30.3.10

O último - 2a parte

Eliane chegou mais cedo e escolheu a cadeira do meio, na terceira fila, bem de frente para o palco. O teatro acabara de abrir as portas e as luzes ainda estavam acesas. Ela pode reparar na pintura com data do início do século XX e nas cortinas de um vinho desbotado que cheiravam a mofo. “Vou espirrar no meio da peça”.

Roberto conseguiu convencer Luísa a não assisti-lo desta vez. Na verdade, há algum tempo que ela também não tinha mais prazer em vê-lo. Os finais eram sempre os mesmos. Depois da apresentação, ele queria emendar em algum bar sem graça, ela louca para voltar para casa e dormir o mais rápido possível.

- Já vou indo, não quero me atrasar desta vez, falou enquanto fechava a porta ao mesmo tempo. Roberto tentou ser natural mas pouco conseguiu disfarçar o nervosismo. Só pensava em rever Eliane.

Por mais que Luísa perguntasse se ele estava saindo com outra pessoa, Roberto negava insistentemente. De nada adiantava, desconfiança era algo que latejava em sua cabeça. Tentar descobrir cada mentira do marido se tornou uma obsessão. Traição era seu assunto preferido. Cogitava a possibilidade de aceitar e entender as razões do comportamento de Roberto, comprou livros de filosofia, antropologia, feminismo, tudo para se convencer de que poderia mudar seu ponto de vista e aceitar a situação. E aí residia sua maior vaidade: queria ser reconhecida como alguém capaz de aceitar o que é impossível, de passar por cima feito um trator de todas as mágoas abertas e ficar com ele que ainda era seu grande amor.

“Amor? O que define isso?” Queria ficar com Roberto por que não aceitava a ideia de perdê-lo para outra ou por que tinha medo de ficar sozinha?

Ela descobriu o número do telefone de Eliane, e agora pensava se teria coragem de confrontá-la. Não era bem coragem, não tinha mais forças. Quatro anos atrás, descobriu o primeiro caso de Roberto e se separaram pela primeira vez. Mas não conseguia se ver sem ele e, mesmo decepcionada, foi ela quem quis voltar.

Descobriu também que Roberto conheceu Eliane em uma de suas apresentações e se culpou por não estar presente em todas elas. Sem dúvida, nos últimos meses, Luísa preferia ficar em casa escrevendo. Já estivera bem mais próxima, acompanhava o marido em todas as cidades, buscava patrocínio, vendia camisas com o nome da peça. Mas toda essa dedicação de nada valia. Queria que ele sentisse sua falta na primeira fila do teatro, que ele reclamasse pela sua presença. Não ir vê-lo era uma maneira de dizer que não se importava mais com ele e que isso provocasse uma reação. Mas o tiro saiu pelo outro lado.

Roberto era um incorrigível e, apesar de ter feito juras e mais juras, o casamento deles ficava pior a cada dia. Sem ter com quem dividir todas as suas angústias, Luísa usava seus textos para entender a si mesma. Ao escrever, conseguia organizar seu pensamento e formular hipóteses. Criava histórias a partir da sua própria. E sem querer percebeu que era por ali poderia se vingar a sua maneira, sem fazer nenhum escândalo. E ainda teria a possibilidade de dizer: é tudo ficção.

Queria incomodar Eliane, mostrar que ela não estava livre da mentira de Roberto. Sim, queria perturbar. Queria que ela sofresse tanto quanto ela. Queria machucar os dois da mesma forma como fora machucada. Esse era o plano. E ele estava apenas no começo.

Ilustração do Galvão.

18.3.10

O último

Todas as sextas ocupava a coluna de crônicas do jornal. Era lida por milhares de pessoas e recebia cartas que desejavam desde longa inspiração até pequenos bilhetes com ameaças assustadoras. Sabia que seria assim quando aceitou a proposta para ser cronista. Gostava de falar o que pensava. Ou melhor, falava sem pensar por justamente dizer tudo que lhe vinha à cabeça, sem filtros, disfarces ou excesso de metáforas. Narrava em primeira pessoa e sabia que cada frase sua espetava cuidadosamente seu alvo da semana.

Mas uma leitora era especial. Leu o primeiro texto há três anos. E então passou a repetir o mesmo ritual. Ao fim de cada texto, pegava a tesoura e seguia a linha que margeava a coluna, procurando manter reto o corte até chegar ao mesmo ponto de partida. Com o pedaço de jornal em mãos, lia-o mais uma vez, devagar, palavra por palavra e em seguida colocava o recorte junto aos outros, na primeira gaveta do criado-mudo. As sensações que se seguiam já eram conhecidas. Tinha calafrios, os olhos ardiam e a boca secava. Mas ao invés de parar de ler, esperava o próximo com ainda mais ansiedade.

Há três anos também que a escritora começou a achar que alguém mais fazia parte de seu casamento, e por mais que tivesse certeza disso, engoliu uma história esfarrapada e tentou seguir em frente. Fez do seu espaço no jornal um confessionário. Mas tudo precisa ter um fim e resolveu escrever um último texto. Esse era o seu presente para ela: a verdade.

“Ele a traiu mais de uma vez e ela descobria a cada novo nome. Tornou-se obsessiva, mexia nas coisas dele, fuçava gaveta, bolsos, comportamento típico de uma mulher desconfiada. Descobriu pela conta de telefone essa última, que até hoje está com ele.

Se separaram depois de um ano vivendo um tormento. Ele não tinha coragem de sair de casa, ela não tinha coragem de expulsá-lo. Depois de separados, voltaram a se encontrar, a tentar às escondidas uma brecha para a salvação do que já não tinha mais terreno para viver. Ela tentou de todas as formas se afastar, ele a procurava para falar sobre seus medos e aflições. Não a deixava em paz. Não tirava ela da cabeça.

Dizia a todo momento o quanto a amava e emendava logo em seguida dizendo que era impossível ficarem juntos. Ela via através de todas essas palavras e via ele repetir com a outra o que fizera antes com ela. Descobriu que ele usava com as duas os mesmo apelidos carinhosos, as mesmas brincadeiras e lhes dedicava um amor parecido.

Entendeu que ele continuava mentindo porque sua insegurança era tão intensa quanto ele. Viu a outra ocupando o lugar que era seu nos roteiros de viagens, nos restaurantes, nos cinemas. Suportou tudo isso sozinha, sem dar um grito, sem fazer um escândalo, sem machucar ninguém. O único conforto que tinha era a certeza de que um dia tudo volta para a superfície, por mais que você tente manter ali bem no fundo. Um dia, um novo nome iria aparecer e o ciclo se repetiria. Ele não mudou. Ainda mente, é egoísta, confuso, perdido. Ela vai descobrir, ele vai negar, ela vai vasculhar as coisas dele, ele vai se aborrecer e gritar com ela, ela vai chorar, ele vai se desesperar. Só mudam os personagens. A história vai continuar sendo a mesma.”

Salvou o texto e mandou para o jornal. E torceu para que, dessa vez, ela não lesse.

Ilustração em vidabesta.com