Nasceu normal, com todos os dedos do pé e todos os dedos das mãos. Dois ouvidos, dois olhos, um nariz e uma boca. Fizeram todos os testes: bateram palmas pra ver se ela se assustava, deixaram-na sem ar pra ver se reagia, furaram seu pezinho para fazer o famoso exame. Tudo em ordem.A família respirou aliviada, tinham um bebê perfeito. Até os seis anos tudo correu muito bem. Brincava na rua com as outras crianças, caía, se machucava, voltava pra casa chorando igual a qualquer um da sua idade. Chegou a hora de ir para a escola. A babá prendeu seu cabelo com duas chiquinhas vermelhas, o uniforme estava impecável, camisa branca e saia-calça xadrez pregueada. No caminho até a escola começou a sentir que um bico tomava o lugar da sua boca. A testa franziu. Quem sabe pressentiu que sua vida iria mudar a partir daquele momento? Não, não seria a escola, a turma, os professores, as notas, as provas os culpados pela mudança em sua vida. Como você vai ver mais pra frente, o destino lhe pregaria uma peça. Nada demais, coisa pouca. Mas, sem dúvida, um incômodo para toda a vida. E até mesmo em sua morte.
Na hora de ir para sala de aula, não quis entrar de jeito nenhum. Agarrou a perna da mãe e começou a berrar. Dentro da sala os amiguinhos formavam uma fila e a professora tentou ser simpática:
- Venha com a titia, você vai ser a primeira da fila.
E lá foi ela, convencida pelo argumento que mexia com sua vaidade, ficou orgulhosa por ser a primeira. E nunca mais saiu do primeiro lugar. Não no sentido de ser a melhor mas sim porque parou de crescer. Começaram os apelidos e chaveirinho era o mais agradável deles. Teve que aprender a lidar com a situação, mas nem sempre foi fácil. Passou pela raiva, pela tristeza, pela depressão, pela irritação e por fim, pela resignação.
Ficou tão pequena que para ir ao salão de beleza tinha que levar sua própria almofada senão era impossível lavar o cabelo naquelas cadeiras onde se encaixam o pescoço. Até os dezoito anos, passava por baixo da roleta do ônibus e sempre davam desconto na sua passagem de avião. Chegou a hora de tirar carteira de motorista, mas teve que desistir, sua perna não alcançava o acelerador. Na boate, o barman se recusou a entregar o drink que ela pedia berrando com a identidade na mão. E teve um dia que não agüentou mais de tanta humilhação. Era o coquetel da empresa onde trabalhava, iriam lançar um empreendimento que mudaria o mercado. No meio da festa, depois de conseguir alcançar a bandeja de bebidas, tentou circular para ver se encontrava o rapaz que trabalhava no telemarketing e, segundo ouviu falar, não passava de um metro e sessenta. Enquanto procurava, sentiu uns tapinhas de leve na sua cabeça e viu que uma mulher muito, muita alta se curvava para falar com ela:
- Tá perdida? Quer que eu ajude você a encontrar sua mãe?
Sentiu o sangue subir rapidamente, coisa que era simples devido ao seu tamanho. As pupilas dilataram, a garganta secou e a boca se preparou para soltar seu insulto preferido:
- Vai tomar no... – desistiu de xingá-la e percebeu que pelo tamanho daquela enorme mulher, ela também deveria ter tido alguns inconvenientes na vida. Como consolo, pensou que pelo menos ela iria para a noite de núpcias nos braços de alguém, ao contrário da moça gigante. Virou-se para sua nova amiga e perguntou:
- Será que você pode me ajudar a encontrar uma pessoa?
Com a ajuda da grandona, achou o amor da sua vida, se casou, teve filhos, netos e, inevitavelmente, chegou a hora da sua morte. E pelo seu pouco tamanho, a funerária recomendou um caixão de criança, que era mais barato inclusive. O marido quase se convenceu, mas sua amiga grandona lembrou: ela não abria mão de ser enterrada num caixão três vezes maior que seu tamanho. E assim foi feito. Uma vez na vida, ou melhor, na morte, ninguém reparou no quanto ela era pequena.
Ilustração: Claudio França





