O despertador tocou, como tocava todos os dias. Eram seis da manhã. Demorou a abrir os olhos. Queria segurar o sonho nas pálpebras ainda fechadas. Havia um gramado, toalhas quadriculadas com cestas de vime sobre elas. Era um parque na verdade. Ela andava numa bicicleta rosa, com uma cesta cheia de girassóis. Olhou então para trás. Falava com alguém, mas não via o rosto. Apertou mais os olhos na tentativa de enxergar quem era, até sentir as órbitas recuarem. Não adiantou. Abriu os olhos então, já cansada de mantê-los cerrados. Eram seis e quinze.
Levantou devagar. Precisava chegar ao trabalho apenas às nove, mas gostava de fazer tudo no seu tempo. Foi direto ao banheiro, fez um xixi demorado e continuou sentada na privada um pouco mais, tentando lembrar do sonho. Fechou os olhos e com eles assim mesmo, esticou a mão e alcançou o papel. Levantou-se, lavou o rosto e passou bem o sabonete, para eliminar qualquer resquício de creme. Tratou de enxugar cada gotinha, pois o vento frio fazia qualquer pingo congelar todo o corpo. Seguiu para a cozinha, preparou um café da manhã digno de hotel chique. Até ovos mexidos, que ela nunca comeu no café, preparou. Chá, leite, queijo branco, requeijão, manteiga. Abriu a geléia de pêssego caríssima e os biscoitos suíços amanteigados. Afinal, o que ela estava esperando para abri-los? Usou a toalha de mesa que só usava em festas, pegou as xícaras de porcelana, os talheres de prata e os guardanapos de pano.
Olha para o relógio. São seis e quarenta. Ela sorri diante da mesa arrumada. Faltava só mais uma coisa. Flores. Acelera o ritmo e corre para o banho. Em dez minutos já está vestindo um moletom e um casaco. Segue em passos acelerados até a esquina e compra as mais lindas tulipas que já viu. Volta feliz, sentindo o sol que batia em seu rosto camuflando o vento gelado.
Chega em casa e assenta suas tulipas num vaso de cristal abandonado. Decide então que é hora de acordá-lo. O quarto ainda estava escuro. Ela vira as persianas levemente, deixando as paletas em posição vertical. Uma luz ainda fraca entra pela janela. Senta ao lado dele devagar e se abaixa até aproximar os lábios de seus ouvidos. Canta sua música preferida bem baixinho e ele abre um sorriso, antes mesmo dos olhos. Ela diz que preparou um café especial e que o espera na cozinha.
Enquanto ele toma um banho, ela veste a roupa para o trabalho.
Às sete e trinta se encontram na cozinha. Ele diz que ela não tem jeito, sempre caprichosa. Ela sorri enquanto coloca Revolver pra tocar. Conversam sobre tudo que pretendem fazer durante o dia. Logo estão falando do próximo mês, próximo ano. Do apartamento novo, da viagem. Do filho. Ele insiste que esse plano poderia ser antecipado. Ela quer adiar. Diz que gosta de sua rotina, de ter seu tempo. De comprar as flores, de ter momentos só dela, perfumes só dela, dinheiro só dela. Ele argumenta que todos amigos já tiveram filhos, que começam a pensar que ela tem algum problema de saúde. Ela fica em silêncio. Sente culpa. Vergonha por se achar egoísta.
Quando criança sonhava em ter um casal. Na adolescência baixou para um. E quando adulta, esqueceu. Gostava de seu emprego, amava seu marido, nunca deixou os amigos de lado. Pensava se havia algo errado com ela por não querer mudar se ritmo de vida. Lembra-se do sonho de repente. Atrás de sua bicicleta vinha uma criança correndo. Percebeu que a pressão para procriar a perseguia a todo momento. O bom humor parece escapar entre uma colherada na geléia e um gole do chá. Queria que a vontade de ter um filho chegasse naturalmente. Já nem sabia mais se queria ou sentia-se obrigada. Desabafou e ouviu dele que precisava complicar menos. Tudo que ela não gostava era de complicar. Mas ninguém entendia sua decisão.
Ele deixa a mesa e ela permanece sentada. Lembra das amigas que engravidaram achando que era a hora. A maioria sem se importar com trabalho, o pai ideal, o momento. Diziam que o corpo pedia. O corpo ou a família, os amigos, o chefe, os vizinhos, a cabeleireira e todos mais que viviam perguntando 'e os filhos'? Tentou se escutar, entender por que diabos essa vontade não vinha. Será que era tipo termômetro da Sadia, que pulava de repente? Riu com o pensamento.
Foi interrompida pelo susto. Eram oito e vinte e três. Adorava relógios, Amava estar na hora, ser pontual. Mas esse tal de relógio biológico, ela não entendia de jeito nenhum.
Levantou devagar. Precisava chegar ao trabalho apenas às nove, mas gostava de fazer tudo no seu tempo. Foi direto ao banheiro, fez um xixi demorado e continuou sentada na privada um pouco mais, tentando lembrar do sonho. Fechou os olhos e com eles assim mesmo, esticou a mão e alcançou o papel. Levantou-se, lavou o rosto e passou bem o sabonete, para eliminar qualquer resquício de creme. Tratou de enxugar cada gotinha, pois o vento frio fazia qualquer pingo congelar todo o corpo. Seguiu para a cozinha, preparou um café da manhã digno de hotel chique. Até ovos mexidos, que ela nunca comeu no café, preparou. Chá, leite, queijo branco, requeijão, manteiga. Abriu a geléia de pêssego caríssima e os biscoitos suíços amanteigados. Afinal, o que ela estava esperando para abri-los? Usou a toalha de mesa que só usava em festas, pegou as xícaras de porcelana, os talheres de prata e os guardanapos de pano.
Olha para o relógio. São seis e quarenta. Ela sorri diante da mesa arrumada. Faltava só mais uma coisa. Flores. Acelera o ritmo e corre para o banho. Em dez minutos já está vestindo um moletom e um casaco. Segue em passos acelerados até a esquina e compra as mais lindas tulipas que já viu. Volta feliz, sentindo o sol que batia em seu rosto camuflando o vento gelado.
Chega em casa e assenta suas tulipas num vaso de cristal abandonado. Decide então que é hora de acordá-lo. O quarto ainda estava escuro. Ela vira as persianas levemente, deixando as paletas em posição vertical. Uma luz ainda fraca entra pela janela. Senta ao lado dele devagar e se abaixa até aproximar os lábios de seus ouvidos. Canta sua música preferida bem baixinho e ele abre um sorriso, antes mesmo dos olhos. Ela diz que preparou um café especial e que o espera na cozinha.
Enquanto ele toma um banho, ela veste a roupa para o trabalho.
Às sete e trinta se encontram na cozinha. Ele diz que ela não tem jeito, sempre caprichosa. Ela sorri enquanto coloca Revolver pra tocar. Conversam sobre tudo que pretendem fazer durante o dia. Logo estão falando do próximo mês, próximo ano. Do apartamento novo, da viagem. Do filho. Ele insiste que esse plano poderia ser antecipado. Ela quer adiar. Diz que gosta de sua rotina, de ter seu tempo. De comprar as flores, de ter momentos só dela, perfumes só dela, dinheiro só dela. Ele argumenta que todos amigos já tiveram filhos, que começam a pensar que ela tem algum problema de saúde. Ela fica em silêncio. Sente culpa. Vergonha por se achar egoísta.
Quando criança sonhava em ter um casal. Na adolescência baixou para um. E quando adulta, esqueceu. Gostava de seu emprego, amava seu marido, nunca deixou os amigos de lado. Pensava se havia algo errado com ela por não querer mudar se ritmo de vida. Lembra-se do sonho de repente. Atrás de sua bicicleta vinha uma criança correndo. Percebeu que a pressão para procriar a perseguia a todo momento. O bom humor parece escapar entre uma colherada na geléia e um gole do chá. Queria que a vontade de ter um filho chegasse naturalmente. Já nem sabia mais se queria ou sentia-se obrigada. Desabafou e ouviu dele que precisava complicar menos. Tudo que ela não gostava era de complicar. Mas ninguém entendia sua decisão.
Ele deixa a mesa e ela permanece sentada. Lembra das amigas que engravidaram achando que era a hora. A maioria sem se importar com trabalho, o pai ideal, o momento. Diziam que o corpo pedia. O corpo ou a família, os amigos, o chefe, os vizinhos, a cabeleireira e todos mais que viviam perguntando 'e os filhos'? Tentou se escutar, entender por que diabos essa vontade não vinha. Será que era tipo termômetro da Sadia, que pulava de repente? Riu com o pensamento.
Foi interrompida pelo susto. Eram oito e vinte e três. Adorava relógios, Amava estar na hora, ser pontual. Mas esse tal de relógio biológico, ela não entendia de jeito nenhum.
19 comentários:
Já tinha saudades dos vossos textos, sempre tão belos. Sou fã!
Já me identifiquei com várias situações já descritas aqui. Amo a forma como vocês colocam as coisas. Parabéns!
Que coisinha mais linda... Que meigo!
Como juntar uma situação tão deliciosa e singela com um problema?
Nossas vidas são boas exatamente como a desse casal. Com probleminhas no dia-a-dia.
Um beijo às duas.
Leio sempre, mas é difícil me manifestar.
ah, anônimo, se manifeste sempre:) beijos.
Na boa, entendo a moça do texto.
Faço 31 este ano e já adiei meu casamento 50 vezes, porque a cobrança pra que eu tenha um filho tá me tirando a paciência. Esse final de semana ouvi da minha mãe que "Tô passando do ponto"!!
Esse tal "reloginho biológico" eu também não entendo...colocar uma pessoinha nesse mundo é uma tarefa que dá medo! Filho não é igual a cachorrinho, né?
Mais uma vez o texto de vocês faz com que a gente se identifique pra cacete. Vocês são demais.
Bjo meninas
Tenho 37 anos e grávida do meu primeiro filho. Se vcs me perguntarem se eu achava que já tava na hora, vou dizer que não. Ainda me acho super nova e, apesar de estar amando cada dia da minha gravidez e ansiosa pela chegada do meu pimpolho, não acho que exista a hora certa. A hora certa é aquela que te dá vontade ou que te surpreende. Se nunca der vontade e daí? A opção de não ter (ou não querer) ter filhos tem que existir na cabeça das pessoas. Saco essa cobrança... Beijos, adorei o texto.
Esse é um problema que nós homens não temos.
Mais uma vez uma das docinhos arrepiando no texto.
Bjos.
também estava com saudades dos textos.
E também acho que não existe hora certa, mas que deve haver muita dúvida sobre querer ou sentir a pressão, ah isso deve.
Afinal quando se namora todo mundo pergunta quando vai casar, quando casa perguntam quando vira o filho, quando vem o filho perguntam quando virá o segundo... Uma insatisfação social sem fim perante nossas vidas.
Texto lindo como sempre, ñ canso de elogiar. A verdade é que somos egoístas mesmo, se pudéssemos trancaríamos tudo que temos, que sonhamos e conquistamos numa redoma de vidro, e lá deixaríamos somente para nosso bel prazer. Mas a vida nos mostra e ensina que compartilhando é que somos realmente feliz.
Bjos
não tive tempo de sentir o relógio biológico batendo. léo veio bem cedo. mas parei por aí. e tem sempre alguém que vem perguntar: por que você não faz um irmãozinho pra ele? saco, viu?
docinho, obrigada pelo texto na hora certa :)
A D O R E I o texto! muito bom meeeesmo. eu na adolescencia tb queria 2, depois queria um e agora nenhum. não sei se vou mudar de idéia, mas vou continuar vindo aqui...
Tenho 30 anos e me sinto como esta personagem. Ainda não senti meu relógio biológico apitar...
Mas, não sofro com isso não. Espero que um dia, acorde com um bom presságio que estou em dia fértil e que isso seja mega importante para a procriação...
Gosto de crianças, mas, não me sinto à vontade para planejar (ainda) uma em minha vida.
Como sempre os textos são ótimos!! :)
independente do assunto - ter filhos ou não, querer ou de sentir, pensar ou não, planejar - o mais bacana foi essa narrativa solta, sem receios nem rodeios, deslizante. Ler foi quase como receber um afago. Uma pequena delícia.
Eu acredito que esse tal relógio biológico é movido pela pressão da família, dos amigos, dos comerciais de fralda... Na verdade de todos que pintam a cena da mulher feliz e realizada como uma super mulher com uma super carreira, um super marido e super filhos. Aí se um desses itens não faz parte dos nossos planos, ficamos com a sensação de ter vindo de Júpiter!
Beijos meninas!
Licença...venho aqui de intrusa.Vi teu blog nos links da giovanna e resolvi dar uma olhada!Nome sugestivo e eu fiquei louca e até um pouco com medo...se vc der uma olhada no meu blog vai ver que eu escrevo basicamente esse tipo de texto desse seu post..ainda não dei uma olhada no resto , mas pelo que vi desse primeiro texto, SOU EU ESCREVENDO!
relutei várias vezes e parei de ler o texto várias vezes no meio dele pq até me deu um arrepio!!
adorei a história!!
vou te linkar no meu blog...adorei mesmo tudo aqui!!
beeeijos e voltarei sempre!!
xD
Delicioso esse escrito.
Para ser degustado numa mesa com tulipas.
Talvez ela tenha razão. "Há tempo para todas as coisas". Mas ele também tem. Adiar felicidades é crime.
A vida é feita de pontos de vista.
(Vou até linkar enquanto eu tô lembrando, assim tenho um atalho pra voltar sempre aqui.)
Ótimo texto! ^^
Hahahaha, termômetro da Sadia! Também ri, também ri.
[Quote]
Assim que nascemos, choramos por nos vermos neste imenso palco de loucos.
William Shakespeare
[Frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas,1881]:
Não tive filhos não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
Machado de Assis
[/QUOTE]
Sabia decisão.
Gente, não é por nada não... mas acho que essa história de relógio biológico é mó caõ hein? "O corpo pediu"... Sei disso não.
Eu sei que esse comentário está(um pouquinho)atrasado.
Eu tenho 18/19 anos(fasso 19 em 9 dias)e tenho também um medo enorme de me imaginar "assando um bolinho de carne na minha barriga",nem consigo pensar como ficaria grávida ,na minha barriga crescendo...ai que medo!
Alguns amigos já me disseram que conseguem,(nessa hora sempre penso:-Será que esqueceram de tomar os remédios?Oposto que são aqueles remédios de venda controlada,os famosos "faixas pretas").
Meu gato tem 7 meses e já consegue gastar todo meu dinheirinho,e uma criança...Meu Deus...
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