14.12.08

Alceu



Era difícil de acontecer, porque ele odiava quando acontecia. Mas sim, chegou atrasado ao cinema. Atrapalhado entre pegar a carteira, falar com a mocinha da bilheteria, segurar o milk-shake de quase mil calorias e umas coisas boas crocantes dentro, ele pediu:
- Queime depois de ler, sessão das nove.

Entrou na sala correndo e viu alguns lugares vazios no meio das carinhas mal iluminadas pela tela. Foi examinando uma a uma com cuidado para escolher um vizinho perfeito: um com cara de mudo. Durante a busca, viu uma silhueta interessante. Ficou concentrado esperando um flash de luz branca sair da tela pra acender o rosto.
- Puta merda, falou sem conter a boa impressão.

Em vez de se sentar, ficou ali com uma tremenda cara de besta que, por sorte, a escuridão escondia. Ela estava sozinha, na terceira fileira de trás pra frente, na poltrona bem do meio. De um lado, um casal, uma cadeira vazia e ela. Do outro, um rapaz solteiro, um espaço e ela. Não era possível que ela estivesse sozinha.
- Ô, meu filho, tu não é transparente não.
Precisou do grito pra se dar conta que estava em pé fazia mais de um minuto, encarando a menina. Sentou ali mesmo, na poltrona do canto da fila e continuou analisando a situação. Ela tinha lábios grossos, mas nada exagerado, um nariz levemente batatinha que combinava com um queixo proeminente e uma estrutura óssea perfeita do rosto.
- Estrutura óssea perfeita, repetiu baixinho.
Ah, se um amigo escutasse essa viadice.
Ficou intrigado com o fato de ninguém ter sentado ao lado dela. Será que cheirava mal? Vai ver tinha chiclete na cadeira vizinha. Mas eram duas vazias, uma de cada lado... ah, claro! Deviam ter bolsas ocupando as cadeiras. Ou de repente alguém derramou alguma coisa. Sorvete. Ou alguém limpou a mão cheia de gordura de batata-frita. Ou podia ter uma criança, claro. Mas a censura não permitia crianças ali. Um anão, isso, um anão. Que idéia imbecil.
Ele tinha que ir. Tinha que perder a vergonha que sentia quando passava na frente de uma fileira de pessoas, obrigando todos a dançar balé pra levantar as pernas e dar espaço. Fora que tinha pânico de ser atingido com pipoca babada, cuspe, ou um grito ofensivo qualquer. Começou a planejar cada passo. Como passaria por cada pessoa da fileira. Mas aí foi interrompido por uma voz.
- Dá licença?
Nem teve tempo de pensar. Um casal passou por ele, chegou até a silhueta ossuda, pediu que ela pulasse uma cadeira e se acomodou.
Pensou que era melhor assim. Pelo menos ia conseguir ver o filme.
Saindo de lá foi encontrar o Armando no Furinga.
- E o filme, bom?
- Foda. Mas perdi o começo.
- Chegou atrasado?
E contou tudo.
- Porra, bicho. Mas tu é uma besta mesmo. Vai ser racional assim na casa do caralho.
- Você me conhece, Armando. Eu estava planejando tudo.
- Planejando nada. Você estava é se cagando de medo.
- Mas você não sabe de tudo. Eu esperei ela na saída.
- Todo cagado?
- É sério, cara. Esperei e perguntei se ela gostou do filme.
- E ela?
- Disse que não.
- E você?
- Eu falei assim: foda-se.
- Foda-se? Foda-se? Você virou e disse foda-se?
- É, virei e disse. Porra, o filme era foda.
- Alceu, você é doente.
- Cara. Se a mulher não gostou de Queime depois de ler, não vai ser mulher pra mim.
- Tu é um medroso. Só uma inflável pra aguentar você. Aliás, tem um site legal aí se você quis...
- Ah, dá um tempo, Armando. Não é isso. Eu só acho que a coisa tem que ser perfeita pra acontecer.
- Deve ser por isso que nunca acontece nada bom na sua vida.
- O filme era bom.
- Você lia historinha da Disney quando era uma menininha? Porra, que papo de princesa. Eu fico pensando se você é um romântico imbecil ou um cara que pensa demais. Imbecil também. Tua vida é que nem a sessão de hoje. Você fica olhando o que tá acontecendo de bom em volta, lá do canto, deixando todo mundo passar por cima de você.
- Mas pense por um outro lado. Quando acaba a sessão sou o primeiro a sair.
- Peraí, peraí. Então você chega pensando na saída?
- Precaução.
- Ah, cara. Morre logo então. Ou então bebe, vai. Você fica legal quando enche a cara. Ô, Moreira. Traz uma dose daquelazinha pro Alceu.
- Ô, Moreira! E traz também o Engov. E uma água.

17 comentários:

Darshany L. disse...

lembrei que quero muito ver esse filme!

Escrevendo na Pele disse...

Ihhh, acho que vou ver também! rsrsrsrs

Thales Rafael disse...

Belíssimo texto. Simples na medida exata de sua profundidade. São aqueles momentos que só nós temos dimensão do significado. Momentos em que os outros só conseguem articular um "- Ô, meu filho, tu não é transparente não". De repente inúmeras sessões de cinema como essa emergiram em lembranças na minha mente. Fantástico.

Sem contar o humor, ao mesmo tempo refinado e cotidiano, presente no decorrer do texto. Adorei. Ganharam um leitor assíduo. Ótimo blog.

Dedinhos Nervosos disse...

Pra variar, outro texto ótimo e que retrata muito a busca pela cia perfeita... que acho que não existe! rsrs
Bjos!

Anônimo disse...

Mais um, muito bom. Comentar mais seria estragar...

Manu Negri disse...

Iiiih, esse Alceu tá me lembrando muito alguém que eu vejo quando passo na frente do espelho.

Paulo Bono disse...

Alceu ou Paulo Bono?
bem, só sei que esse filme é de fuder.
texto divertido. novamente.

abração

Daysinhaa disse...

Leitora nova no blog *_*
e só tenho a dizer que minha visita aqui, é obrigatória agora que descobri o blog xD

Todos os textos são ótimamente bem redigidos e não tenho do que reclamar, o da TPM sem dúvidas foi um dos que mais gostei até agora, me imagino na situação =D

Bjos
Dayse

Bianca Azenha disse...

Bom, quero presentar o blog com um selinho! É só passar lá no meu para pega-lo! oks? Beijoos

Flavs disse...

Ah... agora sim! Posso comentar! :)
Adorei! O Alceu podia se chamar Rui... hehehe
Beijo

Anônimo disse...

Muito bom, muito bom. E a partir de agora, Alcina (é o feminino de Alceu?)é meu nome... rs.

Anônimo disse...

Putaquepariu! Simplesmente perfeito! Como pode vocês não serem milionárias! Sou fã de vcs, docinhos!

:****

Beijão.

ps.: Vcs são de que canto do Brasil?

Anônimo disse...

excelente!!! :)

Anônimo disse...

to com o alceu e não abro.
não gostou de filme bom, ou dormiu no cinema, é meio caminho andado pra não dar certo.
racionais extremistas, uni-vos.
hehe

Anômima disse...

Eu costumo ir ao cinema sozinha, mas nunca fui abordada. Ah, e gostei muito de Queime depois de ler. Coen Brothers rock!!!

Anônimo disse...

Adorei o blog, muito legal.

Sobre a postagem. hahaha baseado na vida real. Tem algumas situações com as quais me identifiquei. Melhor deixar quieto.
O texto é superdivertido, começa com um tom cômico misterioso, e termina total drunk comédia. Adorei a frase que fechou com chave de ouro "- Ô, Moreira! E traz também o Engov. E uma água. "

Hehe
Tentarei passar por aqui mais vezes.
Até mais
Ótimo 2009
^^

Aline Pedro disse...

Bom, eu não assisti esse filme justamente por ser dos irmãos Coen. Vi "Onde os fracos não têm vez", deles também, e odiei, Até hoje não entendo porque ele ganho o Oscar e porque chamam aquilo de filme cult. Francamente, eu faria cem vezes melhor e mais cult, sem nem entender de cinema.
É daqueles filmes que você sai do cinema pensando: "O que eu estou fazendo aqui? Quanto tempo perdido".
Mas gosto é gosto, tipo bunda, cada um tem a sua devemos respeitar. Aliás, se fosse "escolher" alguém para ficar comigo pelos filmes que gosto nunca ia achar alguém, afinal, ninguém tem um gosto igual ao do outro.
Os textos desse blog são muito divertidos!!! Estou adorando!!!