30.8.06
Como acabar com um dia em menos de 24 horas
Teve um daqueles sonhos ruins. Lembrava-se de absoltamente nada, mas sentia resquícios amargos de pesadelos, como uma ressaca. Levantou-se rapidamente e foi direto lavar o rosto e tentar despertar o cérebro para uma nova realidade. Ao olhar-se no espelho viu que mantinha as sobrancelhas e a testa franzidas. Tratou de relaxar e mentalizou "foi só um sonho". Foi tomar o café e, no caminho para a cozinha, deu bom dia a todos. Apesar de seguir o ritual matutino, sua irmã notou uma expressão diferente e perguntou:
- Tá nervosa com o quê?
Achou a pergunta engraçada. Tudo bem, ela sabia que não era lá uma mulher calma, mas em vez de bom dia ouvir tá nervosa? era demais. Não se considerava atacada, mas a maioria dos amigos diziam que ela era sim. Dentro dela, sabia bem a diferença entre sentir raiva e sentir tensão. Mas por fora, devia ser que nem o Ricardo Macchi: não demonstrava a menor diferença entre as duas expressões. Daí a razão de todos sempre acharem que ela estava puta da vida quando na realidade estava só exaltada. Falava alto, com paixão, com gestos fortes. Mas isso não era raiva. Quando ficava com raiva, estressada, atacada, como diziam, ela ficava era quieta. Mas por mais que tentasse explicar isso pra alguém, sempre achavam que era desculpa.
- Nervosa? Não. Tive algum sonho estranho. Um daqueles que some da memória, mas deixa uma sensação ruim.
- Odeio esses sonhos, odeio.
Terminou o café e resolveu tomar um banho com seu óleo preferido, pra ver se chamava boas energias ou se conseguia chamar o sonho de volta, pra pelo menos entender o motivo do mal-estar.
Saiu para a aula. Era dia de Estatística. Chegou tarde, já que sua irmã, que odeia tudo, nesse dia odiou sair com pressa de casa e atrasou todos que estavam de carona com o pai. Entrou na sala, sentou, arrumou os cadernos em cima da mesa apertada, guardou uns livros embaixo da cadeira e respirou fundo. Agora começaria a assistir à aula.
- Eliane.
- Sim, professor - desde quando o professor sabe meu nome, pensou ela.
- Pela sua cara vejo que passou a noite estudando.
- Não, dormi mal mesmo.
- Tá irritada?
- Não, professor, tudo bem.
- Então aproveite que está bem e venha ao quadro responder à questão 6.
Ir ao quadro era um terror para ela. Até cogitou a hipótese do sonho ruim ter
sido exatamente isso. Mas pior ainda era ouvir de novo "tá irritada?". Porra,
mas será que por mais que se esforçasse, sempre parecia nervosa?
Terminada a aula, recebe um telefonema de Rafael.
- Bom dia, tchuquinha.
- Oi, môzin, bom dia.
- Tudo bem? Tá com uma vozinha triste.
- Impressão sua, tá tudo bem.
- Mô, tô ligando pra dizer que não vou poder jantar com seus pais hoje.
- Mas tá marcado há mais de um mês, Rafa.
E de repente, como se fosse sugada por um ralo, viu o sonho ruim voltar à sua mente. Via seu namorado com um abadá, abraçado a duas mulheres, uma lata de cerveja em cada mão dizendo "eu falei que comigo era assim. se quiser agüenta." Milésimos de segundos depois, tragada de volta ao telefone, piscou os olhos rapidamente e balançou a cabeça, tentando eliminar a vertigem.
- Porra, Rafa.
- Lili, não fica nervosa.
- Desculpa. Acabei de lembrar do sonho. Foi ruim mesmo. E o que você falou
não ajudou. Posso te ligar depois?
- Credo... não precisa estressar.
- Por que todo mundo cismou que tô estressada? é a terceira pessoa hoje, que coisa. não é estresse. Só preciso me recompor.
- Quem tá calma não precisa se recompor.
- Me ajuda, mô, vai.
- Ajudar a quê? Você tá me maltratando.
- Não tô maltratando, porra.
- Ó, já tá até xingando.
- Falei porra, nada demais, nem é xingar. É que nem poxa, putz, caramba.
- Se é igual você podia ter falado "não tô te maltratando, poxa".
- Rafa, sério, na boa. Deixa eu desligar. Te ligo depois, tá?
- Você tá puta porque desmarquei o jantar, fala a verdade.
- Rafa... Rafa... eu tive um sonho ruim com você e acabei de lembrar, tá? Acordei ruim, cheguei atrasada, fui pro quadro. Só que além de lembrar do sonho horrível que tive, acabei de ouvir de novo que tô estressada. Enfim, preciso respirar um pouco, deixar isso passar.
- Agora tá me culpando? Com todo mundo você foi calma, comigo é que fica dando ataque.
- Que ataque? Do que você tá falando? Tá doido? Não mudei o tom, não levantei a voz.
- Não, Eliane, quem tá doida é você. Tá nervosa comigo porque sua manhã foi uma merda.
- Eu não disse isso.
- Então agora eu também sou mentiroso?
- Não, Rafael, você tá entendo tudo errado.
- E burro também?!
- Melhor não falar mais nada.
- Também acho. Quer saber? Vou desligar e você fica aí pensando no seu pesadelo.
- Mas era isso que eu queria fazer desde o início.
- Então você já tava planejando essa conversa??
- Não, Rafael, eu.... ai, cansei.
- Eliane, quer saber. Se você queria terminar comigo, poderia ter feito ao vivo.
- Rafael, do que você tá falando? Meu Deus, que coisa sem sentido isso tudo
- Sem sentido mesmo. Quer saber? Depois a gente conversa.
tu tu tu tu tu.
Sem conseguir levantar o queixo, Eliane foi caminhando em direção à cantina. Inspirava e expirava lentamente. Decidiu pedir seu suco preferido. Pior não poderia ficar.
- Um suco de maracujá, por favor.
O coração ainda estava disparado, mas se recusava a entregar sua manhã à tanto mal-entendido. Jogou suas esperanças pro suco que logo logo ficaria pronto. Ia até colocar açúcar em vez de adoçante. E no final ia chupar e morder todos aqueles gelinhos, bem devagar, pra ajudar a espantar a tensão e o calor. E quando só sobrasse aquela espuminha no fim, puxaria com um canudinho até fazer barulho. Os outros que olhassem, ela nem ligaria.
- Suco de maracujá é de quem?!
- É meu, meu! - Ela respondeu feliz, quase saltitando, certa de que a salvação do dia estava naquele copo sujo de vidro, onde dois canudos, provavelmente anteriormente usados, a levariam ao nirvana.
- Suco de maracujá é bom pra acalmar.
- An-rã.
- Tá nervosa?
Sim. Agora ela estava.
ilustração: vlad paiva.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
8 comentários:
claro, jonh, vamos lá sim, no seu party poker hahahaha
pô, eu vim toda empolgada pensando "ó! alguém leu meu texto giga!" e era essa pessoa de mentira. saco.
eu li, docinho. e morro de inveja de não saber escrever tanto e tão bem. e reconheci tanta gente nesse texto...
quem não leu é bestão :P
elisa
eu é que queria ter o poder de resumir tanta coisa em poucos parágrafos, que nem você faz.
oba! nesse conversê já se foram 4 comments. valeu, john, por ter iniciado isso tudo.
po, o john é brother, sempre aparece pra ajudar a gente nos números de comentários. e pra chamar pro carteado, claro. :-)
eu ri demais com o texto, lembrei da minha ex. de vez em qd eu fazia isso com ela (sem querer, claro): ficava perguntando pq ela tava brava, e aí q ela ficava mesmo. O.o
beijos
Adorei o texto, tá giga mas tá ótimo ! Odeio quando perguntam se eu to nervosa/triste com alguma coisa. Aí falo "tô não ué", e a pessoa olha com aquela cara de "tá sim, só não quer contar pq". Ô raiva hehehe... Estrelinha tb por ter desenterrado o Ricardo Macchi como sinônimo de inexpressividade ! Beijos !
Nossa... me vi nesse texto! :D
Bjinhusss meninas!
huahuauhauh
tb me vi neste texto!!!
vou mandar o link para todos meus amigos na tentativa de desenhar o q se passa com a gente
bjs gurias
vcs são ótimas
Morri de rir com o diálogo. Sabe por quê? Esse tal Rafael, pelas ações dele, é o tipo da pessoa para sentirmos irrrrrrrrrrrrrrrcccccc!!!!
Hahahahahahaha!!!
Adorei!!!!
Postar um comentário