2.9.08

Onofre


redatorasdemerda.blogspot.com
Nunca saía sem casaco. Mas fazia tanto calor que preferi deixar em casa. Passava os dias na biblioteca. Na época fazia mestrado. Escrevia bonito, rápido. Usava palavras que nem os professores conheciam. Tinha facilidade pra isso. Eu era muito concentrada.

Ia percorrendo aquelas filas de estantes cheias de livros passando as mãos pelas capas. Gostava de sentir a ondulação. Imaginava como cada um deles poderia mudar minha vida de um jeito. De culinária a física quântica.
Mas precisava me concentrar em uma única prateleira.

Do vão central da biblioteca, olhando para a direita, haviam 10 fileiras bem compridas. Eu entrava entre a oitava e a nova. E me sentia entrando entre vértebras de um corpo. Um gigante. No final da primeira carreira de estantes, eu virava à direita e depois à esquerda. Lá estava a minha estante. Letra P. Parava ali, enchia as mãos, os braços, os cotovelos e qualquer dobra mais que pudesse servir de apoio. Ta rindo, né? Hum, espera que tem mais.

Nesse dia, no dia exato em que deixei o casaco em casa, devia imaginar que algo inusitado me surpreenderia, além de uma gripe ou uma chuva. E aconteceu. O celular tocou quando eu passava em frente à letra J. Eu jamais esquecia de colocar no vibra. De repente, do meio de um pequeno vão entre as estantes, surgiu um moço com o indicador rente aos lábios contraídos, pedindo silêncio. Acho até que ele treinava para as olimpíadas, porque foi rápido à beça. Só não me assustei mais com ele do que com a notícia que recebi. O moço da van, que me buscava todos os dias, pontualmente às 21h30, tinha sofrido um assalto. Bateram nele e roubaram tudo. Incluindo a van.

Minha concentração ficou completamente comprometida. Tentei pelo resto do dia enfiar as frases dos livros na minha cabeça. Mas nada fazia sentido. Nada se amarrava. Mas logo o seu Onofre. Senhor branquinho, olhos cansados, pançudo, costeletas grisalhas emoldurando um cabelo tingido de preto, que ele mesmo fazia questão de ridicularizar.
- Tem que se cuidar, a clientela gosta de um motorista bonitão.

A aparência ligeiramente bruta e oleosa enganava quem julga um livro pela capa. Era doce, educado e gentil. Pensava na família do seu Onofre, se ele sairia no jornal, se algum dia escutaria Amado Batista novamente no caminho de casa.

O dia rendeu meras 13 linhas. 13. E só a fome me despertou para a hora. 20h30. Poucos ônibus passavam por ali. Juntei tudo como pude e corri para tentar pegar o das 20h35. 13 linhas. Chovia e fazia frio. Que falta fazia meu casaco. Decidi correr, ainda que escorregando. O caminho que levava para fora da biblioteca era longo. Um gramado com poucas árvores cercava um pequeno e estreito caminho de paralelepípedos. Alguns postes de luz amarelada iluminavam as raras pessoas que passavam ali.

Chegando ao cruzamento, abusando de meu equilíbrio sobre as pedras deslizantes, parei repentinamente. Parado, logo na ruazinha que escolhi pegar, o moço do celular. Sorri pela coincidência. Dois sustos em um só dia. Ele tinha talento pra isso. E achei que finalmente uma coisa interessante poderia salvar o dia. Mas ele não devolveu o sorriso. Na verdade, ele continuou sério. Muito sério. Senti um arrepio na espinha, desses que sobem até o cérebro pra avisar que tem algo errado acontecendo. Tomei Impulso para continuar a corrida, mas quando passei do lado do moço, senti algo freando meu corpo, como um cinto de segurança durante uma batida. O impacto fez com que eu fosse projetada pra trás. Senti a pancada da cabeça atingindo o chão, mas nenhuma dor. Apenas uma pressão forte.

Sem conseguir reagir, notei que estava deslizando pelo chão, como alguém boiando em uma piscina, num dia de sol. Sentia agora as gotas retidas na grama úmida penetrando minha blusa fina. Folhas finas me cortavam bem de leve. Só então entendi que algo me puxava pelos cabelos. Mas o zunido no ouvido ainda deixava dúvidas de que eu estava acordada. A certeza veio quando uma mão enorme tapou meu rosto com força. Em seguida, um corpo tapou o meu. Tentei achar alguma força, um reflexo qualquer que me fizesse levantar rápido e correr. Não encontrava nada. Estava presa dentro de mim.

Enquanto uma das mãos continuava segurando minha boca, a outra abria minhas calças e lutava contra o atrito do corpo, para baixá-la o mínimo possível. Tremi nessa hora. E foi o máximo de reação que consegui. Um tapa
na cara nem teria sido necessário para me acalmar. Na pressa em rasgar minha calcinha, ele machucou a lateral do meu quadril com a força do tecido sobre a pele.

Dentro de mim ele se descontrolou. A palma da mão escorregou sobre meu rosto e fez com que a cabeça toda girasse para a direita. Via um poste um pouco adiante. Dava pra ver uma chuva fina cair através da luz. Enquanto meu corpo todo era arrastado para frente e para trás, tentava contar quantas gotas caíam. Uma...duas... três... mas então, uma dor tão grande submergiu,
que perdi as contas. Meus sentidos estavam voltando apesar do zunido não passar. Agora não conseguia mais negar. Algo estava me invadindo, me rasgando de forma seca, ardida. Senti nojo e um grito escapou. Um outro tapa me calou, mas agora eu chorava. O choro saía baixo, entre o indicador
e o dedo médio dele. O mesmo indicador me silenciando novamente.
O vento batia nas lágrimas e sentia meu rosto congelando.

Enfim, ele parou. Senti calor por alguns segundos. E um certo alívio por tudo ter acabado. Da mesma forma como ele me derrubou, me abandonou.


Durante os dez meses seguintes, eu repassava a minha rotina naquele dia. Imaginava tudo que poderia ter feito de diferente. Deveria ter voltado pra pegar o casaco. Deveria ter entendido o azar por trás das 13 linhas. Deveria ter ido visitar seu Onofre. Deveria ter voltado mais cedo. Tentava achar motivo, explicação, qualquer coisa que trouxesse algum conforto. Não deu certo.

A depressão me fez esquecer de tudo mais. Larguei o mestrado, não fui à polícia, não fiz exames. Achava que se tivesse pegado qualquer doença seria abençoada. Com sorte morreria. Mas sobrevivi. Seu Onofre não. Irônico, né?

Eu sei que você não está entendendo nada do que eu falo, Onofre. Até riu nas partes tristes. Mas eu me sentiria mal se nunca te contasse a verdade, ao menos uma vez na vida. Não sei se você entenderia minha escolha. Eu mesma não entendi. Acho que estava tão apática que só me restou deixar acontecer. Vou te amar se você também prometer me amar. Acho que a gente pode tentar né? E até conseguir. Mas quando você crescer e perguntar como conheci seu pai, desculpe, vou mentir.


ilustração em www.vidabesta.com

30 comentários:

Darshany L. disse...

O que eu adoro nesse blog é o fato de começarmos o texto achando uma coisa, e ele terminar totalmente diferente. Os rumos que as histórias tomam são incríveis.

^^

Unknown disse...

como eu adoro os textos de vocês...
é incrível como vocês sempre escrevem histórias ótimas conduzidas de um jeito tão próprio.

parabéns, meninas!

Tatiana disse...

do caralho!

Anônimo disse...

oO

Helen Pedroso disse...

Muito bom, como sempre!! Os textos estão bem diferentes daqueles lá do início do blog, não é? Eu acho ótimo pois, apesar de ter quase me acabado de rir várias vezes com "tortura moderna" e outros tantos, penso que em time que está ganhando se mexe sim! Para melhor!

beijos, meninas!

Giovana disse...

Vocês escrevem de uma maneira muito louca. No início achei que iria rolar um romance. O acidente com o vovozinho seria só um detalhe. Depois, senti o horror da agressão e, por fim, uma sensação de angústia... e ainda a surpresa pela homenagem ao Onofre. Maravilhosas, vcs!!

Aline Monteiro disse...

Oi! Tô viciada em vocês há algum tempo. Textos perfeitos, de fato!

figbatera disse...

Muito bom mesmo; tb sou viciado em vocês...
Parabéns!

Dedinhos Nervosos disse...

Nossa... pra variar, mais um texto que tomou um rumo surpreendente... assim como a vida. Bjos.

Izaias disse...

caramba!
muito bom mesmo!
parabens pelo estilo e o otimo estilo!
=D

Anônimo disse...

Fiquei chocada com esse texto!
Adoro o blog de vcs!!!!
Parabéns!

mim disse...

Muito bom, como todos os anteriores.

Kakaya disse...

Nossa!Terrívelmente maravilhoso!rs!

Anônimo disse...

Simplesmente fantástico docinho. Como pode? Você tem que ser milionária. Como pode?

Beijos.

Fernanda disse...

FODERÁSTICO!

Mariana Anselmo disse...

que lindo!
tão intimo.. confessional. parabéns!


"Usava palavras que nem os professores conheciam." não pooode, moça! rs como diria o professor Fábio Maline, tem que escrever pra vovó entender! rs

beijo

Day Alves disse...

Também to viciada há um tempão nos textos de vcs!Sempre to de olho pra ler algum novo e sempre me delicio com todos.
Esse foi chocante e lindo!
Parabéns!

Lari Bohnenberger disse...

Nossa!
Excelente texto! Chocante, pesado, mas ao mesmo tempo doce!
Adorei!
Bjs!

Carol disse...

Passando pra conhcer o Blog!
ADOREI!!!! =D
;**

Anônimo disse...

Vocês arrebentam, mocinhas! Vida longa e muita inspiração, sempre!
Abraços do Sall
www.blogdosall.wordpress.com

Anômima disse...

Nossa... estou sem palavras. Mais um ótimo texto, para variar.

Marcos disse...

Genial.

Lia Drumond disse...

Nossa, surpreendente mesmo. Adorei! Bjs

Anônimo disse...

nossa, esse revirou me estômago. desde o começo senti q alguma coisa vinha para derrubar aquela simplicidade, mas não consegui me preparar para o tapa.
ótimo texto.

e desculpa a demora.
=)

beijos

Anônimo disse...

aos quarenta e cinco minutos desta madrugada sem sono, tive o presente deste sobressalto.... ler e me envolver no conto a ponto de sentir o frio da chuva fina e o ardido do tapa. logo eu que não quis ver onofre...

Anônimo disse...

Adorei! Angustiante, surpreendente, emocionante.
Senti um pouco de Almodovar neste texto. Parabéms!

brunopossidonio disse...

confesso que tive que reler para compreender, mas como eu esperava, foi surpreendente, assim como todos os outros.

ótimo

Anônimo disse...

Gostei muito do texto.
"Sobrevivi" - a gente nunca sobrevive, a gente continua vivendo. Beijos.

Shirley de Queiroz disse...

O que eu acho mais legal é o fato do texto ser escrito em primeira pessoa. Num blog, a gente espera confissões e, assim, fica tudo mais íntimo e real.

woo... disse...

gostei muito do texto, na verdade de todos que eu li, minha prima me falou hoje do blog e nao consigo parar de ler. nem quero. transformador mesmo. valeu!