27.7.07

Surpresa



Shhhh. Faz silêncio aí pra ela não escutar. Nem respire, porque senão ela pode ouvir e a surpresa vai pra cucuia.

Hoje é aniversário de alguém que amo tanto, tanto, tanto, que nem cabe tanto tanto no texto. Se eu tivesse que escrever sobre uma amizade perfeita, não conseguiria descrever tão bem o que tenho com ela. Ou sei lá, vai ver que tem mesmo isso de outra vida e, antes da cegonha me trazer de novo pra esse mundo, eu virei pra algum anjo do setor de relacionamentos e disse: só reencarno sob essas condições. E lá estava ela nas primeiras condições. Junto com não ter celulite. Mas essa não foi atendida.

Somos tão amigas que já nem sei se o nome disso é só amizade. Parece até uma definição pequena perto de tudo que sinto por ela. Nos escolhemos por livre e espontânea vontade para dividir tudo que acontece em nossas vidas. Até que tentamos manter uns segredos, mas as revelações são fatais. E geralmente, engraçadíssimas. Temos nossos momentos de privacidade em que, naturalmente, nos afastamos. Seja por trabalho ou até por falta de assunto, porque às vezes acontece mesmo. Mas nada que uma tarde num café não resolva. Aí tome planos, piadas, conselhos e risadas. Momentos tristes também acontecem, claro. E não há nada que uma não tente fazer para agradar a outra nessas horas.

Shhhhhh. Assim ela vai ouvir. Ela ainda não leu isso, nem sabe que estou colocando aqui. Nem é dia de postar. Leiam baixo pra ela não desconfiar.

Ela nem é desconfiada assim. Mas tem uma intuição pavorosa. Parece minha mãe, sempre acerta o que eu tô aprontando. De repente é mesmo intuição de mãe, como ela é. Uma supermãe. Quando ela se questiona sobre isso, fico pensando da onde tirou essa idéia. Garanto que o filhote não questiona isso. E além de mãe, ela é empresária (chique isso, mas verdade), escritora talentosa, mulher vaidosa, cuidadosa, corajosa e surpreendente. Ah, e também acha tempo pra ser minha amiga.

Ela merece tudo que ama o tempo todo. Merece que pessoas se joguem no caminho pra tampar poças de lama. Merece eunucos (ou não, vai saber) abanando ela com folhas de palmeiras. Merece aquele biscoito de amêndoa, que ela ama, todo dia na sobremesa. Merece todas as roupas da Dress to Kill, sapatos da New Order, bolsas da Clo. Merece um celular que funcione direito, porque os últimos têm sido um cocô. Merece clientes que escutem e considerem tudo que ela diz. Merece a confiança e o respeito de todos. Mais que isso, o reconhecimento. Merece ser regada todo dia, colocada no sol e adubada, como florzinha que é.

Pronto. Agora vocês contem até 10. Mas bem baixinho. E assim que ela acessar essa página, respirem fundo e depois gritem com todo ar que tiverem no pulmão “ feliz aniversário, docinho!”.
ilustração de claudio frança.

25.7.07

Rehab


Meus olhos se abrem. E parecem ser a única parte do corpo capaz de se mover. O corpo está pesado, apesar de eu ter perdido uns bons quilos ultimamente. Sinto os floquinhos de espuma do travesseiro na cabeça e as molas do colchão pressionando as costas. Estou presa à cama. Não tem algema, corrente, corda. Não tem cola nem velcro. Tudo que me prende a essa cama é sua lembrança.

Poderia me esforçar. Contar um, dois, três e já, levantar daqui num impulso, fincar o pé direito no chão e tentar me convencer de que hoje superaria tudo. Mas não.
Hoje não saio daqui. Vou deixar cada lembrança sua me estapear, nem que pra isso precise me amarrar, perder o controle, acordar os vizinhos e assustar o gato. Preciso de toda energia que tiver pra não esquecer nem um detalhe seu. Quero reviver cada momento com tanta força que eu precise esticar as mãos pra ter certeza de que é apenas um pensamento, e não você diante de mim.

Quero lembrar da cor que seu cabelo fica no sol. Daquela pinta no seu queixo, que me fazia repetir a mesma piada mil vezes, enquanto passava o dedo sobre ela. “Tem comida aqui. Ah não, é uma pinta”. Você sempre ria. Quero reprisar diálogos nossos, relembrar suas reações. Quero me concentrar a ponto de sentir o cheiro que tem seu pescoço e o peso do seu abraço, quando me apertava forte depois de quase me matar fazendo cosquinhas.

Hoje não vou comprar sapato, caminhar no calçadão e brincar com cachorrinhos que passam. Hoje não vou comer nem uma barrinha de chocolate, engolir o choro. Não vou assistir a um drama para dizer que é pelo filme que estou chorando. Hoje fico aqui, na cama. Estou disposta a viver as piores 24 horas da minha vida. Quero juntar nesse dia todas as sensações que você ainda provoca em mim até quase explodir.

Estico as pernas, viro, me cubro, me descubro. O desconforto, que antes era só no coração, agora vai pro corpo todo. As horas passam e a boca tem um gosto amargo que já nem sei se é de falta de comida ou de você. O telefone toca. Não atendo. A campainha toca. Não atendo. Hoje não atendo nada. Não vou ler jornal, não vou jogar buraco, não vou me maquiar. Hoje não vou inventar de pintar o cabelo na esperança de que tudo mais mude.

Cansei de perder a luta contra essa dor. Não agüento mais explicar o que aconteceu com você pra todo mundo e fingir que não estou péssima. Eu não quero mais brincar disso. Quero um ponto final, nem que eu surte nessa cama. Hoje vou ser otimista. Vou sofrer o máximo que puder pra amanhã não sobrar mais nada pra sentir.


ilustração em www.vidabesta.com

19.7.07

Pobre amor


Vamos fazer assim, eu tiro você por algumas horas desse subúrbio onde você vive e levo-o para jantar em restaurantes onde nem o nome das entradas você vai saber pronunciar. Em troca você me apresenta sua família simples e ordinária que ainda ri vendo videocassetada afundada no sofá de couro falso.

Eu ensino você a beber vinho de verdade, em taça de cristal, na temperatura certa. Enquanto você escuta Miles Davis e John Coltrane, fica sabendo o que penso do cinema alemão. Mas fique sabendo também não vejo a hora de você me levar para mais um inferninho e encontrar com seus amigos de brincos espalhados pelo corpo e amigas de cabelos multicoloridos. Me ensine o refrão desta banda que nunca ouvi dizer, me dê um beijo com gosto de cachaça, esfregue a barba por fazer no meu rosto.

Me leve para acampar na beirada de uma cachoeira, mas por favor, não me faça ouvir reggae. Prometo não reclamar dos hippies tocando violão e fumando maconha envolta da fogueira, nem dos mosquitos, nem de ter que fazer xixi no mato. Mas deixe que eu leve você para conhecer uma cidade cheia de referências históricas, com museus, galerias de arte e livrarias em prédios monumentais. Vamos a um café, beber água com gás, pedir um expresso com creme e conversar sobre amor e sonhos.

Pegue um ônibus e venha até minha casa, use aquele perfume sem graça, coloque o tênis adidas que você teve que dividir em cinco vezes, vamos a pé e de mãos dadas até a sorveteria. Você paga dessa vez, com os poucos trocados tirados da sua carteira surrada e sem cartões de crédito.

O que vamos ganhar com isso? Não tenho a menor idéia. Talvez orgulho de cada um ser do jeito que é. O melhor de tudo vai ser comemorar cada descoberta livre de preconceitos e de roupas. Prometo deixar você me despir de tudo e me vestir apenas de você.
Ilustração: Claudio França

13.7.07

Tentativa

Ah, a eterna guerra dos sexos. Que tema bom, rende discussões e porradas. Esse assunto anda rondando minha mente que nem mosquito de madrugada. Terminei de ler o livro “Infiel – notas de uma antropóloga”, de Mirian Goldenberg. Adorei e recomendo. Foi docinho quem me emprestou. “Ou ele ajuda ou ele te desespera pra sempre”. Ajudou.

Vim pra Vitória com sete anos. Menininha cabeçuda, com um cabelo que minha mãe insistia em pentear e eu, para não ficar com carinha de Maria Bethânia, insistia em prender. Além de mim, existiam poucas meninas no prédio. A solução era brincar com os meninos. Joguei futebol e arranquei o tampão do dedo várias vezes chutando o chão. Por vezes era até cabeça de chave. Pulei muro e subi no telhado incontáveis vezes para pegar a bola. Jogava basquete com eles, tênis, falava bobagens e ouvia também. Chegava imunda em casa e corria pro Atari, onde também competia freqüentemente com os garotos. Cresci assim, sem frescura.
Até o dia em que, em uma festinha de criança, a aniversariante colocou o microfone na minha boca, para que eu, como todas as meninas da festa, acompanhasse a bela canção She-ra, da Xuxa. Eu era a única que não sabia a letra. Mandei uma embromation, fingi espirrar ou tossir e até que escapei bem da humilhação. Mas senti que seria desmascarada caso vacilasse novamente. Percebi nesse dia que, se quisesse conviver com as meninas, teria que gostar de Xuxa e Hello Kitty. Pelo menos para uma menina de 12 anos, foi assim que interpretei o mundo.
Os esforços foram válidos. Mas nunca cheguei a gostar de Hello Kitty. Acho engraçado só quando ela vem vestida de coisas como policial ou médico. Lembro do Villagge People. Descobri que ser menina é legal. Cortar o cabelo bonitinho, ser limpinha, exigente, multifuncional. Entendi que para ser feminina não precisava ser fresca. Mas sempre ouvia as reclamações femininas com certa desconfiança. Algumas queixas eram exageradas. Lembrava dos meninos e pensava “pra eles, essas reclamações não fazem o menor sentido”. E hoje, diante de tudo que vejo, ainda acho uma perda de tempo ficar acusando homem de toda nossa infelicidade.

No livro, entre tantas outras coisas, Mirian fala dos conflitos atuais entre os sexos. A mulher que mostrou que pode atuar em casa e no trabalho e o homem que se sentiu sem função por causa disso. A mulher que pede demais, o homem despreocupado. O paradoxo entre excesso de mulheres e excesso de exigência por parte delas. Tudo isso fez uma impressão que tenho faz tempo ganhar força: as mulheres esperam demais dos homens. E me incluo nisso, apesar de tentar controlar.
Dar a um homem o maior foco da nossa vida é uma burrice. Mesmo dizendo que somos modernas, acabamos caindo na grande armadilha de querer aparar arestas na relação – que muitas vezes só nós vemos -, e nos perdemos. Ficamos querendo adestrar, ensinar, mas eles não são assim. Funcionam numa freqüência diferente. E o melhor a fazer é encontrar um que opere numa sintonia próxima. Não venho aqui defender o desleixo deles, os esquecimentos e pequenos vacilos. Mas eles são diferentes. Claro que os homens não são todos iguais, mas vamos admitir que a raça apresenta um padrão de comportamento. Por iso, é melhor se preocupar mais com a novela do que com a toalha molhada em cima da cama.

Ninguém deve levar desaforos pra casa, admitir violência física ou moral. Fora uma mãozinha amarrada aqui ou acolá, com consentimento. Mas danem-se as pequenezas chatas do dia-a-dia. Ele saiu com aquela camisa furada no sovaco? Vou é rir. Ele insiste em lavar o cabelo com sabonete? Vou cantar ‘Olha a nega do cabelo duro’ pra ele. Só vou me irritar com coisas realmente importantes, com um desconto na TPM.
Esperar que a felicidade venha da plenitude de uma relação é fracasso na certa. Tenho trabalho, família, bichos de estimação, planos e mais planos. E amigas e amigos, cinema, idéias, livros. Os homens não podem suprir tudo que queremos, assim como nós não podemos dar conta de tudo que eles querem.
Não é questão de passar por cima de valores, mas de relaxar mais, de dar mais importância a outras coisas. Porque não adianta tentar convencê-los de que falar “esse bolo ficou meio doce” é uma ofensa monstruosa pra quem passou horas espalhando farinha pela cozinha. Pra eles é apenas um “ficou meio doce”. Não é um ficou ruim, tá uma merda ou você é péssima cozinheira. Mas se ele encher o saco demais, porque relevar é uma arte difícil, ok, aí sim mande ver se você tá na esquina.

Quem ama tem todo o direito de insistir em resolver os problemas da relação. Mas tente, tentemos todas, não fazer disso a principal tarefa da vida. Senão, vira uma bola de neve, uma briga atrás da outra. E de repente, nos tornamos as chatas da história. Minha opinião? Desvie o foco e relaxe. Ou então, largue de vez. O que não dá é viver reclamando.
ilustração em vidabesta.com

8.7.07

Acorda!


Desista, nunca vai ser desse jeito. Não é feito para ser assim. Ele não vai se interessar pelo modelo do seu vestido de casamento. Não importa se vai ser de renda com brilho aplicado ou de cetim com decote nas costas. Ele não vai nem se lembrar no outro dia.
Ele vai concordar com tudo que você escolher apenas para sair mais depressa da loja de móveis. Não se iluda, ele não tem bom gosto, aliás, ele nem sabe o que é isso. Esqueça, ele jamais saberá tomar uma decisão sozinho. Você que irá escolher o dentista, o restaurante, para onde vão nas próximas férias. Com o tempo, as poucas idéias que ele sabe dar ficarão ainda mais absurdas e improváveis.

Ele não vai à reunião de pais com você, vocês não irão juntos ao supermercado nem à feira de produtos orgânicos. O próximo apartamento é você quem vai ter que escolher. Não espere que ele troque a lâmpada queimada ou que conserte o vazamento do tanque. Provavelmente ele nem se lembra de que vocês têm um tanque. Sinto muito, querida, mas é assim que funciona. Agradeça se ele fizer sexo com você três vezes por semana. E se quiser continuar casada, não exija nada mais que isso. Ele trabalha e põe dinheiro em casa. E comprou o carro para você ir buscar sua mãe no aeroporto, levar a empregada até em casa quando ela perder o último ônibus. Então não peça mais nada, pare de reclamar da toalha em cima da cama, da roupa suja no chão do banheiro, da tampa da privada levantada, da luz acesa, da garrafa de água vazia, do lixo aberto, da cafeteira ligada, da porta destrancada, da chave pelo lado de fora.

Esqueça tudo que você ouviu sobre homens modernos que dividem a tarefa doméstica com suas mulheres. Eles representam durante algum tempo, mas voltam às origens mais rápido que você imagina. Todo processo de evolução é demorado. Portanto, aceite os fatos, não reclame, torça para a estagiária dele não ser gostosa, tenha disposição de sobra, sorria, seja cheirosa, cuide da pele e do cabelo, dos filhos, da casa, das contas e, de maneira alguma, deixe de ir para a academia.

Ou entre para o clube das separadas, amargas, sem esperança, desiludidas, mal amadas que não têm a menor idéia de como irão encontrar outro desgraçado para atormentar a vida dele com tantas frustrações.

3.7.07

Suma


Eu não quero saber. Não quero ouvir seus motivos, foda-se você e seus motivos. Quero sentir muita raiva que assim, quem sabe, paro de esperar que você entenda o que digo e sinto.

Não me interessa se o carro quebrou e isso te atrasou. Tô cagando se você comeu o último pedaço da minha torta de chocolate porque achou que eu tinha deixado pra você. Não quero saber da reunião que deixou você preso até tarde no trabalho. Sabe por quê? Por que eu acredito em tudo que você diz. Caio que nem pata. Viro criança diante de suas explicações e promessas.

Então, chegue tarde mesmo, arrume uma amante, se quiser engravide a pobre imbecil. Pode ir pra sua porra de futebol e voltar sujo, emendar com a cerveja, faça a merda que quiser. Não quero saber o que quer dizer essa nota fiscal de boate que caiu do seu bolso, não quero ver a fatura do seu cartão. Porque quanto mais sei sobre você, mais vejo que tô atolada num monte de sujeira, num poço sem fundo de mentiras. E quando mais me enfio nessa lama, mais quero provar pra mim que posso vencer, que podemos vencer. Que posso te conquistar de novo e voltar aos tempos em que íamos juntos ao cinema, ríamos dos vizinhos que vivem discutindo, tirávamos par ou ímpar pra ver quem atenderia ao telefone.

Cansei de viver nessa ilusão. Pare de se explicar. Agora quero me desiludir, quero parar de te amar e odiar, pra sentir apenas indiferença. Não me elogie, não me chame pra nada, esculache. Faça uma festa com strippers na sala onde te dei endoidecida pela primeira vez. Venda minha bicicleta, foda-se, faça qualquer coisa, não me importa. Só não quero mais olhar pra você e ter esperança.

Você fez eu me odiar por acreditar que as coisas poderiam mudar, por me transformar num nada, num merengue, numa coisa amorfa e passiva diante de seus argumentos furados. Mas o pior foi me convencer de que eu não seria nada sem você sem nunca ter dito isso, apenas me excluindo, mentindo, me colocando por baixo. Me fazendo correr atrás, quase implorando pela sua atenção.

Pois agora chega. Não tenho fôlego, forças, não quero mais tentar. Quero deixar de amar você agora, hoje, nesse exato segundo, antes que deixe de gostar de mim mesma.

ilustração do galvão: www.vidabesta.com