3.6.06

A difícil arte de ser simples


Por um momento pensou em chamá-la de alma gêmea. Desistiu. Não queria rebaixá-la a alma gêmea de alguém tão imperfeito.
Ele tão bruto, tão cru. Não sabia esconder seus sentimentos. Eles vinham à tona de um jeito descontrolado. Que nem soluço. Jurava para si mesmo que tentaria ser mais discreto. Incomodava o fato de ele ter as emoções que sentia por dentro sempre estampadas no rosto. Queria saber mentir, ou simplesmente disfarçar, mas nem isso conseguia. Acreditava que essa transparência era uma qualidade, mas desejava aprender a controlá-la. Era incapaz de engolir certas angústias. "Melhor assim", dizia a mãe dele. "Engolir frustrações pode até dar câncer". Ela não imaginava o quanto ele gostaria de correr o risco.

Sentia-se um louco quando, diante da mulher que tanto amava, tinha ataques aparentemente infundados. Experimentava tudo com tamanha intensidade que na adolescência, cercado de espinhas e ignorância, pensava se não era gay. Um homem pode ser assim, tão sensível a tudo? Chegou a considerar a hipótese de ser evoluído demais. Ou ao menos de estar um passo acima da humanidade na escala da evolução. Porque via os pormenores de tudo, ia além do que qualquer um poderia ver. Nada era o que parecia ser. Cansado da teoria darwiniana partiu para a da loucura. Estava convencido de que era doido, maluco mesmo. Que dava proporções absurdas a qualquer coisa.

Estar ao lado dela era a prova maior de que sua mente funcionava de forma misteriosa. Ela sempre calma. Demonstrava algumas inquietações. Mas não chorava diante de pequenos imprevistos ou quando algum programa de TV mostrava dois irmãos se reencontrando depois de anos. TPM, rompantes, ataques. Nada disso acontecia com ela. E quem poderia culpá-la? Apenas invejá-la pela simplicidade com que encarava tudo. Sim, poderiam acusá-la de ser superficial. Pura inveja. Quantos como ele, que não só vêem beleza na tristeza, como gostam de degustá-la, não sonhavam em conseguir ser como ela? Não complicar a vida. Não ter que disfarçar o que sente porque simplesmente não sente. Não se sentir refém de qualquer emoção vagabunda. Não ter medo de se arriscar por desconhecer o tamanho do tombo que pode levar. Não questionar o quanto se é capaz, não se comparar a outros. Apenas fazer o que acreditava fazer bem. Não precisar sofrer, cair, apanhar pra conseguir ver graça em piadas bobas ou comédias românticas.

Ele a admirava. Lutava pra tentar chegar perto do que ela era. Mas sempre que se via diante uma situação em que perdia o controle de suas lágrimas, percebia que nunca conseguiria. Aquilo era sua natureza. E aquilo um dia, ainda acabaria com tudo.
E de fato foi isso que aconteceu. Ele terminou. Não suportava mais tentar entender por que ela o amava e como eles davam certo apesar de tão diferentes. Pensava tanto que não tinha tempo de ser feliz. Que estúpido.

Ilustração: Paulo Prot
http://deliriumtremens.zip.net

5 comentários:

Anônimo disse...

Very pretty site! Keep working. thnx!
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Elisa Quadros e Valeria Semeraro disse...

Eu, hein

Anônimo disse...

(ótimo o comentário anterior)

Ah, se a vida fosse tão fácil quanto a gente sonha, e tão prazerosa quanto a gente tenta que seja...

Anônimo disse...

Ler a alma do passado da gente é estranho. No entanto, fácil, quando a vemos descrita num texto amigo - e muito bem escrito, vamos considerar : )
Monia

Anônimo disse...

Engraçado como no começo do texto eu achei que você estava falando de mim (rsrsrsrs) e depois não tinha mais nada a ver comigo(hahahaha). Desculpa o comentário tanto tempo depois do texto, mas estou lendo todos e me divertindo muito.