23.12.08

Balanço

A época é essa, boa hora para se fazer um balanço. Demorei a entender o que isso significava, de ver o ano como se fosse a análise do livro-caixa de uma empresa. De um lado o que entrou, do outro o que saiu. E no fim das contas, se foi positivo ou negativo. Caneta vermelha ou azul. Suponho que seja mais fácil fazer isso com números do que com emoções, conquistas e sentimentos. Ninguém fica contabilizando quantos amigos ganhou no ano que se finda e nem quantos pretende conseguir no que se aproxima. Mas, ainda assim, resolvi colocar 2008 na ponta do lápis.

Comecei o ano me separando, depois de doze anos de convivência. E a conta foi alta, no bolso e no coração. Mas agora, faltando poucos dias para começar 2009 no calendário cristão, realmente foi uma decisão acertada. As coisas se ajeitam com boa vontade. Pra suprir o que ficou menor no orçamento, levei à frente um projeto que há tempos estava adormecido na minha cabeça. Contei a idéia para dois malucos que me apoiaram e fizeram dar certo, ou seja, a grana entrou. E como diz o Lobão, o riso corre frouxo quando a grana corre solta. O coração também vai bem, obrigada. Mais sossegado, apaixonado por várias coisas, aberto e disponível para amar novamente.

Mas não se deixe levar pela aparência, nada foi fácil. Fiquei muitos domingos sem me levantar da cama. E muitos outros em que tentei e não tive força suficiente. E outros tantos em que só não sucumbi porque tinha gente do meu lado pra me agüentar chorando – que nem manteiga derretida, como diz meu pai. Continuando o dramalhão, no meio do ano, outro golpe que doeu bonito. Eu e Val, a outra redatora de merda, agora estamos separadas por uma hora e meia de avião ou quinze horas de ônibus - algumas a menos de carro, mas não me arriscaria dirigir em São Paulo. O dinheiro também nos separa, companhias aéreas não dão desconto, não sabem o que é ter amigos longe. Tá uma droga ficar longe da Val, mas é assim e pronto. Vamos em frente.

Em 2008, voltei pro tae know do. E consegui mais uma graduação. Em 2008 também comprei meu primeiro carro zero. Em 2008, vi o Escafandro e a Borboleta e me deu uma puta vontade de fazer um trabalho voluntário: ler para cegos. Em 2008 conheci alguém com disposição de vir de Pernambuco ao Espírito Santo de bicicleta. Em 2008, tomei um porre inesquecível – principalmente por não lembrar de quase nada. Posso dizer com toda a certeza: 2008 foi difícil pra cacete. E, na mesma medida, foi um grande ano. Feliz 2009 pra você.

Ilustração de Claudio França.

14.12.08

Alceu



Era difícil de acontecer, porque ele odiava quando acontecia. Mas sim, chegou atrasado ao cinema. Atrapalhado entre pegar a carteira, falar com a mocinha da bilheteria, segurar o milk-shake de quase mil calorias e umas coisas boas crocantes dentro, ele pediu:
- Queime depois de ler, sessão das nove.

Entrou na sala correndo e viu alguns lugares vazios no meio das carinhas mal iluminadas pela tela. Foi examinando uma a uma com cuidado para escolher um vizinho perfeito: um com cara de mudo. Durante a busca, viu uma silhueta interessante. Ficou concentrado esperando um flash de luz branca sair da tela pra acender o rosto.
- Puta merda, falou sem conter a boa impressão.

Em vez de se sentar, ficou ali com uma tremenda cara de besta que, por sorte, a escuridão escondia. Ela estava sozinha, na terceira fileira de trás pra frente, na poltrona bem do meio. De um lado, um casal, uma cadeira vazia e ela. Do outro, um rapaz solteiro, um espaço e ela. Não era possível que ela estivesse sozinha.
- Ô, meu filho, tu não é transparente não.
Precisou do grito pra se dar conta que estava em pé fazia mais de um minuto, encarando a menina. Sentou ali mesmo, na poltrona do canto da fila e continuou analisando a situação. Ela tinha lábios grossos, mas nada exagerado, um nariz levemente batatinha que combinava com um queixo proeminente e uma estrutura óssea perfeita do rosto.
- Estrutura óssea perfeita, repetiu baixinho.
Ah, se um amigo escutasse essa viadice.
Ficou intrigado com o fato de ninguém ter sentado ao lado dela. Será que cheirava mal? Vai ver tinha chiclete na cadeira vizinha. Mas eram duas vazias, uma de cada lado... ah, claro! Deviam ter bolsas ocupando as cadeiras. Ou de repente alguém derramou alguma coisa. Sorvete. Ou alguém limpou a mão cheia de gordura de batata-frita. Ou podia ter uma criança, claro. Mas a censura não permitia crianças ali. Um anão, isso, um anão. Que idéia imbecil.
Ele tinha que ir. Tinha que perder a vergonha que sentia quando passava na frente de uma fileira de pessoas, obrigando todos a dançar balé pra levantar as pernas e dar espaço. Fora que tinha pânico de ser atingido com pipoca babada, cuspe, ou um grito ofensivo qualquer. Começou a planejar cada passo. Como passaria por cada pessoa da fileira. Mas aí foi interrompido por uma voz.
- Dá licença?
Nem teve tempo de pensar. Um casal passou por ele, chegou até a silhueta ossuda, pediu que ela pulasse uma cadeira e se acomodou.
Pensou que era melhor assim. Pelo menos ia conseguir ver o filme.
Saindo de lá foi encontrar o Armando no Furinga.
- E o filme, bom?
- Foda. Mas perdi o começo.
- Chegou atrasado?
E contou tudo.
- Porra, bicho. Mas tu é uma besta mesmo. Vai ser racional assim na casa do caralho.
- Você me conhece, Armando. Eu estava planejando tudo.
- Planejando nada. Você estava é se cagando de medo.
- Mas você não sabe de tudo. Eu esperei ela na saída.
- Todo cagado?
- É sério, cara. Esperei e perguntei se ela gostou do filme.
- E ela?
- Disse que não.
- E você?
- Eu falei assim: foda-se.
- Foda-se? Foda-se? Você virou e disse foda-se?
- É, virei e disse. Porra, o filme era foda.
- Alceu, você é doente.
- Cara. Se a mulher não gostou de Queime depois de ler, não vai ser mulher pra mim.
- Tu é um medroso. Só uma inflável pra aguentar você. Aliás, tem um site legal aí se você quis...
- Ah, dá um tempo, Armando. Não é isso. Eu só acho que a coisa tem que ser perfeita pra acontecer.
- Deve ser por isso que nunca acontece nada bom na sua vida.
- O filme era bom.
- Você lia historinha da Disney quando era uma menininha? Porra, que papo de princesa. Eu fico pensando se você é um romântico imbecil ou um cara que pensa demais. Imbecil também. Tua vida é que nem a sessão de hoje. Você fica olhando o que tá acontecendo de bom em volta, lá do canto, deixando todo mundo passar por cima de você.
- Mas pense por um outro lado. Quando acaba a sessão sou o primeiro a sair.
- Peraí, peraí. Então você chega pensando na saída?
- Precaução.
- Ah, cara. Morre logo então. Ou então bebe, vai. Você fica legal quando enche a cara. Ô, Moreira. Traz uma dose daquelazinha pro Alceu.
- Ô, Moreira! E traz também o Engov. E uma água.

4.12.08

Dulce

- Vai passar o que hoje, Dona Júlia?

Era sexta-feira, no mesmo horário de sempre: pouquinho antes do almoço. Fazia as unhas religiosamente e mantinha o velho hábito de passar um vermelhinho. Só que de uns tempos pra cá, parece que os fabricantes de esmalte resolveram sacaneá-la. Estava solteira desde o início do ano, e sexta era o dia de “o que vou fazer hoje?”. A ansiedade começaria daqui a pouco, junto com o início da digestão. Iria perder a concentração pra preparar o relatório da semana e arrancaria alguns cabelos até o fim do expediente.

- Tem algum novo, Dulce?
- Tem, tem sim, ó, chegou esse, o Atração Fatal. Mas eu gosto mais é desse aqui, o Deixa Beijar.
- Não tem nenhum mais direto, Me Come Agora?
- Que isso, Dona Júlia.

Dulce era uma senhora com seus quase 50 anos. Bem, 50 anos hoje não é mais idade de senhora, na verdade. Susana Vieira que o diga. Elba Ramalho também. Mas Dulce ainda pertencia ao tempo em que as mulheres se tornavam senhoras lá pelos 40 anos. E há10, fazia as unhas da Júlia como ninguém. Era exímia tiradora de cutículas, lixava com perfeição matemática e passava o esmalte com tanta sabedoria que ele durava os seis dias sem estragar, mesmo depois de muita louça lavada. “É o jeito de puxar o pincel” – ela dizia, categórica. Se houvesse faculdade pra manicure, Dulce seria a primeira da turma.

- Então passa qualquer um aí, disse entre os dentes. Não, não. Me dá essa caixa aqui. Por favor.

Mulher com TPM, mulher sem fazer sexo, mulher sem dinheiro pra comprar a porcaria da sandália-gladiador, mulher sem tempo de pintar o cabelo: evite. Invariavelmente ela vai estar mal-humorada e louca pra achar um bode expiatório. No caso, a pobre da Dulce.

- Vê se isso é nome pra se colocar num esmalte: Beijo Molhado. Ninfa. E esse: Dama da Noite. Isso é eufemismo pra puta.

- Eu o quê?

- Por que quem cria esses nomes não faz coleções? Nomes de fruta, por exemplo. Ó que bonito esse aqui, Tâmara. Ou então, nome de gente. Nome de gente é legal. Já tem Gabriela, podiam fazer Lorena, Sofia, Bárbara. Bárbara tem até duplo sentido.

- Quer passar o Tâmara, Dona Júlia?

- Isso já é zoação com a minha cara. Desejo. E esse, Love. Amor profundo. Volúpia. Obsessão. Paixão. Loucura. É quase um texto. Um texto brega, diga-se de passagem.

A coitada da Dulce permanecia ali, sentada numa cadeirinha anatomicamente desenvolvida para o ofício de manicure, meio sem entender aquele ataque à caixa de esmaltes dela. Dulce organizava-os todos os dias. Os mais claros, os cintilantes, os estranhos (abóbora, verde, amarelo – odiava esses esmaltes), todos eram colocados criteriosamente, lado a lado, em ordem crescente: do mais claro para o mais escuro.

- Vou passar nada não, Dulce. Deixa só com a base. Tá ótimo assim.

Depois de se revoltar contra a caixa de esmaltes, começou a sentir a vergonha e um leve arrependimento subindo pelas pernas. Detestava essa sensação. Toda vez que soltava os cachorros por um motivo besta sentia em seguida uma azia desconfortante. Coitada da Dulce, ia gastar ainda mais tempo pra organizar aquele monte de vidrinhos coloridos. Iria ter que aumentar a gorjeta da coitada. Tirou duas notas de vinte que tinha acabado de sacar no caixa automático e entregou à manicure. Pediu desculpas pelo ataque, justificou que a culpa era dos homens que não sabiam amá-la, que não diziam o que ela queria ouvir, não falavam o quanto ela era especial e todas essas reclamações quem nem ela mesmo agüentava mais.

No fim da noite, Dulce chegou em casa diferente.

- Afonso?
- Fala, Dulce.
- É...bem...cê gosta de mim de verdade? É que andei pensando que você nunca falou pra mim que eu sou especial e essas coisas, você sabe...
- Como é que é?
- É que você nunca me disse coisas de amor, saber?
- Iihh, lá vem. Que foi, Dulce? Andou cheirando suas acetonas?
- Como você é grosso, Afonso. Só queria que você fosse romântico.
- Que história é essa agora? Que eu fiz de errado, mulher? Conversa mais besta...
- ...
- Ah, fui lá no centro e tirei a geladeira. Dividi no carnê. Chega na segunda.
- Verdade? Que beleza! Ó, passei lá no Geraldo e ele mandou esses torresmos pra você. Vou botar a janta.

28.11.08

TPM



redatorasdemerda.blogspot.com
O mau humor me acompanhava naqueles dias. Aqueles dias. Acordava comigo, dormia comigo, tomava banho, agredia desavisados, enchotava pombos na rua. Essas coisas normais.

Seguindo a regra universal, comecei o dia mal. Cheguei ao ponto atrasada e perdi o ônibus porque derramei café na roupa e, quando fui trocar, vi que todas camisas estavam amassadas. Mas tudo bem. Ouvindo uma musiquinha tudo melhoraria. Abri a bolsa para pegar o fone e escutar alguma coisa calma. O fone não estava lá. Deixei no bolso da blusa em que derramei café. Legal.

- Ô, mocinha! Dá aí um desses, por favor?, gritei para uma distribuinte de folhetos que passava.
Nem sabia do que se tratava, mas precisava de distração enquanto o sol rachava minha cabeça ao meio.

Meia hora depois, já ciente de todas as ofertas do Mundo dos Amortecedores, o ônibus passou. Lotado. Depois de ralar o braço num cara suado e desviar a bunda de um outro com carinha de tarado, lutei com uma gordinha cheia de sacolas para pegar um lugar vago. A gordinha ganhou. Aceitei a derrota como quem recebe um prato trocado no restaurante, mas fica com ele porque está morto de fome. Um ponto depois, a babaca se levanta. Sentou por um ponto. Ridícula. Mas dessa vez não tinha jeito, o lugar era meu. Assim que ela se levantou, fui encoxando a fofinha pelas costas, pra garantir que o primeiro vão entre ela e o banco seria minha entrada. Meu peito foi ficando esmagado entre as dobrinhas das costas dela e quase fui sugada pelo rego abissal da moçoila. Mas consegui. Me sentei aliviada e feliz. Finalmente a coisa estava melhorando. Peguei o folheto dos amortecedores e resolvi dar mais uma lida. Foi quando senti o pescoço da senhorinha sentada ao lado se esticando em minha direção, num estilo ET de ser. E não tem nada tão irritante quanto um desconhecido pescoçando sua leitura.

Segui tentando ignorar o fato, até que uma curva sinuosa jogou a senhorinha pra cima de mim. Baixei o folheto e olhei bem firme para ela. Nem desculpa ela pediu.
Inocente nesse mundo, achei que depois dessa, a senhora sairia fora. Não. Logo estava ela novamente invandindo meu espaco. Quando senti o queixo dela encostar em meu ombro, resolvi agir. Me concentrei e usei o tom de voz mais meigo que consigo fazer.
- A senhora quer ler esse folheto?
- Quero não.
- Pode ficar.
- Por que você tá me oferecendo?
- Porque achei que a senhora estivesse interessada.
- Você tá é doida.
Nã, nã, nã, uma veiota sem noção não ia acabar com meu dia. Ou piorar. Foda-se a boa educação, o respeito aos mais velhos, as conseqüências na próxima encarnação. Que eu volte como pulga, como pedra, como banda de pagode, mas não ia ficar quieta.
- Doida não. A senhora estava quase deitando em mim.
- Nem sei da onde que você tirou isso. Vaca.
- É o quê? Vaca?
- Vaca, puta.
- A senhora tá bêbada?
- Acha que velho não xinga? Otária. E agora cala essa boca que vou escutar uma música aqui no meu êmepêtreize.
- Vai nada! Agora a senhora vai me escutar. Só porque é uma velha acha que pode abusar, pode ser mal educada? Mas ó, a senhora fique sabendo que é uma velha muito feia, muita má, falei achando que velho é que nem criança. Mas não adiantou.
- Me deixa em paz, sua corna.
- Não, a senhora vai pedir desculpas.
- Porra nenhuma.
- Então toma essa porra de folheto. Agora vai ler tudo.
- Pára de empurrar isso, pára. Sai fora, sua drogada. Você usou tóxicos, foi?
- Drogada o caralho. Enfia essa merda no…
- Pára com isso, menina, não quero isso não. Sai pra lá.

A essa altura o ônibus todo já estava alvoroçado. Os mais próximos, que viram tudo, torciam por mim. Os mais distantes começaram a tacar papel, sem saber de nada. Percebi que a coisa ia ficar feia pro meu lado. Tive que levantar pela minha vida.
- Eu não fiz nada, essa senhora me agrediu antes.
Foi pouco. Vaias e objetos mais firmes começaram a vir em minha direção. Fui me encolhendo na cadeira e pensando no que fazer pra não ser linchada. Os gritos de fidaputa foram aumentando. Cheguei a escutar um "Ela agrediu a senhora! Vão descer a mão." Tentei pensar rápido. E meu instinto de sobrevivência só achou uma solução. Levantei novamente e com voz grossa e um sotaque que era mistura de bahiano com ovo na boca, mandei:

- Aqui é o demônho.
Na primeira frase o silêncio tomou o ônibus. Tratei de virar os olhinhos e lembrar dos programas que via nas madrugadas insones.
- Essa menina tá tomada, berraram lá de trás.
- Eu sabia!, disse a véia.
- Cala a boca, piranha, emendei eu, agora com liberdade diabólica para tal.
- Eu vou dominar o mundo todo. Começando por essa menina. Depois vou pegar vocês.
Meu plano estava dando certo. Os passageiros estavam paralizados e comovidos. Ao fundo ouvia gritinhos que iam de aleluia a "pára o ônibus que vou descer". Já ia desenvolvendo meu discurso quando ouvi:

- Sou pastor! Me deixem passar.
- Puta merda… pensei comigo, já prevendo o show.

Era um senhor bem branquinho, quase albino, magrinho que só. Foi lá pro meu lado e colocou a mão bem espalmada sobre minha cabeça. Fazendo pressão, me botou ajoelhada sobre o banco. Eu, pra manter a pose, ficava ali gemendo. E xingando a velha.
De repente, o senhor pastor se enraiveceu e começou a berrar "sai capeta, sai, volta pra não sei onde." Era fato. Eu tinha que interpretar. Dar tudo de mim, encontrar meu lado atriz. Era isso ou ser linchada. Abri o arquivo de referências de terror no meu subconsciente e passei a fazer tudo que vinha. Fazia uns sons inspirados no chewbacca, cantei ilariê ao contrário, uivei, tentei girar a cabeça 360º. E xingava a velha, claro.
- Velha doida! Vou te pegar de noite, vou arrancar sua cabeça, vou arrancar suas tripas pela bunda.

O exorcismo estava funcionando. Fui liberando tudo. Aproveitei pra xingar o chefe, o ex, a amiga traíra, o Bush, as micaretas. E uma paz interior inabalável foi me possuindo. O problema é que quanto mais eu amaldiçoava meio mundo, mais o pastor ficava agressivo. Me sacudia, balançava minha cabeça, puxava o cabelo. Quando senti o café da manhå subindo, achei melhor parar a coisa. Vomitar até cairia bem, mas não queria me sujar. Já estava livre de ser linchada àquela altura. Decidi que era hora de acabar. Fingi desmaiar na cadeira e pronto, ouvi uns gritos comovidos. Consegui. Virei a mocinha, vítima do mal. Até a véia foi me ajudar. Mulheres me abanavam, homens abriam espaço, criancinhas choravam, religiosos rezavam. Abri os olhos e fiz cara de coitada:
- Eu estou bem, eu estou bem, sussurei com uma voz bem fraquinha, cerrando os olhos como quem acabou de acordar.

E alguém repetiu:
- Ela está bem, ela está bem!
O ônibus todo, cada um com sua fé, foi agradecendo a seu Deus. Era graças a deus pra cá, aleluia pra lá. As pessoas se abraçavam, sorriam, comemoravam como copa do mundo. Eu levantei, acenei para o público e abracei o pastor, aplaudido por quase um minuto. Graças ao trânsito, meu ponto ainda não tinha passado. Mas estava próximo. Dei o sinal, agradeci a todos, pedi que rezassem sempre e prometi conhecer a igreja do pastor, chamada Tô com Deus e não Abro.
- É pra dar um ar jovem, ele me explicou.
Saí do ônibus aliviada e renovada. Nada mais eficiente que um desencapetamento pra acabar com uma TPM.


ilustração de galvão em www.vidabesta.com

20.11.08

Muda

redatorasdemerda.blogspot.com

Naquela noite resolveu finalmente se abrir com ele. Decidiu que iria despejar em seu colo todas as angústias, dúvidas, inseguranças que somadas seriam um prato cheio para qualquer psicanalista. Mas a vítima seria ele, que durante um ano evitou qualquer conversa mais profunda, que aprendeu a se esquivar mudando rapidamente de assunto, que emudecia toda vez que ela falava naquele tom.

- Guto...

- ...oi...

- Sabe o que é?

- ...não, não sei...

- É que eu tava pensando...

- Ah, lembra daquele livro que comentei com você? Chegou na livraria, o cara me ligou. Tava só esperando pra poder estudar mais pro concurso. Dois meses esperando, e a prova já é agora, em março.

Ela detestava esse assunto de concurso. Puta falta de criatividade. Que graça estudar por dois, três anos pra passar numa prova, trabalhar num serviço burocrático com pessoas que só estão ali pelo mesmo motivo, dinheiro e estabilidade, e fazer repetidamente algo que não vai contribuir em nada para um mundo melhor? Puta falta de graça.

- Em março?

- É, passou rápido... Bela, tá lembrando que não vou poder viajar no carnaval, né?

Agora ela engoliu o choro. Seria a primeira vez que viajariam. Era a chance que ela teria de poder ficar com ele sem interrupção. Fariam todas as refeições juntas, dormiriam juntos, tomariam banho, veriam as mesmas coisas e, enfim, ela teria tempo e jeito para conseguir dizer tudo aquilo que lhe rondava a cabeça.

Aquele ano tinha sido cheio de não ditos, e logo ela, tão verborrágica, parecia ter sido colocada de castigo. Era na marra que ela estava aprendendo a ouvir o silêncio e a engolir todas as perguntas que vinha na ponta da língua quando ele cumprimentava uma menina que ela não conhecia ou quando ele atendia o celular enquanto jantavam sexta à noite.

Mas de hoje não passava. O problema de tanto acúmulo é que o pobre sujeito é pego de surpresa e ouve tanta coisa ao mesmo tempo que não consegue processar. No meio do tororó ele perde o poder da audição e do raciocínio - não acompanha mais nenhuma frase, tudo pára de fazer sentido. Mas ela tinha que vomitar pra não engasgar. Aproveitou que ele saiu da mesa, não levou o prato até a cozinha e ainda estava procurando o controle remoto. Era a deixa.

- Bela, você viu o controle?

- Guto, quem vê tv aqui é você. Eu não vi nada. Aliás, não vejo nada há muito tempo. Não vejo você pensar na gente, não vejo você ter vontade de sair prum lugar diferente, não vejo você com aquela vontade de me comer, não vejo...

- Mas eu só...

- Quieto! Fica quieto! Você vai me ouvir nem que seja à força. Você só pensa em você. É essa merda de individualidade. Individualidade é o cacete. Quer individualidade vai bater punheta sozinho. Você é incapaz de...

Ela falou por uma hora e treze minutos, exatamente. Ele tinha a mania de marcar. Gostava dela e não conseguia entender de onde vinha tanta raiva. Só por que ele perdeu o controle remoto?

- Guto, fala alguma coisa!

- ...

- Fala!

- Eu...eu...

E pra se livrar de vez daquela situação, mandou pela primeira vez sem ter muita certeza do que dizia:

- Eu te amo, Bela.

Ela sentou no sofá e chorou por mais vinte minutos no colo dele. Mas antes, conseguiu achar o controle remoto que entregou pra ele como se fosse um prêmio.


ilustração de galvão em www.vidabesta.com

3.11.08

Telegrama

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Ainda estava pregada em sua cama quentinha quando ouviu um barulho na rua. Demorou a entender a gritaria. Com a boca colada no travesseiro, se perguntou baixinho se tinha jogo do Brasil, corrida ou se era festa junina.

Alguns segundos mais foram necessários para Luíza entender que ainda era setembro, que não tinha jogo nem corrida e que, pior, era seu aniversário.

- Saco. Diazinho de merda. Foda-se que eu nasci há uma caralhada de anos.

Ainda assim, demorou a se atentar para a razão do furdúncio lá fora.

- Luíza Maria, vem aqui fora que nóis tem um recado de alguém que te ama muito.

Antes fosse um pesadelo. Luíza Maria resolveu fingir que não era com ela. Mas as vozes continuavam e a mestre da cerimônias grotesca insistia enquanto assassinava o português.

- Luíza, vem cá logo. Ou você quer que a gente entra, hein? Nóis veio aqui só por você. Foi o Edemar quem contratou nóis pra fazer dessa sua manhã um momento de magia encantada.

Não restava outra opção. Ou ela saía ou ela saía.

- Olha gente, é ela vindo aí! êêêê! Vamo bater palmas pra aniversariante!

A caminhada lenta e a expressão pesada de Luíza foram transformando a alegria contagiante da trupe bizarra em um constrangimento geral. Até os vizinhos curiosos, que desfilavam com seus pijamas na calçada, ficaram em silêncio.

Com cara de poucos amigos, poucos não, com cara de amigo nenhum, Luíza ficou parada na porta. Com uma das mãos tapava o sol. A outra estava apoiada sobre a cintura. Deu alguns passos e falou para a oxigenada que a acordou.

- Presta atenção. Eu odeio esse tipo de telegrama. Dá pra ir embora? Se não por mim, pelo amor de deus?

Virou-se pra Edemar e terminou.

- Porra, Edemar, isso tinha que ser coisa sua, né?
- Gostou?
- Olha minha cara de alegria.
- Parece alegria não.
- Claro que não, porra.
- Então não gostou?
- De qual parte? Das bexigas em formato de poodle? Dessa bandinha fedida? Da cabeça de Mickey no corpo do pica-pau? Ou dessa analfabeta com cara de candidata a big brother?

A multidão ficou em silêncio por uns segundos. Ouviam apenas a bandinha que continuava, ainda que bem baixinho, tocando Como uma Deusa. Luíza estava certa de que havia conseguido expulsar todos dali. Mas uma risada comunitária ensurdeceu a multidão.

-Eu tô falando sério, num é pra rir. Edemar, é assim que você quer voltar pra mim? Você vai conquistar é meu ódio desse jeito. Telegrama animado já é um horror. Mas esse daqui. Isso é o portal do inferno. Furreca até o talo, vamos lá, convenhamos.
- Eu não conhecia nenhum. Achei esse no catálogo.
- Você devia ter ido na letra T, de telegrama, e não na A, de aberrações.

Enquanto os vizinhos se esbaldavam de rir, os integrantes do telegrama foram saindo de fininho.

- Olha isso. Você espantou eles. São trabalhadores, Luíza. Acordaram cedo pra chegar aqui antes de você acordar.
- Se chegassem aqui meio-dia eles ainda iam me acordar, Edemar. Agora eu sou a vilã, é? Ó, Edemar, some que eu quero ficar sozinha. Além do que tá na hora do meu cocô da manhã. Gente, desculpa o tumulto, viu? Da próxima vez prometo que não falo nada. Jogo uma bomba logo.

E mais uma vez a multidão respondia com risadas.

Edemar foi embora direto pro bar, tomar uma cachaça. Se antes tinha que esquecer Luíza , agora tinha que esquecer a humilhação toda.

Quando entrava em casa, Luíza ouviu alguém gritando por ela.

- Ei!

Virou e lá estava um dos membros da bandinha, com uma roupa uns três tamanhos maior que ele. Tinha ombreiras douradas com uma franjinha encardida. Os botões eram grandes e cheio de rococós. Luíza deu uma manjada no rapazinho e mandou:

- Que foi, paquita?
- Eu sou Olavo, dono do Telegrama.
- Sinto muito.
- Tá ruim, eu sei. A Kátia Kelly, essa aí que chama as pessoas, é fraquinha mesmo. É que eu conheci ela num forró, quando eu tocava no Cueca Melada, e prometi que ia fazer ela ficar famosa. Era papo só pra pegar, sabe?, mas aí depois..
- Amigo. Pára. Tá me embrulhando o estômago.
- Desculpa. Mas então. Você é muito simpática, engraçada, espirituosa. Quer o emprego?
- Tá de sacanagem?
- Não.
- Isso faz parte do telegrama? Tipo... é a parte do susto, da pegadinha?
- Prometo que é verdade.
- Nem fudendo.
- 50 por telegrama.
- Tô fora, paquita.
- 55?
- Cara... de boa. Sai daqui.
- 60?
- Some. Vaza.
- Tá. Tô indo.

Ele já passava do portão quando ela gritou.

- Ô, paquita!
- Oi?

- Hehe. Olhou.

6.10.08

Valsa


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Viu Viagem a Darjeeling dias antes e ficou pensando com quem poderia dançar aquela valsa que fazia parte da trilha sonora da película. O filme falava de três irmãos que partiam numa viagem espiritual. Um bom motivo para viajar, pensou. Mas o que grudou mesmo foi a musiquinha que sofreu a ação do repeat em seu som por uma semana inteira.

Dias depois recebeu um pedido. Disse sim sem pensar direito no que estava fazendo. Tinha perdido o medo do desconhecido. O que achava que conhecia lhe assustava mais.

– Sim, o moço pode ficar lá em casa por alguns dias.

O rapaz era conhecido de uma conhecida que era amiga da mãe dele. Algo assim. Não quis entender também. Vinha em viagem, precisava de dois dias de pouso antes de continuar a jornada.

Chegou num domingo, tarde da noite. Isso já a aborreceu, a previsão era chegar à tarde. Detestava ter que mudar seus hábitos, ainda mais quando estava fazendo um favor. Por volta da meia-noite ela o recebeu em casa. E já nos primeiros quinze minutos ficou desconcertada por tamanhos olhos verdes que a olhavam agradecendo pela gentileza concedida. Há muito tempo não via ninguém olhar assim nos olhos dela com tanta sinceridade. Pensou por que as pessoas não se olham nos olhos. Lembrou-se do namorado que conversava com ela olhando para frente.

Trocaram algumas palavras, ela ofereceu comida, uma toalha limpa e indicou o caminho do banheiro. Deram-se um sincero boa-noite e foram dormir, cada um em seu quarto. Ela tentou se livrar o mais rápido possível da lembrança daquelas duas bolotas verdes que pareciam atravessar o pensamento. Na manhã seguinte, saiu para o trabalho e não chegou a ver o rapaz. À noite, na volta do trabalho, veio pensando se não era uma maluca por ter deixado um estranho ficar em sua casa. Em tempos que filhos matam pai e pais matam filhos, como se pode confiar em alguém?

Pouco lhe importava a resposta, já estava feito. Ia sair e ficou sem pensando se o convidava ou não. E sem muita alternativa, levou ele junto pro boteco. Os de sempre estavam lá, amigos de falar besteira e agora curiosos para conhecer o sujeito. E como tudo numa mesa de bar fica mais divertido, assim foi. Conversaram até o bar expulsá-los. Ela e o visitante voltaram pra casa como se fossem velhos conhecidos. E dividiram a mesma indignação por terem que interromper a conversa, a bebida e as risadas. Ela resolveu o problema: ficaram na varanda do apartamento acompanhados de vinho, música e bom papo.

A noite já estava virando dia quando ela se lembrou da valsa do filme e da imensa vontade de dançá-la com alguém. Ele não tinha como negar, pensou, ia ser um favor em troca de outro. Tratou de correr para buscar o CD e colocar no aparelho de som. Ele, com as bolas de gude no lugar dos olhos, ficou observando sem entender o que ela fazia. Apertou o play e nos primeiros acordes de Where do you go to, my lovely, pediu que ele a tirasse para dançar. Dançaram meio que sem ritmo no meio da sala, tropeçando numa cadeira, esbarrando na estante. Ninguém se importou, nem mesmo quando a música acabou e a dança continuou de outras formas.

E de tudo o que aconteceu, a visita inesperada, a possibilidade de estar fazendo uma loucura, os contratempos de se ter um hóspede desconhecido em casa, de todas as coisas ela só se arrepende de uma. De não ter acendido a luz durante o tempo em que não se desgrudaram, com e sem música. E de não ter visto bem de pertinho todo aquele verde que bem dizem, quer dizer esperança.

Ilustração de Maurício Nunes.

24.9.08

Todo mundo

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- Ô, treco-treco, já pedi pra você não misturar as cuecas sujas
com o resto da roupa.
- Ah, treca-treca. Todo mundo faz isso.

Nada era pior do que ouvir isso. O “todo mundo faz” e suas
variações assombravam o lar cheio de amor de Ana Lúcia e
Milton. Não havia uma bendita reclamação dela que não fosse
rebatida com a maldita frase.

Esquecer de levantar o assento da privada, do aniversário de
casamento, não ajudar a lavar louça, dividir tudo em parcelas a
se perder de vista. Todo mundo faz.

Por mais que tentasse ignorar, Ana Lúcia se irritava cada vez
mais com a desculpa porca do marido. Da onde ele tirou que
agindo igual a todo mundo estaria fazendo a coisa certa? No
começo apelou para máximas infantis:

- E se todo mundo se jogar de uma ponte? Você também se joga?
Se todo mundo comer cocô você também come
- Aí é diferente, trequinha.

Mas ela não acreditava mais. Àquela altura, se Milton oferecesse
um bolo de chocolate, ela olharia desconfiada.

- Trequinho, gritou Ana estatelada no sofá, aproveitando o bom
humor de Milton, que havia acabado de sair do banheiro batendo
na barriga. Amanhã de manhã o pintor vem aqui. A gente precisa
arrastar os móveis todos pra varanda. Tem como desmarcar o
futebol de hoje à noite pra gente ver isso?

Ela ainda foi educada ao perguntar se “tinha como”, quando na
verdade estava sendo imperativa. Milton não entendia as
sutilezas da fala feminina.

- Treca, me pede tudo, menos isso. É semifinal, aninha. Guerreiros
contra os Goonies.Todo mundo vai estar lá.

Ana Lúcia ensaia falar algo, mas corta a palavra antes mesmo de
emitir qualquer som. Engole o ar, tenta disfarçar a expressão de
raiva e diz:

- Não é a casa de todo mundo que vai ser pintada. É a nossa.
- Eu sei. Mas você nem precisa de mim. Chama o Nelson.
- Milton, você acha mesmo que eu ia ter cara de pau de chamar o
vizinho pra fazer um trabalho que é meu e teu?
- Ele já te olha de um jeito diferente que eu sei. Arrasta um
caminhão por você. Imagine então uma mesinha, umsofá. Fácil.

Irritada, Ana Lúcia vira as costas e segue pelo corredor pisando
pesado. Dois passos depois, volta, aponta o dedo na direção de
Milton, ensaia começar alguma frase e então se recompõe.

- Você não tem ciúme? Não tem orgulho? Não tem porra
nenhuma, né?
- Tenho sim. Tenho futebol hoje à noite e todo mundo tá contando
comigo.

Entre maldições e pragas, Ana Lúcia sai da sala e vai embora sem
nem se despedir de Milton. À noite, sem ajuda de vizinho nenhum,
ela arrasta tudo sozinha. Milton chega tarde, depois do futebol,
fedendo a uma mistura de caipirinha barata e cerveja que secou
na roupa.

- Ô, amor... eu ia te ajudar. Mas é que os Goonies ganharam e a
gente fez concurso de quem imitava melhor o Slot.

A história era engraçada, mas Ana Lúcia se manteve imóvel,
olhando para a TV, fingindo escutar o que os repórteres
falavam. Jurava que no lugar da cabeça tinha uma chaleira.
Sentia a fumaça saindo e um apito irritante avisando que a
coisa estava feia.

- Você não pode ficar nervosa. Eu contei pros caras dessa
situação nossa e eles disseram que todo homem precisa disso
mesmo. Não fica chateada. Não tem nada a ver com a gente
enquanto casal. É coisa de homem, sabe como?
Tá entendendo?

Antes que explodisse, Ana Lúcia caminhou para o banheiro e
bateu a porta na cara de Milton. Lá dentro, pegou uma
toalha, apertou contra o rosto e gritou até onde ao
abafamento permitia. Saiu do banheiro mais calma e meio
rouca, e falou:

- Fale qualquer coisa. Admita que não queria ajudar. Admita
que é um merda, um preguiçoso. Mas pare, em nome do
Santo Antônio que me arrumou você, pare de falar que faz
as coisas porque todo mundo faz.

Lembrou-se de todas as vezes em que ele colocou o mundo
inteiro a seu favor de forma totalmente inapropriada. Quando
a pediu em casamento disse ‘vamos casar gatinha? Tá todo
mundo casando, é nossa vez”. Na hora de escolher um
apartamento, cismou que queria Bento Ferreira. “É o bairro
do futuro, todo mundo tá comprando lá”. E a raiva que fez
ela distribuir perdigotos na toalha, foi se transformando em
algo pior. Uma decepção enorme e irreversível.

Um dia, Milton chegou em casa e não encontrou a mulher lendo
no sofá, como de costume. Achou que ela ainda não tivesse
chegado e seguiu para o quarto. Sentiu ainda no corredor cheiro
de cigarro. “Mas que diabos é isso se Ana não fuma?”. Quando
abriu a porta, lá estava trequinha e o vizinho, deitados, cobertos
apenas pelo lençol, fumando um Malborão vermelho.

Enquanto Nelson rolava para baixo da cama, Ana Lúcia se
manteve firme encarando Milton. Parado também ficou ele.
Bufando na porta, indignado, estático. Foram 10 segundos,
que para Nelson pareceram horas.

- Por que você fez isso? Por quê?!

Ela ensaiou um sorrisinho de lado, apenas com o canto da boca.
Lá dentro apenas repetia em silêncio: ué, todo mundo faz isso.
Pensava com força, como criança que se concentra para tentar
mexer objetos. Queria que Milton lesse a mente dela.
Deixou ele se esgoelar na porta.

- Fala! Fala! Eu sei que é vingança. Eu sei que você tá doida pra
dizer que todo mundo faz isso. Num é? Fala! Fala!

E ela se manteve em silêncio. Milton saiu chutando a parede
pintada, os móveis que comprou na loja onde todos amigos
compravam. Mas não ouviu nada dela. Antes tivesse.

Na quarta seguinte foi ao futebol defender os Goonies.

- Qualé, Miltão, cadê a coleira de dedo?
- Deixa pra lá.
- Ih, foi briga. Fica puto não, cara. Todo mundo passa por isso.

Ninguém entendeu por que Milton voou no pescoço de Adélio,
sacudindo ele de um lado para o outro, gritando coisas
incompreensíveis. Nem nunca entenderiam. Milton largou o
futebol e foi largado por Ana Lúcia. E quando perguntam se a
culpa é dele, ele diz que não. Que a culpa é de todo mundo.

ilustração de Claudio França

12.9.08

Certeza

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Existia uma vida nele que lhe era desconhecida. Esteve guardada por muito tempo, a espera de alguém que o fizesse juntar os pontos para enxergar o novo desenho, estampado ali na frente. Até então, vivia na resignação. Continha os sonhos abafados para que eles não mudassem o curso da realidade. Sua certeza, a única talvez, era de que ela sempre seria maior, mais dolorida, mais cinza, mais onipresente do que todas as outras coisas a sua volta.

Assim foi quando soube na notícia da morte do avô. Precisou rapidamente se desfazer da fantasia de pirata, não só das roupas e do tapa-olho. Mas de toda aquela alegria boba que de repente se tornou ridícula. Era como levar um tabefe no meio de uma boa gargalhada. Aos 10 anos tomou raiva de carnaval. E dali pra frente ser sério lhe pareceu a melhor alternativa para não passar por outra dessa novamente.

A morte, aliás, habitava o cômodo ao lado do seu, no pequeno apartamento que dividia com o pai, a mãe e a avó doente. Mas, dessa vez, não haveria fantasia para atrapalhar quando a notícia chegasse. E ela veio quando ele tinha 17 anos. Sem o pai por perto, teve que tomar todas as providências funerárias. Dali, aprendeu que a variedade de caixões é enorme e que se você não se mantiver atento, acaba levando o mais caro.

Tempos depois, a mãe adoeceu. O pai, de diferentes formas, sempre se manteve ausente. A ele, não restava muito. Sabia o peso que, mesmo sem querer, era inteiro seu. Pensou no rumo mais ordinário que a vida toma. Resolveu que iria se casar, deu entrada na compra de um pequeno apartamento na periferia da cidade. Pequeno, quente, longe. Mas não precisava de muito. Continuaria trabalhando, visitaria a mãe nos fins de semana, passearia com sua mulher. Não teve tempo para pensar sobre ter ou ter filhos. E por que pensaria? As coisas simplesmente iriam acontecendo.

Assim é a vida. Tentou mesmo acreditar nisso por algum tempo. E de novo a morte tomou- lhe mais um pedaço. O que morreu dessa vez foi o amor. Não chegou a casar, mas ficaram as dívidas do apartamento para administrar. Só que ele resolveu parar por ali mesmo. E matou aquele velho homem que nada tinha vivido, nada tinha experimentado e muito pouco sonhado. Deixou tudo para trás. Resolveu viver sem saber direito para que ou quem se vive. Tudo que era efêmero lhe atraía. Pequenos prazeres, casos curtos, amores rápidos, nada que tivesse objetivo e sentido. Até hoje vive assim. Uma vez lhe perguntaram se era mais feliz desse jeito. E com as poucas certezas que ainda tinha, pôde responder: não, claro que não.

Ilustração de Claudio França.

2.9.08

Onofre


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Nunca saía sem casaco. Mas fazia tanto calor que preferi deixar em casa. Passava os dias na biblioteca. Na época fazia mestrado. Escrevia bonito, rápido. Usava palavras que nem os professores conheciam. Tinha facilidade pra isso. Eu era muito concentrada.

Ia percorrendo aquelas filas de estantes cheias de livros passando as mãos pelas capas. Gostava de sentir a ondulação. Imaginava como cada um deles poderia mudar minha vida de um jeito. De culinária a física quântica.
Mas precisava me concentrar em uma única prateleira.

Do vão central da biblioteca, olhando para a direita, haviam 10 fileiras bem compridas. Eu entrava entre a oitava e a nova. E me sentia entrando entre vértebras de um corpo. Um gigante. No final da primeira carreira de estantes, eu virava à direita e depois à esquerda. Lá estava a minha estante. Letra P. Parava ali, enchia as mãos, os braços, os cotovelos e qualquer dobra mais que pudesse servir de apoio. Ta rindo, né? Hum, espera que tem mais.

Nesse dia, no dia exato em que deixei o casaco em casa, devia imaginar que algo inusitado me surpreenderia, além de uma gripe ou uma chuva. E aconteceu. O celular tocou quando eu passava em frente à letra J. Eu jamais esquecia de colocar no vibra. De repente, do meio de um pequeno vão entre as estantes, surgiu um moço com o indicador rente aos lábios contraídos, pedindo silêncio. Acho até que ele treinava para as olimpíadas, porque foi rápido à beça. Só não me assustei mais com ele do que com a notícia que recebi. O moço da van, que me buscava todos os dias, pontualmente às 21h30, tinha sofrido um assalto. Bateram nele e roubaram tudo. Incluindo a van.

Minha concentração ficou completamente comprometida. Tentei pelo resto do dia enfiar as frases dos livros na minha cabeça. Mas nada fazia sentido. Nada se amarrava. Mas logo o seu Onofre. Senhor branquinho, olhos cansados, pançudo, costeletas grisalhas emoldurando um cabelo tingido de preto, que ele mesmo fazia questão de ridicularizar.
- Tem que se cuidar, a clientela gosta de um motorista bonitão.

A aparência ligeiramente bruta e oleosa enganava quem julga um livro pela capa. Era doce, educado e gentil. Pensava na família do seu Onofre, se ele sairia no jornal, se algum dia escutaria Amado Batista novamente no caminho de casa.

O dia rendeu meras 13 linhas. 13. E só a fome me despertou para a hora. 20h30. Poucos ônibus passavam por ali. Juntei tudo como pude e corri para tentar pegar o das 20h35. 13 linhas. Chovia e fazia frio. Que falta fazia meu casaco. Decidi correr, ainda que escorregando. O caminho que levava para fora da biblioteca era longo. Um gramado com poucas árvores cercava um pequeno e estreito caminho de paralelepípedos. Alguns postes de luz amarelada iluminavam as raras pessoas que passavam ali.

Chegando ao cruzamento, abusando de meu equilíbrio sobre as pedras deslizantes, parei repentinamente. Parado, logo na ruazinha que escolhi pegar, o moço do celular. Sorri pela coincidência. Dois sustos em um só dia. Ele tinha talento pra isso. E achei que finalmente uma coisa interessante poderia salvar o dia. Mas ele não devolveu o sorriso. Na verdade, ele continuou sério. Muito sério. Senti um arrepio na espinha, desses que sobem até o cérebro pra avisar que tem algo errado acontecendo. Tomei Impulso para continuar a corrida, mas quando passei do lado do moço, senti algo freando meu corpo, como um cinto de segurança durante uma batida. O impacto fez com que eu fosse projetada pra trás. Senti a pancada da cabeça atingindo o chão, mas nenhuma dor. Apenas uma pressão forte.

Sem conseguir reagir, notei que estava deslizando pelo chão, como alguém boiando em uma piscina, num dia de sol. Sentia agora as gotas retidas na grama úmida penetrando minha blusa fina. Folhas finas me cortavam bem de leve. Só então entendi que algo me puxava pelos cabelos. Mas o zunido no ouvido ainda deixava dúvidas de que eu estava acordada. A certeza veio quando uma mão enorme tapou meu rosto com força. Em seguida, um corpo tapou o meu. Tentei achar alguma força, um reflexo qualquer que me fizesse levantar rápido e correr. Não encontrava nada. Estava presa dentro de mim.

Enquanto uma das mãos continuava segurando minha boca, a outra abria minhas calças e lutava contra o atrito do corpo, para baixá-la o mínimo possível. Tremi nessa hora. E foi o máximo de reação que consegui. Um tapa
na cara nem teria sido necessário para me acalmar. Na pressa em rasgar minha calcinha, ele machucou a lateral do meu quadril com a força do tecido sobre a pele.

Dentro de mim ele se descontrolou. A palma da mão escorregou sobre meu rosto e fez com que a cabeça toda girasse para a direita. Via um poste um pouco adiante. Dava pra ver uma chuva fina cair através da luz. Enquanto meu corpo todo era arrastado para frente e para trás, tentava contar quantas gotas caíam. Uma...duas... três... mas então, uma dor tão grande submergiu,
que perdi as contas. Meus sentidos estavam voltando apesar do zunido não passar. Agora não conseguia mais negar. Algo estava me invadindo, me rasgando de forma seca, ardida. Senti nojo e um grito escapou. Um outro tapa me calou, mas agora eu chorava. O choro saía baixo, entre o indicador
e o dedo médio dele. O mesmo indicador me silenciando novamente.
O vento batia nas lágrimas e sentia meu rosto congelando.

Enfim, ele parou. Senti calor por alguns segundos. E um certo alívio por tudo ter acabado. Da mesma forma como ele me derrubou, me abandonou.


Durante os dez meses seguintes, eu repassava a minha rotina naquele dia. Imaginava tudo que poderia ter feito de diferente. Deveria ter voltado pra pegar o casaco. Deveria ter entendido o azar por trás das 13 linhas. Deveria ter ido visitar seu Onofre. Deveria ter voltado mais cedo. Tentava achar motivo, explicação, qualquer coisa que trouxesse algum conforto. Não deu certo.

A depressão me fez esquecer de tudo mais. Larguei o mestrado, não fui à polícia, não fiz exames. Achava que se tivesse pegado qualquer doença seria abençoada. Com sorte morreria. Mas sobrevivi. Seu Onofre não. Irônico, né?

Eu sei que você não está entendendo nada do que eu falo, Onofre. Até riu nas partes tristes. Mas eu me sentiria mal se nunca te contasse a verdade, ao menos uma vez na vida. Não sei se você entenderia minha escolha. Eu mesma não entendi. Acho que estava tão apática que só me restou deixar acontecer. Vou te amar se você também prometer me amar. Acho que a gente pode tentar né? E até conseguir. Mas quando você crescer e perguntar como conheci seu pai, desculpe, vou mentir.


ilustração em www.vidabesta.com

15.8.08

Tara


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Não agüentava ficar mais de uma semana sem sexo. Mas quem olhava, não dizia. Era recatada, tímida, não ria alto, nem tinha aquele olhar lascivo, não tinha boca pintada, não usava roupas justas tampouco decotes profundos. Parecia sem graça, dos pés à cabeça, parecia ser assim sempre.

Mas depois que terminou o noivado, não passava um dia sem pensar em dar. Continuava com a mesma capa de menina-moça, mas a mente era uma pornografia só. O noivo, que a conhecera na intimidade, sabia bem dos desejos da garota. Confirmava a sabedoria popular, que diz que as quietas são as piores. Era o noivo meter-lhe a mão entre as pernas que ela se transformava. Primeiro molhava-se inteira de tanta excitação. E toda aquela umidade do meio das pernas ela gostava de passar pelo corpo todo. Nessas horas, seu cheiro mudava, seus peitos de menina tornavam-se cheios e bicudos. O cabelo solto, a boca vermelha pelo sangue que corria mais rápido, depois de tantos beijos sugados, quem a visse agora, julgaria: vadia.

O noivo a trocou por outra, mais fogosa, mais endinheirada, mais mulher. Ela, sem ter ninguém, tentava suprir seus desejos primários enchendo a imaginação de fantasias que jamais pensou que pudesse ter. Imaginava-se sendo seguida pelo porteiro do prédio nas escadas, tenho a calcinha arrancada à força. Desejava enfiar na boca todos os dedos do seu professor, mesmo sujos de giz. Torcia para que um estranho na rua lhe passasse a mão. No ônibus, gostaria de ser encoxada pelos operários que iam cedo para o trabalho. Mas se um homem a abordava com mais veemência, ela baixava os olhos e dava um jeito de sumir dali.

Entre a angústia, a timidez e o desejo, não sabia ao que ceder. A mãe desconfiou. Os olhos da menina estavam mais fundos, a comida ficava toda no prato. Vivia dizendo, seu mal foi ter se entregado praquele safado do Beto. Mas só ela sabia que não era o Beto o seu problema. Era o que ele tinha feito com ela. De ter mexido onde mexeu, de ter enfiando tanto os dedos, a língua, o pênis em todo os seu buracos. A ponto de ela não saber de qual havia gostado mais, do que mais lhe dava prazer. Definhava. O cabelo entupia o ralo do banheiro, a mãe se zangava.

– Amanhã mesmo você vai ao médico.

Não queria médico, não estava doente. Como iria dizer para o doutor: só penso em sexo. Mas foi. A mãe era implacável. Ela foi.

- Por favor, tenho hora marcada.
- Pois não, o doutor a espera.

Entrou de cabeça baixa, o doutor pediu que vestisse o avental verde-água e se deitasse na maca. A enfermeira ajudou a posicionar as pernas nos dois suportes laterais. Deitada de frente, com as pernas abertas e suspensas, parou de sentir frio. O rosto agora queimava, ela sabia exatamente o que isso antecedia. O médico gentilmente apalpou seus seios, pressionou seu ventre enquanto ela ardia e corava. Educadamente, o médico avisou-lhe quer iria tocá-la e sem que ele conseguisse concluir a frase, ela já estava gritando:

- Por favor, por favor!

Ilustração de Maurício Nunes.

4.8.08

Prefiro nada



Isso não é uma carta de amor.
É a carta de quem nunca tentou.
De quem tem o que merece: a infelicidade
pedida à la carte, por livre e espontânea vontade.
De quem se alimenta de pequenas sensações voláteis.
Uma vida miserável que sente prazer na caça.
O vazio me move.

Assumo que não quis enxergar o quanto você era diferente.
Sabia, lá no fundo, que pessoas como você são raridade.
Mas deixei lá no fundo mesmo. Junto com minha coragem.
Preferi isso que tenho agora. Efemeridade, sentimentos ralos,
uma vida levada na superfície. Troquei você por sexo mais ou menos com um aqui outro ali, por aquele calor no peito que precede o primeiro beijo com alguém novo. Escolhi continuar procurando. Me dá mais prazer.

Nunca vai ser igual. Ninguém tem esse gosto, ninguém tem esse cheiro bem ali atrás da orelha, esse jeitinho de terminar um beijo.
Ninguém tem esse olhar que me frita, que me faz pensar em sexo quando estou cortando cebola. Ninguém tem essa voz que faz minhas pernas se abrirem automaticamente, ninguém arranca esses gritos, esses pedidos falsos para parar. Sou dobradiça frouxa com você.
Mas não posso trocar o mundo do maravilhoso desconhecido por nós.
Aliás, mal consigo falar nós. Preciso da adrenalina que alimenta os pobres de espírito.

Não é o momento. Já ouvi isso antes. Você é ótima, mas não estou pronto pra isso agora. Chegou minha vez de ser a idiota.
Abro mão de você, de todas as risadas que arranca de mim, de todas as possibilidades de um futuro feliz, pela busca.
Assumo o risco de me arrepender profundamente.
De um dia bater à sua porta e dar de cara com sua esposa perfeita, carregando um bebê-propaganda, em uma casa tinindo de limpa, cheirando a uma felicidade insuportável e inabalável. Diria que errei de número e perguntaria onde tem um bar.
Passaria o dia bebendo sozinha, esperando que você passasse só pra ter o prazer de me ver
conformada com a vida besta que escolhi e repetir baixinho que sabia que isso aconteceria.
Você mereceria se esbaldar com minha desgraça.

Sou uma imbecil, eu sei. Não estou preparada para tanto amor, para uma vida adulta. Você é demais. Certamente me faria crescer, arrumar um emprego melhor, vestir algo passado, comprar meias novas, freqüentar lugares onde os garçons são simpáticos.
Preciso de alguém pra quem possa apresentar Lynch, Sandman, Radiohead. Alguém mais cru. Alguém menos ameaçador à minha auto-estima.

Você me faz querer ser melhor. E eu não posso conviver com essa pressão.

Ilustração de Carol Cuquetto: oamareloeonada.blogspot.com

24.7.08

Gosto de nada


Da última vez que nos vimos até agora faz apenas três dias e poucas horas. Mas pra mim parece uma eternidade. Talvez um pouco menos que isso. E não pense que é porque sinto sua falta, morro de saudades, preciso falar e sentir você de novo. Não é nada disso. É que não sei esperar e meu pensamento funciona muito mais rápido do que eu gostaria (não era eu que queria aprender a meditar?). Queria poder esperar um mês ou um ano pra dizer o que penso agora, mas não sei se consigo.


No meio do engarrafamento das dezoito e trinta pensei o quanto ficamos no raso. Conheci pessoas que namoraram, casaram e engravidaram nesse tempo, em apenas dois meses – um exagero. Longe de querer isso para mim e você, mas pelo menos achei que poderíamos ter nossa música, ter nosso lugar, ter nossas próprias piadas, ter nosso restaurante, ter nosso filme. E nesses três poucos dias, imaginei que não vai demorar muito para eu esquecer você. Um amigo falou: faltou intensidade. Concordei e pensei mais ainda: tava muito morno. E morno, só banho.


Ainda não consegui, nesses três poucos dias, entender o que aconteceu pra você, como me disse, desacelerar. Sei que são coisas que não se falam, por diversos motivos. No alto dos meus mais de trinta anos, aprendi que é melhor não perguntar. Quem pergunta o que quer ouve o que não quer. Melhor o mistério do que ouvir que você deixou de se interessar por mim, que viu defeitos, que se apaixonou por outra, que queria apenas uma distração e agora não quer mais. Minha

auto-estima não tem infra-estrutura para tais verdades.


Vou tentar esperar um mês para dizer tudo isso. Ou nem vou chegar a dizer porque daqui a trinta dias já vou ter esquecido tudo que disse respeito ao tempo em que ficamos juntos. Você vai passar sem nunca ter existido. Totalmente sem dor e sem amor. Totalmente sem graça. Fazia tempo, exatamente dezesseis anos, que não tinha um relacionamento tão insosso. E, por mais estranho que seja, provavelmente vou agradecer por ter sido assim.


Ilustração de Maurício Nunes: mauricionun.blogspot.com.

10.7.08

Nuances

Com ele aprendeu a ser desprezada. Tinha apenas 12 anos.

Era um pouco mais velho. Imaginava que por isso a ignorava. Moravam no mesmo prédio desde que nasceram, mas ele mal a olhava. As conversas não passavam de um mero oi. Quando pegavam elevador juntos, ele colava na porta e ficava ali, impaciente esperando o andar chegar. Descia no oitavo, sem olhar para trás. Ela fungava as axilas, para checar se havia algum cheirinho por ali. Nada. Espalmava as mãos na frente da boca e expirava, para testar o bafinho. Tudo em ordem.
Em casa era a caçula. Sempre mimada, paparicada. Mas o desprezo dele a fez amadurecer de uma forma involuntária. Chegou a chorar uma vez, quando deixou cadernos caírem no elevador e ele nem ao menos piscou. O que ela havia feito pra ser tão ignorada?

Aos 17 anos, aprendeu com ele a não levar desaforo pra casa.

Se tinha algo que ela não suportava mais desfeitas. Aquele homem, que aterrorizou parte de sua adolescência, agora teria que aprender na marra a ser educado. Quando esbarravam pelo corredor ou pela garagem, ela o olhava firme e dava bom dia. Ele soltava um bom dia atravessado pelo canto da boca, sem ao menos parar de caminhar. E a cada fuga dele, ela dizia uma gracinha. Vai tirar a mãe da forca? Tá parindo? Esqueceu alguma coisa no forno? E ele não dizia nada. ficava tímida quando os dois estavam sozinhos no elevador. Um dia, ela tentou travar uma conversa sobre o tempo e ele desceu dois andares antes. Ela não agüentou. Gritou enquanto gargalhava:

- Qual é o seu problema?!

Aos 22, ela mal o encontrava. Sua rotina era outra. Faculdade, espanhol, centro acadêmico. Suas preocupações também. Provas, festinhas, rapazes. Um dia, chegou em casa cansada e chamou o elevador. A porta se abre e lá está ele. O grosso do oitavo andar. Nem boa noite dava mais. Desistiu. Como de costume, ela entrava e se aconchegava em um canto, para que ele tivesse espaço para se aproximar da porta. E ele ficava, batendo os pés no chão, coçando a cabeça, o pescoço, olhando para baixo, para cima, para o visor que mostrava quanto tempo faltava para a tortura acabar.
No quinto andar, ela teve um estalo.
No sexto andar, arregalou os olhos assustada com o próprio pensamento.
No sétimo andar, não conseguia acreditar que, enfim, havia conseguido entender tudo.
E no oitavo andar, não teve dúvidas. Assim que a porta se abriu, ela o segurou pelo braço. Ele se virou assustado e não conseguiu evitar. estava aquele par de bochechas tão vermelhas, que pareciam dizer ‘pare’, como em um semáforo.

E foi , aos 22 anos, que ela aprendeu que o amor não era nada simples de se entender.

ilustração de claudio frança.
leia também "Outras nuances", texto de nosso amigo Bruno Reis que mostra um outro ponto de vista dessa mesma história.


26.6.08

Vai se fuder, Arlindo

O estrago começou na faculdade, com todas aquelas discussões sem conclusão, com os calores das vozes e o som dos pulsos que se agitavam a cada descoberta ou discordância. O que antes não entendia passou a me ser necessário, diariamente. Mas só alguns professores eram mestres na arte de promover debates inflamados, o professor de fotografia que me deu novos olhares e o professor de criação, o Arlindo, que me ensinou como se vê um filme. O dever de casa foi com Ata-me, do Almodóvar. Cheguei na aula e ele veio direto: o que achou do filme? Respondi com aquela cara de estudante que não sabe o que vai fazer da vida: ah, legal, meio louco, mas gostei.

A expressão dele mudou e a sala percebeu que iria haver uma reviravolta naquele papo ainda sem merecimento de atenção. Arlindo começou a falar sobre Almodóvar, sobre todas as nuances da preciosa película, dos contrastes de cores, sobre o sagrado e o profano, o quente e o frio, o permitido e o proibido, o prazer e a dor, a violência e o afeto. E mais uma lista disso e daquilo, de antagonismos que eu jamais teria percebido sozinha.

Acho que provavelmente foi aí que deixei de ser uma pessoa leve e simples – fiquei burocrática. Graças ao Arlindo, que infelizmente nem vivo mais está para eu agradecer ou xingar, passei a ver filmes e ler livros com aquele jeito de gente papo-cabeça. E passei adorar uma conversa mais intensa, um bom drama, uma dor existencial. Coincidentemente, a aula do Arlindo era a última na quarta-feira e antes dela tinha o horário vago. Aproveitava para ir ao cinema pulguento da universidade e chegava na sala com Wim Wenders, David Lynch, Gus Van Sant rondando minha cabeça.

Hoje todos os buracos são mais embaixo. Tento ver um significado diferente num pão com manteiga. Virei uma chata. A ponto de me emocionar numa livraria, de selecionar as pessoas pelo que elas assistem, de amar mais o sofrimento que a alegria. Homens melancólicos? Adoro. Sofrimentos alheios? Manda. Como se os meus não bastassem. E se está tudo bem, começo a sentir vontade de estragar pelo simples prazer de ter que consertar logo em seguida. Sou capaz de trocar uma noite de sexo selvagem por uma conversa cheia de referências, questionamentos, dúvidas, lágrimas, risos, dores de cabeça e nenhuma conclusão. Mas seria muito difícil não terminar em sexo porque tudo isso me deixa tão animada quanto um bom amasso.

Dias atrás, recusei o convite para ir ao cinema ver um filme desses bobinhos, que o bonequinho do Globo dorme enquanto assiste. Também não estava interessada no cara, mesmo ele sendo forte, bonito e atencioso. Mas se ele tivesse me chamado para ver um filme francês, iraniano, checo ou qualquer coisa parecida, iria pensar duas vezes. Porque certamente, depois do filme, iríamos falar sobre as impressões que tivemos, sobre o que sentimos, sobre o que lembramos e tudo o mais que adoro. Daí pra me apaixonar é um pulo. Só que infelizmente não se acha um exemplar assim todos os dias. É, Arlindo, sua bicha velha, você me fudeu.


Ilustração de Maurício Nunes: http://mauricionun.blogspot.com

17.6.08

Entendendo


Ele só queria entender.
Eu pensava que era mania de mulher essa coisa de querer entender. Puro machismo.
Ele estava lá, completamente perdido, tentando entender as atitudes dela. Na verdade, tentando decifrar por que as atitudes divergiam tanto das palavras.

Os encontros tinham um roteirinho fixo. Durante o cappuccino, a gente celebrava a vida de solteiro, falava das últimas aquisições sexuais, do porre que certamente seria o último, dos planos de passar um tempo fora. Quando chegavam as quiches, lorraine pra mim e quatro queijos pra ele, era hora de reclamar do tempo que passa cada vez mais rápido, do trabalho estressante, do amigo que sumiu. Enfim, na sobremesa, o assunto era ela.

Sempre escutei com paciência. Sabia como era passar por aquilo e achava quase encantador um homem sentir o mesmo. Ele nunca sabia como agir quando encontrava a pulga, apelidinho carinhoso e apropriadíssimo que arrumei pra ela. Ficava sem jeito com as mãos, falava umas merdas sem sentido. Mas no fim, os meios pouco importavam. Terminavam a noite furando algum lençol de motel com os cigarros que ela insistia em fumar até cochilar. O sexo era foda, apesar desse trocadilho. Tinham conversas para semanas. E as declarações eram mútuas. Você é foda. Quero te ver de novo. Como não te encontrei antes?

- Já te disse que ligo no dia seguinte? Sempre. Mas ela não atende.
- Nunca?
- Uma vez sim. Mas parecia que nada tinha acontecido. Vou ao banheiro, peraí.

Sentada lá, fazendo bolinhas de guardanapo, lembrei de outro dia, quando esbarrei num filme enquanto trocava de canais. A cena era clássica. Um cara seduzindo uma moça com as palavras e gestos mais mecânicos possíveis. Era o típico discurso em que ela diria “aposto que você fala isso para todas”. Ele diria que não. Ela saberia que estava mentindo, mas queria tanto dar pra ele que fingiria acreditar em tudo, pra poder manter a pose de moça inocente e usada. Assim, quando ele sumisse da face da terra e quebrasse aquelas promessas que pareciam tão sinceras e puras, ela diria “eu sabia que terminaria assim. aquele canalha.” E a grande verdade era essa. Ela sabia que terminaria assim. Mas também queria sexo, tanto quanto ele. Não estava apaixonada, mas como dar sem estar apaixonada? Como admitir que havia trepado porque o corpo pedia? Não poderia. Fica feio pra uma menina.

De repente, a mulher má que fazia meu amigo sofrer com seus esquivos virou minha heroína. Ela não estava interessada naquela conversinha patética pré-foda. Queria mesmo era fuder e pronto. Não precisava se fazer de vítima, de coitada, de abusada ou de apaixonada. Só que ele não sabia lidar com aquilo. E aí, virava o estereótipo manjado da mulher boba e usada. Com a diferença de ser um homem.

- Tô pensando que em vez de entender ela, é melhor entender você mesmo. Por que fica confuso assim com isso tudo? Por que essa mulher toma todo nosso tempo da torta de chocolate? Você nem é apaixonado por ela nem nada.
- Não sou, mas quero entender.
- O quê? Por que ela não quer nada além de ir pro motel? Nem você quer. Ou quer? Você quer passar as tardes de domingo com ela? Quer ter um cachorro com ela, conhecer a África do Sul com ela, ver o show do radiohead com ela, agüentar a tpm dela? Quer nada. Você quer o mesmo que ela. Sé-qui-ço.
- Você quer dizer que eu não consigo admitir que uma mulher só queira trepar comigo? Que tô me sentindo usado?
- Isso mesmo.
- Tô agindo igual mulherzinha?
- É. Mulherzinha style.
- É né...
- Sim. Você é a mulherzinha Indiana Jones da relação.
- Que porra é essa?
- A que fica tentando decifrar tudo.
- Tá engraçadinha hoje, hein? Acho que tem açúcar demais nessa sua torta
- Mulherzinha, mulherzinha.
- Se eu sou mulherzinha, a pulga é o quê? O homem?
- Não. É o mulherão.
- Odeio quando você detona comigo. Ainda mais na hora da torta. Era pra ser um momento doce. Sua azeda.
- Também te adoro, seu besta. Agora come essa calda e pára de rir, porque você tá ridículo com esse monte de calda de chocolate grudada no dente.
- Agora lembrei por que a gente só fala de coisa triste na hora da sobremesa.

ilustração de galvão.

3.6.08

O sonho

- Sonhou com o que essa noite?

Perguntava-me a mesma coisa todas as manhãs. Mas, na verdade, tinha mais interesse em que eu devolvesse a pergunta – pelo menos era o que eu pensava. Geralmente era assim que se dava nossa comunicação, com voltas, com indiretas, com desvios totalmente desnecessários. E as voltas eram tantas que quando começávamos a nos entender o cansaço ocupava mais espaço que a vontade que querer ficar bem de novo. Seria muito mais fácil me dizer: - preciso contar meu sonho para você. A chave, para mim, está na palavra ‘preciso’. Só que não conseguia perceber tais sutilezas e ele não percebia que tudo podia ser bem mais fácil e objetivo.

- Não lembro do meu sonho...

Eu respondia e ia fazer outras coisas. Escovava os dentes, arrumava o quarto, esquecia de devolver a pergunta. A essa hora, me preocupava apenas com coisas práticas, com o dinheiro trocado para o pão e o jornal, com a empregada que ainda não havia chegado. Quando me lembrava dele, encontrava-o deitado ainda na cama, tomando coragem para levantar. Era assim que nos separávamos um pouco todos os dias.

- Que foi?

O tom da voz. O jeito de perguntar. As duas coisas e mais um monte. Viver junto é isso, ter interpretações erradas acerca das coisas mais banais. Era ótima aluna em Português, mas geralmente me dava mal com interpretação de texto. Entendia tudo do meu jeito. E hoje em dia não é muito diferente. Continuo em recuperação.

- Que foi o quê?

- Por que tá com essa cara?

- Nada, vou tomar banho.

O que poderia ter ficado ali dentro do quarto ia com a gente para a mesa do café da manhã, nos acompanhava até o trabalho e resolvia voltar à cena em forma de bueiro entupido. Aliás, sonhei com isso dia desses.

- Sonhei que a cidade toda tava com todos os bueiros entupidos. Uma sensação muito estranha, senti medo, não conseguia fugir daquela água fétida e cinza.

- Ah, é?...Vai ao supermercado hoje? Se for, me traz um prestobarba?

Ilustração de Maurício Nunes: mauricionun.blogspot.com

26.5.08

Um dia

“Vou te ligar hoje, umas 9 da noite. Por favor, atenda. Beijo”

Tremeu quando viu o nome dele em seu e-mail. Na verdade, não foi bem o nome, mas o assunto.

“Preciso falar”.

Tudo havia sido complicado demais, dramático demais, barulhento demais, inexplicável demais. As conversas eram intensas, as coincidências eram absurdas, o sexo espetacular. Mas havia uma pecinha quebrada em algum lugar. Como um carro velho. Sentiam os ruídos, mas não achavam o problema. Sabiam que estavam chegando ao limite, que logo não haveria mais conserto. Insistiram, empurraram e tentaram além do que deveriam. Perderam o respeito e a paciência até se tornarem irreconhecíveis. O processo foi lento e tardio, o que só prolongou o sofrimento e criou mais mágoas do que era necessário.

Dois anos depois, o e-mail na caixa de entrada trouxe à tona tudo que ela jurava ter superado. Reviveu as sensações dos anos finais de casamento. O medo suspenso no ar, sabendo que brigariam a qualquer momento. O receio de falar qualquer coisa e ser mal interpretada. A impressão de que estava enlouquecendo porque era incapaz de enxergar o que ele dizia.

De todos os sentimentos que brotaram do e-mail, o mais forte foi a raiva. Ele sempre seria o calo? Aquele que se abre de repente, quando a sandália bate naquele exato ponto? Aquele dente que sempre sangra quando o fio dental passa por ele? A unha encravada? Aquilo que sempre está prestes a ferir?

Às 9 em ponto toca o telefone. Ela esperou alguns toques, fez ‘rum-rum’ e juntou forças para que a voz não falhasse.

- Alô.
- Oi. Sou eu. Tudo bem?
- Tá sim. Você?
- Também.
- ....................................
- ....................................
-... então. O que você precisa falar?
- Desculpa. É isso. Desculpa.

Era isso. A peça que faltava. O que fazia o dente sangrar, o calo arrebentar. Sentiu uma descompressão no peito, o ar entrando com mais força em seus pulmões. Quanto tempo ela sonhou com isso? Ele aberto, calmo, sóbrio e sem medo de sentir-se rebaixado por admitir que errou. Sem berros, explicações, acusações.

Esperou tanto por isso que nem sabia mais a razão. Na época, queria que ele voltasse com o orgulho atravessado na garganta, admitindo nunca ter se esforçado o suficiente, dizendo que ela merecia mais. Mas agora, via que não havia nada a ser feito. E se consolou sabendo que assim como ela, ele ainda tentava sair debaixo dos destroços daquele casamento.

- Desculpa também.

O telefonema seguiu sem que trocassem uma só palavra. E nunca se entenderam tão bem quanto nesses 34 minutos.


Ilustração: www.vidabesta.com