10.3.06
Levanta-te e anda, minha filha.
28 de novembro. A despedida. Fiquei sem imaginar como seria passar um mês sem lentes de contato, apenas de óculos. Totalmente dependente daquela armação modernosa e aquelas lentes nojentamente arranhadas. Sair à noite seria um pesadelo. Ninguém ia me querer, em sentido algum. Por que alguém bateria papo com uma pessoa com cara de nerd? Com uma menina que parece ter saído do trabalho direto pra noite? Com tantos olhos bonitos, com lápis preto, delineador e sombra, quem olharia pra um par de lentes grossas? E não adiantava ninguém falar. Pra mim, sair de óculos é praticamente virar óculos. Algo que chama tanto a atenção pra si que neutraliza qualquer outro acessório ou atributo que eu destacasse. Se eu saísse correndo pelada de cabeça pra baixo, ninguém gritaria:
- Olha, uma menina pelada de cabeça pra baixo!
Apenas diriam:
- Olha, uma menina de óculos! E veja isso, não acredito! Ela está de cabeça pra baixo!
Paralelo à abstinência de lentes de contato, venho vivendo outra ainda mais dilacerante (chama de fútil que não ligo). A falta de meu carro. Eu? Sem carro? Quem poderia imaginar isso? Sou daquelas que quando entra no ônibus com um amigo escuta:
- (risadinha escrota) Que engraçado você num ônibus.
Engraçado, né? Sei. Já peguei sim muito ônibus, sem querer dar uma de filha de Francisco. Até pouco tempo atrás, ia de ônibus pro trabalho, mesmo com carro na garagem. E gostava sim. Foi a época em que mais li livros. Lia no ponto, no ônibus, no elevador. Fora que não tinha que lidar com flanelinha. Mas ficar sem minha carteira de motorista, aquela maldita habilitação para categoria B tirada com custo na terceira tentativa, me fez murchar.
Duas coisas que não imaginava ter que abrir mão, que não me enxergava sem. Pensei, meditei profundamente, gastei horas divagando sobre isso e conclui: fudeu. Amigos se afastariam, perderia rocks, oportunidades, deixaria de ir à praia, mudaria de academia, teria que virar caroneira. Tudo isso de óculos, pra garantir que a auto-estima continuaria lá no lugar dela, na chón.
(...)
Faz dois meses e dois dias que só ando de óculos e dois meses e meio que estou sem carteira. E sabe o que minha vida virou nesse tempo? Tudo, menos ruim. Eu, que nunca me considerei uma superficial, que sempre achei que conviveria bem com grandes mudanças, balancei quando precisei me despir de carro e lente. Dois meses depois, me vejo como uma menina de 15 anos, que descobre, lendo O Pequeno Príncipe e escutando Legião entre lágrimas, que é capaz de muito mais do que imaginava.
E agora, leio esse texto todo e acho que ele parece mesmo algo que eu escreveria 10 anos atrás. Será que a gente nunca aprende? Ou será que tudo é um ciclo? Se for, quero conseguir a proeza de me abster de coisas que amo de vez em quando. Deixar de ver um seriado que acompanho. Comer doce durante a semana. Faltar um dia na academia e não ficar paranóica achando que já caiu tudo. Esquecer o celular em casa, sem medo de perder o telefonema da minha vida.
É difícil, como é, tirar alguma peça-chave do dia-a-dia em nome da manutenção da identidade. Só que de vez em quando, quero lembrar que sou mais que carro, mais que lentes de contato. Quero tirar isso tudo e perguntar a mim mesma o que sobrou. Aliás, não quero ser a sobra. Quero o contrário. Vou me tirar. O que sobrar, aí sim, é resto.
Ilustração do Galvão. www.vidabesta.com
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4 comentários:
perder a nova temporada de lost? tá maluca? rs
gostei do q li, nunca tinha passado por aqui. voltarei, com certeza!
beijocas
Gosto de tentar decifrar a redatora no primeiro parágrafo!!!
é divertido!
beijos!
li tuuudo :)
engraçado, eu acabei de descobrir o site dessa ilustração no fotolog da irma da amelie (www.fotolog.net/flavola)...eu tinha enviado o "peida raul" pra ela e ela gostou
Ei Val...tinha tempo que não visitava o blog de vcs...adorei o post...e, puts, supertintendo...hehehe
bj
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