22.7.09

Subentendido



- O que a gente vai comer hoje?

Uma pergunta simples e rotineira. Aparenta inocente, mas é capaz de alcançar níveis profundos no conhecimento amoroso. O que vamos comer envolve vontades reprimidas, jogo de adivinhação, habilidade de negociar. Apesar do risco, Estela lançou a sorte.

- Vai, Beto. Pode escolher, prometo que não questiono.
- Hambúrguer. Vamos lá no Chapadão do Pepo.
- Beto.
- O quê? Não era pra eu escolher?
- Hambúrguer? Do Pepo ainda? Ele não deve lavar aquela chapa há anos. Se fizesse uma lipo naquele chapa dava pra abrir uma fábrica de sabonetes.
- Ah, não diz isso. É essa pegada rústica que dá o gostinho bom pro sanduba. Gostinho de chapa.
- Amor, até queijo-quente tem gosto de bacon quando sai daquela chapa. Aquilo tem é gostinho de infarto. Não esquece que você já tá ali na portinha dos 40, Beto.
- Tá bem, nesse papo eu não quero entrar. De novo não. Então diz você o que quer comer.
- Uma coisa leve. De repente uma salada.
- Mentira. Não é possível. Com esse friozinho que atravessa o estômago e deixa só um vácuo pra trás, não, não acredito que você queira salada.
- Não que eu seja louca por alface. Mas alguém tem que cuidar da saúde, né?

Todos têm o direto de comer salada e bufar em uma esteira de academia com trajes especialmente projetados para transparecer cada celulite. Têm também o direito de dizer que é tudo em nome da saúde, embora seja apenas uma desculpa para não parecer tão fútil assumindo que é sim pelo corpo.

- Então vamos naquele bar que vende de tudo. Você pede a salada e eu peço uma pizza.
- Ah, Beto. Mas aquele lugar não tem charme.
- Ué. Mas eu achei que você queria uma salada. Não sabia que tinha que ter charme.
- Poxa, mas comer em lugar feio faz a comida até descer mal. Era pra ser um programinho.
- A gente combinou que ia segurar esse mês, pra dar a entrada no apartamento. Achei que o programa era esse. Dar a entrada.
- Mas pagar 20 reais a mais pra ir num lugar bacana não tira a chave da nossa mão.
- Ta. Então vamos tentar de novo. Onde você quer ir?
- Deixa eu pensar. Olha. Já que nosso aniversário de casamento é daqui a uma semana, a gente pode comemorar antecipado. O que acha?

Mesmo percebendo a descarada tentativa de enganar a si mesma e burlar as regras de não-gastar, Beto entrou no jogo. Seu estômago já roncava tanto que em alguns minutos poderia até participar do diálogo.

- A gente também pode inventar que estamos comemorando 4 anos, 11 meses e 3 semanas.
- Isso, Beto, isso, adorei!
- Tá. Beleza. Vamos lá então. Mas semana que vem, já sabe. Contenção de despesas.
- Combinado, prometo.
- Vou lembrar, hein? Não vale nem sapato.
- Não, juro.
- Nem vem falando que é promoção.
- Ai... nem?
- Nem. Então vamos recomeçar. Onde vai ser essa nossa atípica, revolucionária e supercharmosérrima comemoração?
- Agora quero uma massa.
- Massa? Mas e o algodão doce da festa do seu sobrinho, que você falou que foi direto pro culote? E a tal salada?
- Ocasião especial pode. No resto da semana eu como salada. Olha, pode ser pizza também. Quer saber Beto? Vou abrir uma exceção.
- Exceção?
- É, vou deixar você escolher. E vou aceitar.

Depois de tantos anos, Beto já era capaz de entender melhor a fascinante mente de Estela. Sabia bem onde ela queria chegar com “vou deixar você escolher”. Era hora de tirar o peso de uma escolha fatal dos ombros dela e assumir a decisão. Com toda a sensibilidade que a fome ainda permitia, disse sem medo:

- Amor... você sabe onde eu quero ir. Eu já falei. Mas você não quis.
- Hambúrguer do Pepo?
- ... é...

Uma mínima expressão de vítima foi o suficiente para Estela abraçá-lo.

- Ai, o que eu não faço por você.

“Por mim, sei, por mim”, pensou Beto enquanto ria por dentro. A verdade é que ele não se importava em se fazer de desentendido. Se fosse preciso encenar tudo novamente, ele faria. Por Estela e pela maionese do Pepo.

ilustra de galvão em www.vidabesta.com

8.7.09

Pensamento em pedaços



Por que parei de falar com você? Estou fazendo isso para proteger você de mim. Claro que também tenho interesse nisso. Mas, confesse: não está melhor assim? Sem brigas, sem ironia, sem deboche, sem cobrança, sem expectativa, sem nada. Conforme eu falei, tudo vai morrer. Não vai sobrar nada. Não sei quando voltarei a falar novamente com você. Tenho ficado bem assim, não me sinto mais numa montanha russa emocional desde que tomei essa decisão. Não consigo dar conta de tanta intensidade. Você suga todas as energias que tenho. Você pesa. Mas ao mesmo tempo não tiro você da cabeça.

Já dei diferentes nomes para isso. Já chamei de vício, de amor, da coisa mais importante na minha vida. Mas o que é mesmo é impossível. Engraçado que ainda acredito que estando assim, longe, separada, sem falar com você, sem olhar você no olho, sem pegar na sua mão, sem ver você rindo pra mim, acho que estou fazendo bem a um possível futuro que possamos ter. Sei que é loucura. Não quero ficar culpando você o tempo todo. Não consigo aceitar essa perda, consegue entender isso? Se você deixasse de existir, fosse pra longe, se eu não tivesse que ver você tanto, acho que tudo seria mais fácil.

Você consentiu em terminar com um relacionamento de tanto tempo como se fôssemos simples namorados. É impossível não culpar você o tempo todo. Desde que paramos de nos falar, tenho sonhado todos os dias com você. Acho que é uma forma do meu inconsciente satisfazer uma vontade, aprendi isso na análise. Acordo e você é a primeira coisa em que penso. Consegue entender o peso disso? Sinceramente, não quero mais conviver com o seu mau humor, seus devaneios sem sentido, essa mania de ficar triste e odiar o mundo, toda essa maledicência, todo o deboche, a falta de humildade, a dificuldade em aceitar as coisas como são e fazer algo para mudá-las se tanto incomodam você. Mas claro, reclamar é mais fácil. E reclamar comigo era ainda melhor, porque eu estava ali, presente e ouvinte. Preciso me livrar da obsessão que é pensar em você. Em pensar o que você e sua namorada estão fazendo no sábado de manhã. Quero saber todos os detalhes, como ela se veste, se as calcinhas dela são velhas, são novas, são sensuais.

Não tenho limite. Penso toda hora em tudo isso. E quanto mais estamos próximos, mais quero saber de tudo. Seria capaz de passar um mês inteiro só fazendo perguntas a respeito de vocês dois. Já disse, é obsessão. Patologia. Totalmente obsceno. Sei que sou melhor que ela naquilo que você considera como valor. Aí vem a pergunta estúpida: então por que você está com ela e não comigo? Você é um idiota. Um fraco. Ou um grande mentiroso ao continuar dizendo que ainda me ama, que não existe ninguém como eu. Não percebe o quanto isso é pernicioso? Cada dia que consigo não falar com você é quase uma vitória pra mim. É como se eu tivesse me livrando de algo muito ruim e fazendo isso um dia de cada vez. Um alcoólatra largando o vício.

Não consigo ser sua amiga e achar tudo normal. Toda vez que vir você e ela juntos, vou sofrer e descontar em você. Sei que você não tem a menor vontade de me procurar. Você quer manter apenas um contato leve, cordial, mas onde eu não peça nada em troca. Isso não dá pra mim. Disse isso chorando pra você. Era uma grande carência. Não sei o que eu queria realmente, mas se sou viciada em você, não deveria me abster de repente, concorda? Queria apenas algumas horinhas de algo que fosse diferente da nossa rotina. E nada além de uma boa conversa. Mas talvez ainda tenha necessidade de despejar em você todas as porcarias que penso. Acho que você não passa por tantos conflitos quanto eu. Jamais vai se dar o trabalho de querer consertar alguma coisa. É covarde demais pra isso. Você não se move, não sai do lugar. É um merda.

Posso viver bem sem você, ora veja. Não preciso de você para comentar um filme ou me indicar um novo livro. Sei onde achar e com quem falar. Assim que essa dependência minha terminar, não vai sobrar nada. Vou estar livre. E nem de longe vou querer ver você. Você vai perder totalmente a graça. Provavelmente ainda continuarei achando você incrível, sensível, inteligente, genial. Mas nada vai me encantar. Vai haver uma ponta de desprezo no meu sentimento por você. Porque conheço todos os seus lados. Cada um deles. E seu lado bom não suplanta o lado ruim. Pelo contrário, submerge. Você não se esforça para ser melhor. Não sei o que você pretende. Mas tenho certeza que sabe o que jogou fora. Mas seria muito para você reconhecer tudo isso, não é? Idiota. Viu como você não se move? Fiquei aqui, disponível. Você foi embora. Você sabe que fez coisas difíceis de se perdoar. E não é porque gosto tanto de você que consigo passar por cima. Taí, não consigo.