base. Tá ótimo assim.

Depois de se revoltar contra a caixa de esmaltes, começou a sentir a vergonha e um leve arrependimento subindo pelas pernas. Detestava essa sensação. Toda vez que soltava os cachorros por um motivo besta sentia em seguida uma azia desconfortante. Coitada da Dulce, ia gastar ainda mais tempo pra organizar aquele monte de vidrinhos coloridos. Iria ter que aumentar a gorjeta da coitada. Tirou duas notas de vinte que tinha acabado de sacar no caixa automático e entregou à manicure. Pediu desculpas pelo ataque, justificou que a culpa era dos homens que não sabiam amá-la, que não diziam o que ela queria ouvir, não falavam o quanto ela era especial e todas essas reclamações quem nem ela mesmo agüentava mais.

No fim da noite, Dulce chegou em casa diferente.

- Afonso?
- Fala, Dulce.
- É...bem...cê gosta de mim de verdade? É que andei pensando que você nunca falou pra mim que eu sou especial e essas coisas, você sabe...
- Como é que é?
- É que você nunca me disse coisas de amor, saber?
- Iihh, lá vem. Que foi, Dulce? Andou cheirando suas acetonas?
- Como você é grosso, Afonso. Só queria que você fosse romântico.
- Que história é essa agora? Que eu fiz de errado, mulher? Conversa mais besta...
- ...
- Ah, fui lá no centro e tirei a geladeira. Dividi no carnê. Chega na segunda.
- Verdade? Que beleza! Ó, passei lá no Geraldo e ele mandou esses torresmos pra você. Vou botar a janta.