24.4.09

Ser homem

- Você é homem ou o quê?
O grito desafiador veio acompanhado de vaias e mais provocações, que
apenas a intervenção da diretora conseguiu calar.
Duda não respondeu o ruivinho encapetado, que de outros anos já
tentava tirá-lo do sério. Mas também não se mostrou de todo
amedrontado. Manteve a cabeça erguida, o maxilar tenso, com a mordida
forte e o punho cerrado. Não correu, não olhou para baixo nem para os
lados. Esperou que a agressão verbal se tornasse física, mas isso não
aconteceu.

A chegada de Dona Elvira acalmou os ânimos.
- Duda, não caia na besteira de comprar briga com o Eric. Você é um
menino direito, suas notas são uma maravilha.
- Eu não falei nada, Dona Elvira. Eu só fiz um gol, só. E ele, ele
disse se eu era homem ou quê. Quis me bater.
- Passou. Volta pra aula que o sinal já bateu, vai, se apresse.

A aula acabou, mas Duda não tirava a história da cabeça. Em casa, a
empregada, dona Marli, notou a aflição do menino, que tentava, mas não
se concentrava em nada. Sentou na frente da TV, mudou de canal várias
vezes até desligar de vez o aparelho. Tentou jogar playstation. Na
primeira derrota, desistiu. Foi beliscar um pouco do bolo de laranja,
depois tentou novamente ligar a TV. Devagar, ela foi chegando perto,
fingindo que passava um pano aqui e ali.

- Duda, levanta o pé por favor, pra eu limpar a poeira do tapete?
- Tá.
- Você tá bem?
- Um menino quis brigar comigo hoje. O Eric. Ficou berrando na frente
de todo mundo que meu gol não valeu, que eu sou pereba, que nem devia
estar jogando com a 7ª série, porque sou da 5ª.
- Não dá ouvidos, Duda.
- O que quer dizer você é homem ou o quê?
- Ele disse isso pra você?
- Disse sim. Ele acha que eu sou bicha, Marli?
- Não, Duda, nada disso. Ele quis dizer assim: você é homem ou você
não quer brigar? Você vai ser machão ou vai fugir? Mas você foi
esperto, aposto.
- Não fui... eu fiquei quieto, nem reagi.
- Então. Você foi esperto. Burro ia ser se caísse no conto dele.

Com medo de um novo confronto, Duda largou o futebol pra lá por duas
semanas. Mas a pergunta não largou ele. Era homem ou quê, homem ou o
quê? Sabia pouco da vida. Sabia por exemplo que não queria brigar, que
achava essa ideia ridícula e que apanharia feio se topasse a rinha.
Não se sentia de todo covarde, porque já havia brigado antes. Mas por
um motivo diferente. Primeiro quando uma menina tentou roubar o lugar
de uma garotinha na fila do escorregador. Ele foi defendê-la e tomou
um soco. Mas devolveu o gesto com um empurrão que fez a fila
aplaudi-lo e os pais intervirem. Depois, quando viu um garoto
maltratando um gatinho. Nem chegaram a ter um diálogo. Duda partiu pra
cima sem pensar duas vezes.

Isso tudo fazia ele pensar que não era um cagão. Pensou em conversar
com o pai, mas não imaginava que reação ele teria. Será que sentiria
orgulho ou se decepcionaria? Os dias se passaram, mas a reflexão
imatura e crua sobre masculinidade percorria tudo que Duda pensava e
fazia. Será que usar vermelho é coisa de homem ou o quê? Gostar da
menina da 5ª B, mas não se declarar era ser homem ou o quê? Ficar
emocionado quando vê um filme que gosta muito é ser homem ou o quê?

Até que um dia, ele resolveu tudo. Acordou inspirado e mais seguro de
quem realmente era, na medida em que alguém pode se conhecer aos 10
anos. Procurou Eric na hora do recreio, parou na sua frente, fez cara
de mau e disse:
- Eu sou o quê.
Eric não entendeu patavinas. Mas Duda sim, entendeu que nem sempre ser
homem é uma coisa tão idiota quanto fazem parecer.

ilustra de galvão em www.vidabesta.com

37 comentários:

Dedinhos Nervosos disse...

Ahhhh, que orgulho desse Duda. Mas infelizmente nem todos pensam assim. E nem todos são criados assim, ou possuem temperamentos pacíficos. A maioria prefere demonstrar ser homem no braço. Uma lástima. Amei. Beijos!

Elisa Quadros e Valeria Semeraro disse...

por isso demorou. porque um texto bonito assim precisa ser elaborado e esperado. lindo, docinho. fino.

beijos,

elisa

Careca disse...

Belo texto. Meninas ainda negociam, mas entre meninos, só funciona a Lei de Talião.

Fabianny de Alencar disse...

Perfeito. Parabéns!

LucianaM. disse...

Parabéns meninas! Muito bom!
Abç

Anônimo disse...

Puta merda!!! Vocês são foda!!! Conseguem exprimir o que todo menino sente quando é pequeno.. E o que me assusta é que você são meninas!!!

Masao Yogi disse...

É... quando se é criança, a lei dos mais fortes sempre pravalece e até você entender que no mundo em que vivemos nem sempre isso é uma vantagem, você acaba por levar alguns supapos. Mas todo menino cresce, e ponderando sobre filmes americanos, quem sabe um dia o Duda naum fosse virar patrão do Erik né?
texto muito bem escrito! Parabéns!

Wanessa B. disse...

eu adimiro tanto vcs *_*
espero um dia poder escrever assim!

Anônimo disse...

Você é um homem ou um macaco ?

Bel Lucyk disse...

Adorei!
O Duda é um querido! Um pouco lento, mas querido! E sim, ele é homem!
Beijos

Lucas disse...

Saber o que se é. Nunca a gente sabe bem.

:)

Márcio Lima disse...

Lindo texto, emocionante. Pus meu blog lá como seguidor do seu. Posso postar este conto lá?
Obrigado.

milenamb disse...

ai que texto excelente! uma historia fofa de um menino que vai crescer sabendo o que quer.
beijos

Paulo Bono disse...

Bacana. Aliás, histórias sobre a infância são sempre bacanas.

abraço

Ângelo disse...

Fantástico texto.

Gosto MUITO de tudo o que é escrito por aqui. Também escrevo contos, crônicas e afins. Dêem uma passadinha lá assim que puderem, no meu blog.

PARABÉNS mais uma vez.

Vanessa Ornella disse...

Lindo conto, lindo Duda, lindas vocês. Obrigada por mais este.

Geise Coelho disse...

hahaha, que ótimo!

Anami Brito disse...

Muito bom este conto de vcs meninas!Mais uma vez parabéns!Duda é um verdadeiro exemplo das dúvidas que nos cercam não só na infância, mas na vida.

elisa raquel disse...

foda. foda. foda.

R. paschoal disse...

ele deu um belo "foda-se" paraa hipocrisia mirim que reina nos colégios. É nessa idade que se constrói aquela síndrome do machão, que precisas estourar a champagne, acelerar o carrão e pegar muitas garotas para comprovar sua masculinidade, quando para ser homem basta ter inteligência e barba por fazer... rs

Leci Irene disse...

Bom dia! Amei...
Se fôssemos como Duda... parar e refletir para descobrir...
Isto faz falta.
Beijos

Mônica disse...

Gostei do texto........

.:: lullaby ::. disse...

ameeeeeeei o blog aaaaki 'o' ,
dexa o meeeeeu no chinelo ! UHSAUH
Beeeeijo ;***

vander disse...

ameiiiiii!!!!

Nathália disse...

Ótimo!

R. paschoal disse...

Li de novo, porque é muito bom!!!

ADORO O BLOG!

Rodrigo Artur Nascimento disse...

Estava de bobeira procurando algo bom pra ler, encontrei.

Eduardo Martins disse...

Pois é, ainda fazemos algumas manutenções do HOmem primata.
abraço

Lucas disse...

E o próximo?

:)

Mercedes Gameiro disse...

Valéria,

Eu sei bem o quanto dói ver um texto perdido por aí, com autores inventados...isso quando não são "editados" para pior!

Eu nunca publico nada que não seja meu nos meus blogs, mas aquele texto MERECE!!!

Beijos

DOIDINHA DA SILVA disse...

Meninas,que texto lindo !
Vou mostrar pro meu filho de 13 anos que esta semana recebeu uma provocação deste tipo , só porque não quis matar aula....
É a cara dele isso. Terapêutico..

Lari Bohnenberger disse...

Ah, que amor!
Adorei o Duda!
Bjs!

Anônimo disse...

Sumiram????????? :((((

Passarinho disse...

Eu sou o quê tbm.
Adorei encontrar esse blog, vejo um curta em 'Puta sorte', se rolar te aviso :)

Ran Omelete disse...

Se eu fosse o pai do Duda, diria o seguinte:

- Meu filho, quando esse tal de Eric... é esse o nome dele? Ah, coitado... Mas enfim, quando esse garoto disse "homem", ele estava na verdade usando um conceito que tem em sua definição a marca de que "todo homem briga". Ou seja, quando ele o chamou para briga, e você hesitou por um instante, ele mesmo entrou em conflito, julgando que você não se encaixava no conceito de homem. No entanto, esse conceito é uma ficção, meu filho. Esse "homem" não existe. É apenas uma abstração cujo único fundamento é uma visão retrógada do que era tido popularmente como ser homem. O que existem são indivíduos. E não importa o que digam de você, meu filho, você sempre será para mim o meu filho.

- Entendi... Obrigado, pai.

- Mas da próxima vez você dá um gancho de direita nele, assim, ó, assim.

Acho que eu não seria um bom pai.

Anônimo disse...

Acompanho blog de vcs a um tempo e a cada dia me assusto mais.

MTO BOM, PARABÉNS!

Bruno Reis disse...

duda é o quê?
o quê.
quê?
dã.
massa o texto. eu também evitava as brigas no colégio sendo "o quê". e nunca me dei mal com isso, nunca fui do bando dos zoados, sempre fui da turma neutra, que zoava, era zoado, mas tava tudo bem. assim é melhor, né?

beijo!