24.9.08

Todo mundo

redatorasdemerda.blogspot.com
- Ô, treco-treco, já pedi pra você não misturar as cuecas sujas
com o resto da roupa.
- Ah, treca-treca. Todo mundo faz isso.

Nada era pior do que ouvir isso. O “todo mundo faz” e suas
variações assombravam o lar cheio de amor de Ana Lúcia e
Milton. Não havia uma bendita reclamação dela que não fosse
rebatida com a maldita frase.

Esquecer de levantar o assento da privada, do aniversário de
casamento, não ajudar a lavar louça, dividir tudo em parcelas a
se perder de vista. Todo mundo faz.

Por mais que tentasse ignorar, Ana Lúcia se irritava cada vez
mais com a desculpa porca do marido. Da onde ele tirou que
agindo igual a todo mundo estaria fazendo a coisa certa? No
começo apelou para máximas infantis:

- E se todo mundo se jogar de uma ponte? Você também se joga?
Se todo mundo comer cocô você também come
- Aí é diferente, trequinha.

Mas ela não acreditava mais. Àquela altura, se Milton oferecesse
um bolo de chocolate, ela olharia desconfiada.

- Trequinho, gritou Ana estatelada no sofá, aproveitando o bom
humor de Milton, que havia acabado de sair do banheiro batendo
na barriga. Amanhã de manhã o pintor vem aqui. A gente precisa
arrastar os móveis todos pra varanda. Tem como desmarcar o
futebol de hoje à noite pra gente ver isso?

Ela ainda foi educada ao perguntar se “tinha como”, quando na
verdade estava sendo imperativa. Milton não entendia as
sutilezas da fala feminina.

- Treca, me pede tudo, menos isso. É semifinal, aninha. Guerreiros
contra os Goonies.Todo mundo vai estar lá.

Ana Lúcia ensaia falar algo, mas corta a palavra antes mesmo de
emitir qualquer som. Engole o ar, tenta disfarçar a expressão de
raiva e diz:

- Não é a casa de todo mundo que vai ser pintada. É a nossa.
- Eu sei. Mas você nem precisa de mim. Chama o Nelson.
- Milton, você acha mesmo que eu ia ter cara de pau de chamar o
vizinho pra fazer um trabalho que é meu e teu?
- Ele já te olha de um jeito diferente que eu sei. Arrasta um
caminhão por você. Imagine então uma mesinha, umsofá. Fácil.

Irritada, Ana Lúcia vira as costas e segue pelo corredor pisando
pesado. Dois passos depois, volta, aponta o dedo na direção de
Milton, ensaia começar alguma frase e então se recompõe.

- Você não tem ciúme? Não tem orgulho? Não tem porra
nenhuma, né?
- Tenho sim. Tenho futebol hoje à noite e todo mundo tá contando
comigo.

Entre maldições e pragas, Ana Lúcia sai da sala e vai embora sem
nem se despedir de Milton. À noite, sem ajuda de vizinho nenhum,
ela arrasta tudo sozinha. Milton chega tarde, depois do futebol,
fedendo a uma mistura de caipirinha barata e cerveja que secou
na roupa.

- Ô, amor... eu ia te ajudar. Mas é que os Goonies ganharam e a
gente fez concurso de quem imitava melhor o Slot.

A história era engraçada, mas Ana Lúcia se manteve imóvel,
olhando para a TV, fingindo escutar o que os repórteres
falavam. Jurava que no lugar da cabeça tinha uma chaleira.
Sentia a fumaça saindo e um apito irritante avisando que a
coisa estava feia.

- Você não pode ficar nervosa. Eu contei pros caras dessa
situação nossa e eles disseram que todo homem precisa disso
mesmo. Não fica chateada. Não tem nada a ver com a gente
enquanto casal. É coisa de homem, sabe como?
Tá entendendo?

Antes que explodisse, Ana Lúcia caminhou para o banheiro e
bateu a porta na cara de Milton. Lá dentro, pegou uma
toalha, apertou contra o rosto e gritou até onde ao
abafamento permitia. Saiu do banheiro mais calma e meio
rouca, e falou:

- Fale qualquer coisa. Admita que não queria ajudar. Admita
que é um merda, um preguiçoso. Mas pare, em nome do
Santo Antônio que me arrumou você, pare de falar que faz
as coisas porque todo mundo faz.

Lembrou-se de todas as vezes em que ele colocou o mundo
inteiro a seu favor de forma totalmente inapropriada. Quando
a pediu em casamento disse ‘vamos casar gatinha? Tá todo
mundo casando, é nossa vez”. Na hora de escolher um
apartamento, cismou que queria Bento Ferreira. “É o bairro
do futuro, todo mundo tá comprando lá”. E a raiva que fez
ela distribuir perdigotos na toalha, foi se transformando em
algo pior. Uma decepção enorme e irreversível.

Um dia, Milton chegou em casa e não encontrou a mulher lendo
no sofá, como de costume. Achou que ela ainda não tivesse
chegado e seguiu para o quarto. Sentiu ainda no corredor cheiro
de cigarro. “Mas que diabos é isso se Ana não fuma?”. Quando
abriu a porta, lá estava trequinha e o vizinho, deitados, cobertos
apenas pelo lençol, fumando um Malborão vermelho.

Enquanto Nelson rolava para baixo da cama, Ana Lúcia se
manteve firme encarando Milton. Parado também ficou ele.
Bufando na porta, indignado, estático. Foram 10 segundos,
que para Nelson pareceram horas.

- Por que você fez isso? Por quê?!

Ela ensaiou um sorrisinho de lado, apenas com o canto da boca.
Lá dentro apenas repetia em silêncio: ué, todo mundo faz isso.
Pensava com força, como criança que se concentra para tentar
mexer objetos. Queria que Milton lesse a mente dela.
Deixou ele se esgoelar na porta.

- Fala! Fala! Eu sei que é vingança. Eu sei que você tá doida pra
dizer que todo mundo faz isso. Num é? Fala! Fala!

E ela se manteve em silêncio. Milton saiu chutando a parede
pintada, os móveis que comprou na loja onde todos amigos
compravam. Mas não ouviu nada dela. Antes tivesse.

Na quarta seguinte foi ao futebol defender os Goonies.

- Qualé, Miltão, cadê a coleira de dedo?
- Deixa pra lá.
- Ih, foi briga. Fica puto não, cara. Todo mundo passa por isso.

Ninguém entendeu por que Milton voou no pescoço de Adélio,
sacudindo ele de um lado para o outro, gritando coisas
incompreensíveis. Nem nunca entenderiam. Milton largou o
futebol e foi largado por Ana Lúcia. E quando perguntam se a
culpa é dele, ele diz que não. Que a culpa é de todo mundo.

ilustração de Claudio França

26 comentários:

Ferrugem. disse...

todo mundo é diferente, igual a todo mundo.

Giovana disse...

Ótimo, ótimo, ótimo!!!

Mania medíocre essa de justificar as coisas porque todo mundo faz.

Bjo!

figbatera disse...

SENSACIONAL! (como sempre)

Darshany L. disse...

no começo do texto eu imaginava um diálogo assim no final:
AL: quero divórcio.
M: porque?
AL: todo mundo faz, ué.

mas, mais uma vez, me surpreendi com o final :)

Aline Monteiro disse...

mui maneiro.

Hanne Mendes disse...

Muito interessante e divertido o texto.

Abraço.

Paulo Bono disse...

o melhor que já li aqui.
muito bom mesmo.

grande abraço

Helen Pedroso disse...

Citando Humberto Gessinger...
"seria mais fácil fazer como todo mundo faz
o caminho mais curto, produto que rende mais"
Ser diferente dá trabalho!
Beijo =)

Anônimo disse...

Sua prima Bia me indicou seu blog. Adorei. Aliás, ao que parece, todo mundo adora.

Anônimo disse...

E não é que eu conheço uma meia dúzia bem como ele? rsrsrs.

Bezzos, bom final de semana. Ótimo retrato de algumas almas humanas isso aqui.

Dedinhos Nervosos disse...

É mais fácil usar essa justificativa do que assumir a má vontade e outros malditos vícios.
Bj.

Anônimo disse...

Adorei o texto, apesar que todo mundo vai dizer isso...

Juniupaulo disse...

pataquepareo! um dia eu quero escrever assim. podemos ser amigos?

Anômima disse...

Eu senti a mesma raiva dela. A crônica daria um ótimo episódio de "Comédias da Vida Privada",

Anônimo disse...

nem preciso dizer o quanto eu ri com isso, né?
engraçado que vejo tanta coisa nesse texto...
enfim.

beijo!

Elisa Quadros e Valeria Semeraro disse...

muito bom, docinho. quero dar respostas sagazes igual a ana lúcia :)

beijo

Adelaide disse...

Oi, só para avisar...

Recebemos um texto seu por e-mail, sobre "tortura moderna". Publicamos, mas avisando que era de e-mail...


Houve uma discussão sobre a autoria do texto, como sempre gera nos textos apropriados da internet. Alguns associaram ao Banheiro feminino. Mas pelo jeito é daqui...

Se ele for mesmo de vcs, colocamos lá a procedência sem stress, ou se for o caso, a gente tira...

Odeio gerar conflitos, então a césar o que é de césar, embora, só pelo fato de circular por e-mail já ateste a qualidade.

Certa vez eu ouvi na Rádio um texto meu enviado como piada. Fiquei P da vida, por isso sempre procuro reconhecer os autores.

Bjs e embora seja a primeira vez aqui, irei degustar com mais calma o blog, que pareceu muito interessante.

Karine disse...

Conheci o blog de vocês há pouco tempo, por meio de um comentário postado por vocês no blog do Jairo (Assim como Você)...Desde então não parei de acessar...Me emociono sempre, são diferentes sensações...já li e reli vários textos e até poucos dias achei que já havia lido tudo o que vocês publicaram nesse blog...hoje me deparei com um texto escrito em outubro de 2006...Engraçado, foi ter "conhecido" vocês só agora...Se eu tivesse lido esse texto, justamente há dois anos, acho que teria mergulhado de cabeça num abismo...rs Bom, na verdade teria um lado positivo...eu não teria me sentindo tão sozinha nesse mundo de "meu Deus"...rs Desde essa época, eu também fui embora de mim, mas foi pra me encontrar e posso dizer que sou muito feliz em out.2008...rs
Adoro a forma com que vocês escrevem, a leveza, a transparência e intensidade me transportam para dentro de cada história,me fazendo sentir como uma personagem... Sou assumidamente uma voyer de palavras...Vocês me levam para um mundo muito particular...tão meu e tão de todo mundo... Já divulguei o blog para as pessoas mais queridas de minha lista de endereços. E todos têm a mesma opinião: vocês são ótimas! Já li vários comentários aqui que dizem algo do tipo "pôxa, queria escrever como vocês", realmente, é uma "inveja" positiva. Abraços.

Lia Drumond disse...

Delicioso.

Fernanda disse...

Muito bom...Me esbaldei de rir com a situação do corno, digo do marido chegar em casa e achar a mulher "pensando" todo mundo faz isso!!!

ahahahaha

bjokas

A Publicitária disse...

Excelent

Lucas disse...

Eu gostei tanto do texto que queria comentar alguma coisa diferente de todo mundo. Ops...

¬¬

Anônimo disse...

Ufa, até que enfim terminei de ler todos os textos! Agora vou ter de sofrer junto com o resto do pessoal, esperando vcs publicarem alguma coisa nova. Mas, ao contrário de muita gente, não acho que vcs deveriam postar com mais assiduidade. Faz parte do encanto do blog, assim como não saber qual é qual docinho.
Putz, às vezes a gente repara nas pequenas coisas da vida e fica se perguntando se mais alguém repara tb. Dá pra se sentir até meio especial com isso. É um misto de prazer e desapontamento descobrir que bastante gente repara, sim. No entanto, poucos sabem relatar essas pequenas coisas como vcs! Diante disso, só me resta dizer: Merda! Pq eu não sei escrever assim?

Anônimo disse...

Tanto tempo que eu não vinha aqui, e me deparo com esse texto!
Não consigo ser diferente: adorei!
Parabéns!
Bjs

Gaby Sipioni disse...

Simplesmente perfeito.. todo mundo deve achar isso...
Gaby
www.ahistoriadagaby.blogspot.com

Gaby Sipioni disse...

Simplesmente perfeito.. todo mundo deve achar isso...
Gaby
www.ahistoriadagaby.blogspot.com