“Vou te ligar hoje, umas 9 da noite. Por favor, atenda. Beijo”
Tremeu quando viu o nome dele em seu e-mail. Na verdade, não foi bem o nome, mas o assunto.
“Preciso falar”.
Tudo havia sido complicado demais, dramático demais, barulhento demais, inexplicável demais. As conversas eram intensas, as coincidências eram absurdas, o sexo espetacular. Mas havia uma pecinha quebrada em algum lugar. Como um carro velho. Sentiam os ruídos, mas não achavam o problema. Sabiam que estavam chegando ao limite, que logo não haveria mais conserto. Insistiram, empurraram e tentaram além do que deveriam. Perderam o respeito e a paciência até se tornarem irreconhecíveis. O processo foi lento e tardio, o que só prolongou o sofrimento e criou mais mágoas do que era necessário.
Dois anos depois, o e-mail na caixa de entrada trouxe à tona tudo que ela jurava ter superado. Reviveu as sensações dos anos finais de casamento. O medo suspenso no ar, sabendo que brigariam a qualquer momento. O receio de falar qualquer coisa e ser mal interpretada. A impressão de que estava enlouquecendo porque era incapaz de enxergar o que ele dizia.
De todos os sentimentos que brotaram do e-mail, o mais forte foi a raiva. Ele sempre seria o calo? Aquele que se abre de repente, quando a sandália bate naquele exato ponto? Aquele dente que sempre sangra quando o fio dental passa por ele? A unha encravada? Aquilo que sempre está prestes a ferir?
Às 9 em ponto toca o telefone. Ela esperou alguns toques, fez ‘rum-rum’ e juntou forças para que a voz não falhasse.
- Alô.
- Oi. Sou eu. Tudo bem?
- Tá sim. Você?
- Também.
- ....................................
- ....................................
-... então. O que você precisa falar?
- Desculpa. É isso. Desculpa.
Era isso. A peça que faltava. O que fazia o dente sangrar, o calo arrebentar. Sentiu uma descompressão no peito, o ar entrando com mais força em seus pulmões. Quanto tempo ela sonhou com isso? Ele aberto, calmo, sóbrio e sem medo de sentir-se rebaixado por admitir que errou. Sem berros, explicações, acusações.
Esperou tanto por isso que nem sabia mais a razão. Na época, queria que ele voltasse com o orgulho atravessado na garganta, admitindo nunca ter se esforçado o suficiente, dizendo que ela merecia mais. Mas agora, via que não havia nada a ser feito. E se consolou sabendo que assim como ela, ele ainda tentava sair debaixo dos destroços daquele casamento.
- Desculpa também.
O telefonema seguiu sem que trocassem uma só palavra. E nunca se entenderam tão bem quanto nesses 34 minutos.
Ilustração: www.vidabesta.com
25 comentários:
compro um prosseco se isso acontecer em menos tempo.
Texto lindo como sempre.
Lindo e real.
beijo
Re
Juro que não sei de onde vocês tiram tanta idéia. Texto muito bom. Mas sabe, acho que isto nunca aconteceria comigo.
Não sou orgulhoso :)
Bjins Docinhos.
Caloã
www.valedoseulixo.com
Adorei isso. Muito. É impressionante a dificuldade que as pessoas têm de desatar esse último nó, né?
Boa semana!
Existem pessoas mesmo nas quais os relogios interiores são meio atrasados. Mas um dia acertam, mesmo que seja tarde demais.
Adoro esse cantinho aqui, parabéns pra vocês. :)
Eu já me identifiquei com muita coisa aqui, mas nada igual a isso.
Mexeu com velhas recordações. E, às vezes, demoram mesmo anos para que aconteça. Ainda que não tenhamos perdido o respeito e a paciência.
Mas quando o nó desata, podemos voltar a viver.
Jamais escreveria um conto assim porque não faço autobiografias. Obrigado por fazer isso por mim.
:)
Beijos do Bic.
Perfeito! Arrepiei aqui imaginando a cena... me identifiquei dmais!
Parabéns! Texto ótimo como sempre..
Feliz...fiquei muito feliz agora...
Beijos!
Deivis.
Prefiro que meu ex-marido nunca faça esse telefonema. Estou com as feridas bem fechadas...
Este blog é 10!
Mais um texto pra provar o quão errado é o nome deste blog. Não que eu ainda precisasse dessa prova; isso é coisa que eu sei há tempos. Redatoras de merda merda nenhuma. É redatoras do caralho! ;-P
É impressionante como a vida real das pessoas é tudo igual, o que muda é a imaginação, os sonhos, mas na real mesmo a coisa é tudo igual.
A imaginação existe pq as pessoas tem medo de conviver com a realidade, preferem viver na matrix. Qdo entro nesse blog, vejo diariamente minha realidade nua e crua , e mais, com tanta poesia, que ultimamente começo a viver com mais prazer, pois aqui tb tem muita adrenalina... e como tem.
Beijos, parabéns outra vez!!!
Eu estou ensaiando pra pedir. Mas pelo msn mesmo. E sempre quando digito o D das desculpas ela fica offilne.
¬¬
Adorei tudo aqui. Como sempre.
Lucas.
Dificilmente é culpa apenas de um dos dois. Demorou, mas conseguiram dizer. Tem gente q nunca diz...
Beijos.
Se eu fosse ela, mandaria o ex-marido tomar no cu, bem baixinho, só para deixar bem claro que as desculpas foram aceitas.
Acho que mais dificil do que pedir desculpa é aceitá-las depois de tanto tempo. Lindo.
Nossa... nossa, nossa, nossa..
De onde você tirou essa história? Andou espreitando?
Não fui casada, não me separei... mas aconteceu comigo.
Depois de um relacionamento com final trágico, passei anos sonhando com o dito-cujo. Em todos eles, pedia desculpa a ele.
Um dia, no MSN, contei isso a ele e pedi desculpa novamente.
Parei de sonhar e ele sumiu, novamente, do msn.
AH! Se as pessoas descobrissem, bem cedo na vida, a força mágica e transformadora de um pedido de desculpas, reconhecedor do erro ou da falha praticados! Tão simples fazer isto. Basta um pouco de humildade e de noção do valor do outro para que as pontas do laço desatado voltem a se entrelaçar... tão simples mesmo!
Adorei o texto, especialmente porque conheço a experiência de sair "dos destroços de um casamento" mal sucedido, passei pela experiência do pedido de desculpas e, hoje, fruimos juntos, como amigos/irmãos que se querem bem e se respeitam, todas as alegrias junto a filhas e netos/as.
Um abraço. Eva Byte
Queria um momento exatamente assim nesse exato momento. =/
pois é. não há mistério algum.
olhando assim tudo parece tão simples...
e é.
a gente é que faz questão de dificultar.
=*
muito legal
muito bom.
Achei o blog fuçando nos blogs que uma amiga minha indica. Adorei. Super bem escrito e real. Parabéns.
André
Ah, meninas... fiz isso com meu "calo" particular dias atrás.
O erro foi ter insistido de novo, ao invés de deixar tudo nos 34 minutos, tão bem entendido.
Aí, ferrou tudo de novo.
E eu, voltei a estaca zero.
Bjo, vcs são sensancionais... parece que tem antenas que captam o que a gente sente. A gente que vem aqui.
Postar um comentário