31.8.07

Recomeço


Estava desnorteada. Sentia um mal-estar que ficava bem ali, entre o dedo do pé e o último fio de cabelo da cabeça. Olhava em volta e sentia-se uma poeira cósmica em um universo desconhecido. Ali ninguém a conhecia. Ninguém sabia de seu passado. Poderiam julgá-la de forma cruel pelo primeiro erro que cometesse. Para aquelas pessoas, não importava se ela sempre foi calma, legal, responsável. Ninguém sabia de seus filmes favoritos ou qual era sua última música preferida.

Para aqueles desconhecidos, que a olhavam como quem olha um bicho na vitrine, pouco importavam suas habilidades. Elas só existiriam a partir do momento que ela tivesse a chance de mostrá-las. Até lá, era um zero. Uma folha em branco, que cada um pintaria como quisesse. Não representava nada de importante. Apenas um mistério. Todas as piadas que sabia, o sanduíche de mortadela que aprendeu a fazer ou o último livro que leu. Ninguém ali sabia de nada.

Sentia saudade de seus amigos. Já sabiam de seus defeitos, suas qualidades. Mas era preciso levantar a cabeça e continuar seguindo por aquele longuíssimo corredor de poucos três metros até sua sala. Com o tempo, ela ia mostrar do que era capaz. Ia conquistar respeito e recolher méritos, como sempre fez.

À medida que entrava em sua nova sala, sentia o chão se construir a cada passo. Pensou em correr e fugir, deixar sua fama de boa moça para lá. Estava com medo, tanto medo que parecia que nunca ia passar. Mas lembrou de sua mãe dizendo que ela se sairia bem e foi até o fim. Seu coração batia tão forte que ela tinha medo de que alguém escutasse. Ocupou a mesa que agora lhe pertencia. Sentiu-se mais aliviada. Enfim tinha um espaço dela, ainda que num ambiente estranho.

Cada um de seus poros agia como um sensor. Ela sabia que estava sendo observada. Olhou em volta buscando mostrar atitude e esconder um pouco do acuamento. Um pensamento leve passou pela sua cabeça e ajudou a relaxar a musculatura das costas. Imaginou que um dia, um daqueles estranhos que não lhe diziam nada, se tornaria um grande amigo, visitaria sua casa e lancharia com ela.

Alguém bate à porta. Uma senhora alta, de terno azul marinho ligeiramente antiquado, coque alto e impecável.
- Com licença? Posso roubar só um minutinho? Gente, gostaria de apresentar Adélia. Esse é o primeiro dia dela aqui. Dêem um bom-dia bem alto de boas vindas.
Ela corou de vergonha, mas respondeu ao sonoro bom dia da 5º série C. Algum engraçadinho ainda disse ‘ficou vermelha’. Todos riram. Ela adorou. Sentiu-se menos estrangeira em seu novo colégio.
ilustração do galvão em www.vidabesta.com

27.8.07

Você aceita?

Desculpe-me, mas não possuo a tecla stand by. Não dá pra mim, não sei ficar pronta para ser ligada a qualquer momento, quando você bem entender. Ou estamos ligados e veremos juntos os melhores programas, seremos os protagonistas dos filmes mais divertidos, viveremos com ação e emoção, comeremos pipocas com guaraná, criaremos o roteiro e iremos dirigir todas as cenas, ganharemos prêmios por nossas participações ou não irá funcionar pra mim.

Alguém pode me explicar como se vive assim, sem que seja dito tim tim por tim tim qual é o plano que iremos seguir? Ah, claro, você prefere o improviso. Estamos improvisando já faz tempo, e estou bem perto de bater no seu ombro gentilmente e dizer: ou dá ou desce, querido. E não me entenda mal, não quero casar na igreja, no cartório, no parque de diversões, na fazenda da sua mãe, no templo budista. Não é disso que estou falando. Pelo contrário, a festa de casamento é a parte mais fácil, e a mais dispensável de toda a nossa história. Definitivamente não tenho o menor interesse em mostrar pra todo mundo que somos um casal muito animado, que iremos fazer do nosso casório um grande acontecimento, que todos irão beber, brindar, subir nas mesas, fazer declarações cheias de entusiasmo, que será o dia mais perfeito de nossas vidas. Não, não quero nada disso.

Não quero pedir presentes aos amigos, não quero que eles reclamem das músicas ou do calor ou do frio ou dos salgadinhos. Não quero que eles usem uma gravata para me ver desfilando num corredor infinito vestida de branco e com dois dedos de corretivo no rosto. Dispenso tudo isso com um grande prazer pelo simples motivo que isso é muito fácil de se conseguir, principalmente quando se tem dinheiro.

Eu quero é saber o quanto de vontade nós teremos para seguir em frente. Chega desse papinho de viver o presente, isso era ótimo quando tínhamos 17 anos e nossa única responsabilidade era passar no vestibular. Minha pergunta é: como se chama esse negócio que estamos vivendo? Em quais planos posso incluir você? Em quais deles você quer participar ativamente? Vou simplificar para você: quer ter filhos comigo? Quer dividir comigo bens materiais como apartamento, carro, sítio na montanha, outro apartamento para investimento, fundo de renda fixa, ações? Quer montar um plano para morarmos fora do país por 5 ou 10 anos? Quer pensar em nossa aposentadoria? Quer ser meu sócio naquela idéia de ter um café-livraria-galeria de arte? E por último, é muito difícil para você responder sim ou não em todas essas perguntas? Sim ou não?

Deixa que eu adivinho. Você não tem a menor idéia de como quer sua vida daqui a cinco anos. E também não quer que ninguém diga o que você tem que fazer. Mas ao mesmo tempo você quer companhia para ir domingo à noite ao cinema. Mas não consegue pensar em nada que exija mais raciocínio do que a programação de um fim de semana prolongado. O problema está aí: eu preciso saber. Porque gosto de me programar. É isso que me faz pensar que todos os problemas valem à pena. Pensar que iremos para a República Dominicana me dá forças para agüentar cliente chato na minha orelha. Imaginar que vou com você pra Nova Zelândia me impede de comprar bolsas e sapatos a mais só porque estão em liquidação. Amar você é isso: ter um motivo para viver e querer viver mais.

21.8.07

Amor de verdade



Olho por aí e vejo tanta gente buscando um amor. Aquele lá que vai salvar a vida, dar um novo significado até para as menores coincidências do mundo. Um amor que vai tirar remela do seu olho pela manhã, comprar um presente no meio da semana sem motivo. Fica todo mundo esperando aquele alguém que vai chegar no escritório, durante o horário de trabalho, só pra dar um beijo.

O amor imaginado tem pequenas brigas, porque sexo de reconciliação é sempre coisa de louco. Tem dias ensolarados na praia e chuvosos no cinema. Tem conversas sobre a relação que realmente levam a mudanças concretas, sem terminar com brigas intermináveis sobre... sobre o que mesmo?

No meio dessa caçada à metade, à alma gêmea e outros substantivos bregas, desse tiroteio de intenções desesperadas, o amor de verdade é subestimado. Fica lá no cantinho, enquanto a maioria procura por ele em placas de néon. Amor não é um show da broadway. É cachorro-quente na esquina. É milk-shake com dois canudos. E do outro lado, nem sempre é quem esperamos.

E você é a prova disso. O amor é quase uma terceira pessoa entre nós, de tão presente, tão tateável. E como tudo que é real, também trouxe dor. Abrimos grandes feridas, expusemos carne, ossos e nervos. E não eram de aço. Mas até isso serviu pra mostrar que nunca deixou de ser amor.

A realidade sempre se manteve sob nossos pés. As amigas inseparáveis, com empregos de usar tailleur, filhos lindos e viagens exóticas eram coisa de filme. Nós ficamos com as quedas em escadas rolantes, os cabelos desajeitados da adolescência, as risadas descontroladas nos lugares mais inapropriados, as descobertas embaraçosas, as vozes engraçadas, as piadas que só nós entendemos. O mundo tem bilhões de pessoas e ninguém, além de nós, vê sentido ou graça nas nossas piadas. Não é lindo isso? Cantamos parabéns mais de 15 vezes, vimos namorados indo e vindo, gatos e cachorros nascendo e morrendo. Falhamos, sentimos o coração se partir com tanta força que chegava a dar um terremoto no corpo todo. Mas nunca deixamos de nos amar, mesmo quando achamos que tudo havia acabado.

Já disse eu te amo algumas vezes na vida, mas quando penso em nós duas, questiono alguns amores. Conhecer você fez eu me conhecer melhor. Me sinto acolhida por você, que nem comer broa de milho de avó e dormir em lençol com cheirinho de casa. Você me conforta por existir, mesmo que longe, mesmo que ocupada, casada, chateada. Não temos mesmo sangue, nunca fizemos sexo, não dividimos contas. Não quero ter filhos com você, nem esquentar meus pés nos seus. Mas o outro canudinho do milk-shake sempre vai estar lá pra você.
ilustração em vidabesta.com

16.8.07

A carta que não mandei

Foi engraçado a forma como achei que você me olhou quando fomos apresentados (novamente) um para o outro. Enquanto nos cumprimentávamos, pensava: já nos falamos antes, sei quem você é, sei dos lugares onde você trabalhou. Não chegava a ser sua fã, mas tinha uma simpatia por você que não sei de onde vinha. Talvez pelos amigos em comum que temos e que sempre falaram bem de você. Talvez por você ter um olhar ligeiramente estrábico, que pode ser um charme, dependendo de quem vê.

Mas quis acreditar que você me cumprimentou com relativa empolgação. E fiquei feliz por isso. Um tempo depois recebi seu e-mail, que tinha no assunto uma numeração. Era o primeiro – e no instante seguinte depois de lê-lo, imaginei que iríamos começar uma sistemática troca de informações sobre nós mesmos, sobre nossas vidas, nossas opiniões, nossas expectativas e tristezas. Em horas como essa, detesto pertencer ao estereótipo feminino. Mulheres em geral criam situações absurdas somente com uma troca de olhares. Se imaginam namorando, tendo alguém para levar nos almoços de família, viajando para uma cidade romântica no sul da Itália. Enquanto para o homem aquela troca de olhar não passa de um queria te comer hoje à noite.

No meu caso, tenho uma explicação. Tudo bem se não quiser saber e parar de ler neste instante. Aprendi a lidar com a rejeição. Claro que ela me afeta, mas consigo voltar ao normal em um ou dois dias. Aguardei ansiosamente por outro e-mail seu, e desejei que o próximo fosse sair da esfera de assuntos amenos e começar com linhas mais densas e interessantes. Mas não, a resposta que veio foi ainda mais distante e sem uma pista sequer de todo aquele interesse que supostamente imaginei que tivesse tido por mim.

Vou tentar explicar por que isso acontece. E provavelmente não acontece só comigo. Deve ser mais comum do que imagino. Vivo em um relacionamento que já não sei onde eu começo e onde termino. Me misturei tanto com aquele que divide comigo a mesma cama, a mesma mesa, o mesmo sofá que cedi a algumas convicções, adquiri outras, mas com certeza não sei mais me descrever. Antes de termos uma relação tão íntima com alguém deveríamos registrar em cartório aquilo que somos. “Declaro que sou o que sou e que só irei mudar diante de grandes vantagens”. Mas não é assim que acontece, você sabe bem. E é aí que você deveria entrar. Quis que você fosse o herói da minha história, que me resgatasse e fizesse me lembrar de quem fui.

Não me decepcione dizendo que sou eu que tenho que dar um basta se não estou feliz. Não quero que você seja pragmático, isso é para ser uma carta romântica. No momento em que nos falamos, que trocamos o primeiro e-mail, não me importava se você era casado, se tinha filhos, se estava apaixonado por sua mais nova amante, se queria deixar o emprego e abandonar tudo sem avisar ninguém. Desejei somente ter alguém para me desconcentrar, alguém que mostrasse um verdadeiro interesse por mim, alguém para me fazer pensar diferente. Nesse momento me passa pela cabeça se você também não queria o mesmo de mim. Se agora estamos os dois pensando: por que não tivemos coragem para tentar?

14.8.07

Flagra


- Adolfinho. Você ouviu isso?
- Ouvi nada não, mozin, fica calma.
- Ai, Adolfo, sei não, eu juro que ouvi o rangido da porta.
- Quiqui, não tem ninguém em casa.
- Adolfo, tem uma sombra no corredor.
- Santo flagra.

Não houve tempo para nada. Nem mesmo para se cobrirem. Em questão de segundos, a mãe de Adolfo adentra seu quarto. A cena é dantesca. Era impossível saber qual perna era de quem. A expressão de terror de dona Miriam era a mesma de quem está do outro lado da rua e vê seus três ônibus passarem ao tempo. Pânico, desespero, falta de sorte.

(grito de aproximadamente dez segundos ecoa pela casa.)
- Meu filho! O que é isso?
- Mãe, eu posso explicar.
- Não tem como. Até porque nunca vi posição igual a essa.
- É, a gente que inventou. Mas fica calma, mãe.
- Dolfinho, como é que vou ficar calma com vocês dois pelados na minha caminha, esfregando essas... essas... nádegas suadas no meu lençol de seda?
- Mas dona Miriam, a senhora tem que entender nossa situação.
- Eu estou entendendo bem. Principalmente a situação do meu filho. Tampa seu pintinho, Dolfinho, que mamãe fica constrangida de ver ele assim.
- Mas a senhora há de convir que somos prevenidos. O pintinho dele está coberto, viu só? Mostra aí, Adolfin.
- Pára, Quiqui, pára.
- Mas é verdade, num é? Mostra logo esse treco, sua mãe já viu isso mil vezes.
- Ah, meu deus!
- Como a senhora percebeu, ele está devidamente protegido. Com o susto ele ficou meio recluso, com carinha de sharpei... tadinho. Mas a borrachinha tá presa ali.
- É mãe, ela tem razão.A gente se preveniu. Engravidar ela não ia.
- Mas que cara de pau... não existe justificativa pra essa sodoma e gomorra. É uma falta de respeito.
- Falta de respeito não é não, dona Miriam. Nós forramos sua cama com essa toalha de praia, pra não sujar seu lençol de seda com Nutella. Nós fechamos a cortinas pros vizinhos não acharem que era a senhora se divertindo. Nós tiramos o quadro com a imagem de Jesus da parede, pra ele não ver nada.
- Ele vê tudo, minha filha, vê tudo! Não merece, mas vê, coitado.
- Coitado é o Adolfo, dona Miriam. Sabe que ele fica com dor nas bolinhas quando a gente fica sem transar?
- Deus do céu!
- Fala pra sua mãe, Adolfo, fala que você fica todo dolorido.
- Pára, quiqui.
- Larga de agir que nem menino! Ela já pegou a gente furunfando mesmo. Aja que nem homem. Agorinha mesmo você não era o peludo selvagem que ia explorar a gruta? Agora está com medo da sua mãe?
- Tá bem, tá bem. É verdade, mãe. Se eu passar um dia sem sexo, o negócio aqui vira panela de pressão. Fico que nem aquele seriado, o 24 horas. Pura tensão.
- E tem mais. A senhora sabe o que é ir pra motel? Olha, dona Miriam, tem que ser muito guerreira.
- É verdade, mãe. Dia desses a gente foi brincar na banheira e um bolo de cabelo saiu do...
- Adolfin! Poupe-me, meu filho.
- A senhora que tem que nos poupar desse moralismo. Tem que agradecer por seu filho arrumar uma namorada direita que nem eu. Poderia sair por aí pegando um monte de louca. Não falta golpista por aí querendo um Dolfinho Neto.
- É mesmo, mãe. A Quiqui é show. E olha o corpo dela. Mostra o abdominal pra mamãe, Quiqui. Né bonito, mãe?
- ... isso é demais pra mim. Eu preciso me sentar.
- Senta aqui, dona Miriam. Dolfo, tira o vibrador daí.
- Aaahhh, santo, santo senhor!
- Calma mãe, isso é de mentira. Ó, pega aqui, é de plástico, viu?
- Ô, senhor...ô senhor...
- Tira isso de perto dela, Adolfo, ela sabe que é de plástico. Ia ser o quê? Um piru decepado?! Se acalma dona Miriam. Olha, eu sinto muito por isso. Mas a senhora tem que ver que era a única solução. A gente estava sem grana pra motel. Não ia ser no carro, a senhora sabe como é perigoso.
- É, isso é... está feia a coisa.
- Então. Aí a gente chegou aqui e não tinha ninguém em casa. E essa sua cama, sogrinha, que delícia. Nunca vi colchão igual.
- É? Você gostou? Também gosto... é macio... obrigada.
- Gostei não. A-mei. E não machuca o Adolfinho. A senhora sabe que o joelho dele é podre. Mas nesse colchão a gente faz tudo que é posição e ele fica sem dor.
- Ah, que bom, meu filho.
- E assim, sem querer abusar da nossa intimidade, a decoração do seu quarto é um sonho. Se eu dormir e sonhar com um quarto, puf! Lá vem o quarto da senhora na minha cabeça.
- Assim eu fico sem graça.
- Bom que assim ficamos empatadas, num é? Dona Miriam, vamos fazer o seguinte? Eu e Adolfo vamos tomar um banho, passar uma água no long john...
- Londjôn?
- O apelido do vibrador. Guardar as bolinhas tailandesas... puxa, que situação... desculpe esse arsenal de brinquedinhos safados, mas hoje é aniversário de namoro. Eu queria deixar o Dolfin feliz. Me sinto tão envergonhada agora.
- Meu amor, fica assim não. Mamãe entende.
- Eu só queria fazer você feliz, amor. Olha a confusão que deu. Eu sempre faço tudo errado.
- Ô, querida, não precisa disso. Olha, eu vou fazer um chá de camomila pra todos nós. O que acha?
- Boa, mamãe. Eu vou ficar aqui com a Quiqui, pra ela se acalmar.
- Aproveito e asso aqueles biscoitinhos de polvilho que vocês gostam.
- Você é demais, mamãe.
- Deixa pra lá, meu filho.
- Mamãe!
- Oi?
- Fecha a porta quando sair?

ilustração do galvão: www.vidabesta.com

9.8.07

Mais que nada


Eu sou só mais uma e mais nada. Não tem nada de especial em mim que não tenha igual em outras centenas de milhares de pessoas. Não sou simpática nem carinhosa nem amiga nem preocupada nem interessada nem boa, sou o nada, sou igual a você que também só quer ser admirado. Sou exatamente igual a você que tenta falar bonito para parecer inteligente. Que de vez em quanto cita um autor da moda, fala da banda mais nova, lembra da cena do filme mais premiado em Berlim. É tudo teatro, pior, é um circo de aberrações sendo expostas de acordo com a necessidade de todos esses miseráveis que são iguais a mim e a você. Pode sentir pena de mim, pouco me importa. Não pense em nada para me falar, vai ser inútil. Engula suas palavras bonitas, enfie a mão que quer me acariciar no seu cu. Me deixe aqui, em paz, não tente ser bom para mim.

Não quero ser mais nada para você. Não quero retribuir seu recado cheio de afeto, não quero seu elogio sincero, me divirto mais com sua ironia e com seu cinismo. Vou copiar quem eu quiser, não quero parecer autêntica, não quero ter estilo só porque uso um sapato amarelo de corações brancos. Não quero agradar mais ninguém, não espere meu ombro amigo, não deite no meu colo, não estenda a mão para mim, não se apóie no meu corpo, não espere calor do meu abraço. Eu sou o nada e é só isso que tenho para você. Eu sei que não engano nem você nem ninguém, sorrio para receber um sorriso de volta, dou flores para ganhá-las, pago para que um dia paguem para mim também. Que mal há nisso? Não me interessa mais, não vou procurar a verdade porque ela não existe.

Verdade, felicidade, amor. Um trio imaginário que suga sua vida inteira, que rouba todas suas energias fazendo você acreditar que um dia vai encontrar o pacote com tudo isso ali, bem na frente da sua porta, sem que você tenha que ter feito das tripas coração para conseguir encontrar. É mais fácil escalar o Everest, mergulhar no Mar Morto, ficar à deriva na Antártica do que encontrar o que você acha que podemos dar um ao outro. Fique longe de mim enquanto você pode, porque aqui do meu lado você vai acabar sendo preenchido por todo o meu vazio. Vai dividir comigo o gosto amargo, as dores no estômago, o tremor nas mãos, a ânsia de vômito, o suor gelado da nuca, o cheiro acre das axilas, o medo e o horror dos meus olhos. Vá embora e me deixe de uma vez por todas porque agora nem a mim que sou nada você merece.

6.8.07

Licença


Pode ser que você mude de idéia amanhã. Ou talvez eu mude. De repente vamos acordar e ver que não existe mais motivos pra tanta coisa. Mas por enquanto, posso fazer planos com você?

Mesmo que você vá embora pra sempre no mês que vem, me troque por uma loira gostosa ou uma feia super esperta, posso falar de futuro? Não quero que você pense que sou uma solteirona desesperada ou uma garota ingênua demais. Uma dessas que quer realizar o sonho do príncipe com tanta força que coloca isso acima do próprio relacionamento. Quero só dividir tudo que puder com você, enquanto esse momento existir.

Você não precisa pagar minhas contas, lavar minhas roupas ou emprestar seu cartão de crédito. Muito menos, ao fim de cada frase relacionada ao futuro, dizer que era tudo brincadeira. Isso não é um contrato pra assinar embaixo. “Atesto aqui que todas minhas promessas podem ser quebradas num futuro indeterminado, caso mude de idéia. Atesto também que algumas frases melosas podem ser mero exagero, ditas apenas para fomentar o romance”. Eu sei que funciona assim e aceito as condições.

Pode parecer sem sentido falar onde jantaremos quando completarmos cinco anos juntos. Não tem problema. Quero que seja só isso. Uma conversa de beira de ouvido, despretensiosa. Coisas ditas num domingo frio, com televisão ligada em qualquer lixo, porque simplesmente temos preguiça de mudar de canal. Segredos ditos entre uma soneca e outra, no meio do café ou durante um abraço embolado no lençol. Verdades que podem durar um segundo ou um minuto, mas ainda que temporárias, verdades.

Tudo isso é meio adolescente mesmo. Pensar em nomes pros filhos que só virão em anos, escolher o modelo de sofá pra sala. Brigar pela cor da cortina do nosso quarto quando nem moramos juntos parece estúpido. Mas é tão gostoso planejar tudo com você, saber tudo que você pensa sobre as maiores inutilidades do mundo.

Quando eu perguntar se vamos acompanhar as Olimpíadas de 2012, diga que sim, sem nem perguntar onde vai ser. Nem eu sei onde vai ser. E tudo bem se até lá mudarmos de idéia. O importante é que agora você queira estar lá comigo em cinco anos. Ainda que em cinco anos desista. Eu quero discutir qual raça de cachorrinho vamos adotar. Se é que vai ser um cachorro e não um gatinho. Decidir que flor plantaremos no jardim ou se o quarto deve ter uma televisão. Eu voto em não. E você? Pode falar, fala sim. Sem medo de nada disso acontecer e nos sentirmos dois idiotas. Sentir saudade dos planos que nunca se realizaram é uma das coisas que mais doem quando tudo acaba. Mas prefiro isso a não poder brincar de futuro com você.
ilustração em www.vidabesta.com

1.8.07

Toda ouvidos


Na hora que ele me ligou, já passavam das 10 da noite. Era sábado e quanto mais rápido eu dormisse, menos ficaria pensando no que não fiz e nas oportunidades de conhecer pessoas (homens, na verdade) que eu desperdicei. Já estava de camisola, deitada com meu abajur ligado tentado me concentrar na revista que comprei de manhã na banca ao lado da minha casa.

- Oi, já tava dormindo?
- Não, tava lendo...
- Posso ir aí conversar com você?

Ele tinha brigado mais uma vez com a mulher. E, como de costume, vinha me contar ponto a ponto o que havia acontecido. Na verdade, ele precisava se e me convencer de que não estava totalmente errado. Precisava do ouvido atento de alguém que o amasse incondicionalmente.

- Claro, pode sim.

Falei sem muito entusiasmo, na verdade tive que arrumar muita de disposição para apagar a luz do abajur que me dá conforto e transforma meu quarto num lugar mais interessante, com foco somente no que é importante, minha revista, meus livros, o jornal que não deu tempo de ler durante o dia. A pouca luz esconde as imperfeições das paredes e as minhas também, mas tive que apagá-lo, acender a luz do quarto e trocar de roupa para não deixá-lo culpado por me ver de camisola – por que tenho que pensar em tudo? Fui pra cozinha, cortei queijo, fiz uma pasta para acompanhar as torradas, coloquei a cerveja para gelar, levei o som pra varanda. A campainha tocou.

- Oi, tá com fome?
- Sim, e foi por isso que a gente brigou.
- Ué, você não pode sentir mais fome?
- Não, não foi isso. Você acha que estou muito desarrumado?
- É, não tá o homem mais bem-arrumado do planeta, mas também não está assustando ninguém.

Ele abre a cerveja, pega um pedaço de queijo, senta na varanda e começa a falar, falar, falar. Por horas fico apenas olhando pra ele e pensando de onde vem tanto amor. Prefiro não dizer nada, ele é incapaz de mudar. O que custava ele tomar um banho, trocar de roupa e passar um perfume para deixá-la feliz? Muito, porque ela não consegue entendê-lo como eu. Ele sofre de falta de ser aceito do jeito que é. Psicólogos chamam de baixa auto-estima. Ele quer apenas matar a fome, com a mulher que ama, e que se dane a bermuda, o chinelo e a camisa de malha com estampa de propaganda. Nada disso pra ele interessa. Mas ela não compreende e desfaz dele no mesmo instante: “Sair assim com você? Não vou mesmo.”
Ele, que não sabe conversar e se fere facilmente, fecha a cara, deixa ela em casa e busca em mim algum tipo de alívio.

Depois da segunda cerveja ele começa a dar sinais de cansaço. O queijo acabou, a carne que esquentei também. Ele se senta no sofá, liga a TV, vê um pouco da reprise de um jogo qualquer. Enquanto eu jogava fora as latas de cerveja e limpava a varanda ele voltou para o seu mundo. Estava satisfeito por ter comido, bebido e desabafado. Terminei de lavar as louças na cozinha. Ele havia desligado a TV e já estava na porta, bocejando, com chave do carro balançando na mão.

- Amanhã a gente se fala, tá?
- Tudo bem...
- Um beijo, boa noite.
- Tchau, pai, boa noite.