28.10.09

Um dia


Acordou e bebeu um copo d'água, porque parece que faz bem tomar água em jejum. Resolveu preparar um café da manhã decente, ainda que perdesse alguns minutos do seu sono. Teve paciência para colocar o pão na torradeira. Usou uma faca para cada alimento em vez de melecar a geléia de manteiga. No final, retirou tudo da mesa e lavou na hora mesmo, porque se deixasse tudo ali até à noite, poderia dar barata. Era isso que diziam, pelo menos.
Tomou banho, pendurou a toalha no varal e arrumou a cama direitinho. Até colocar o lençol por baixo do colchão, colocou.

Buscou na estante um livro para ler no ônibus. Tinha medo de enjoar, mas diziam que ler era uma ótima forma de aproveitar o tempo obrigatório que passamos em transportes públicos. Levou também um casaco, embora não estivesse fazendo muito frio. Como se fosse mágica, o livro fez a ida para o trabalho passar tão rápido que quase perdeu o ponto. Deu bom dia a todos, mesmo aos mais chatos. Também são colegas, tem que falar com todos. É o que diziam.

Na volta para casa, trocou o jogo no boteco por um filme. Foi à locadora e perguntou por “Antes do Amanhecer”. Enquanto o mocinho procurava pelo DVD, avistou do outro lado aquele bistrozinho charmoso. Assim que pagou pela locação, atravessou a rua e entrou no restaurantezinho, sem cerimônia. Se surpreendeu com o cardápio. Já haviam dito que não era tão caro. E realmente não era. Mas ele suspeitava que uma fachada tão simpática e limpa pudesse ser honesta nos valores. Não ficou pensando no tamanho do prato enquanto esperava sua chegada. Em vez disso, experimentou um vinho que, disseram, era mais caro, mas valia a pena. E valeu. Cada gotinha, cada golada. O prato chegou. Ele tinha razão: era pequeno. Mas logo sua desconfiança caiu por terra. O sabor do risotto de aspargos e brie com filé ao molho de damasco era mais do que volume para o bucho. Era um carinho para o paladar, um favor para o espírito, um presente para o estômago. Estava tudo maravilhoso o suficiente para ele ficar arrasado, pensando que ela sempre teve razão.

Deu cada passo do dia fazendo exatamente o que ela sempre pediu, aconselhou, sugeriu. E tudo deu certo. A água no jejum desceu bem, lavar pratos não doeu. Mexer o café com a colher certa e não com o cabo da faca foi bom. Ler no ônibus não deixou seu estômago revirado. Ser simpático com as pessoas não fez ele ser menos respeitado. O casaco serviu para protegê-lo do ventinho de pôr-do-sol. E o bistrot não era coisa de bicha rica. Pra piorar, adorou o filme. Fez ele compensar cada lágrima que ela, durante anos, despejou nas tentativas de arrancar novas atitudes dele.
E foi assim, derretendo em frente à TV e sofrendo com a ausência concreta dela, que ele terminou o dia mais perfeito de sua vida.


ilustra de galvão em vidabesta.com