4.12.08

Dulce

- Vai passar o que hoje, Dona Júlia?

Era sexta-feira, no mesmo horário de sempre: pouquinho antes do almoço. Fazia as unhas religiosamente e mantinha o velho hábito de passar um vermelhinho. Só que de uns tempos pra cá, parece que os fabricantes de esmalte resolveram sacaneá-la. Estava solteira desde o início do ano, e sexta era o dia de “o que vou fazer hoje?”. A ansiedade começaria daqui a pouco, junto com o início da digestão. Iria perder a concentração pra preparar o relatório da semana e arrancaria alguns cabelos até o fim do expediente.

- Tem algum novo, Dulce?
- Tem, tem sim, ó, chegou esse, o Atração Fatal. Mas eu gosto mais é desse aqui, o Deixa Beijar.
- Não tem nenhum mais direto, Me Come Agora?
- Que isso, Dona Júlia.

Dulce era uma senhora com seus quase 50 anos. Bem, 50 anos hoje não é mais idade de senhora, na verdade. Susana Vieira que o diga. Elba Ramalho também. Mas Dulce ainda pertencia ao tempo em que as mulheres se tornavam senhoras lá pelos 40 anos. E há10, fazia as unhas da Júlia como ninguém. Era exímia tiradora de cutículas, lixava com perfeição matemática e passava o esmalte com tanta sabedoria que ele durava os seis dias sem estragar, mesmo depois de muita louça lavada. “É o jeito de puxar o pincel” – ela dizia, categórica. Se houvesse faculdade pra manicure, Dulce seria a primeira da turma.

- Então passa qualquer um aí, disse entre os dentes. Não, não. Me dá essa caixa aqui. Por favor.

Mulher com TPM, mulher sem fazer sexo, mulher sem dinheiro pra comprar a porcaria da sandália-gladiador, mulher sem tempo de pintar o cabelo: evite. Invariavelmente ela vai estar mal-humorada e louca pra achar um bode expiatório. No caso, a pobre da Dulce.

- Vê se isso é nome pra se colocar num esmalte: Beijo Molhado. Ninfa. E esse: Dama da Noite. Isso é eufemismo pra puta.

- Eu o quê?

- Por que quem cria esses nomes não faz coleções? Nomes de fruta, por exemplo. Ó que bonito esse aqui, Tâmara. Ou então, nome de gente. Nome de gente é legal. Já tem Gabriela, podiam fazer Lorena, Sofia, Bárbara. Bárbara tem até duplo sentido.

- Quer passar o Tâmara, Dona Júlia?

- Isso já é zoação com a minha cara. Desejo. E esse, Love. Amor profundo. Volúpia. Obsessão. Paixão. Loucura. É quase um texto. Um texto brega, diga-se de passagem.

A coitada da Dulce permanecia ali, sentada numa cadeirinha anatomicamente desenvolvida para o ofício de manicure, meio sem entender aquele ataque à caixa de esmaltes dela. Dulce organizava-os todos os dias. Os mais claros, os cintilantes, os estranhos (abóbora, verde, amarelo – odiava esses esmaltes), todos eram colocados criteriosamente, lado a lado, em ordem crescente: do mais claro para o mais escuro.

- Vou passar nada não, Dulce. Deixa só com a base. Tá ótimo assim.

Depois de se revoltar contra a caixa de esmaltes, começou a sentir a vergonha e um leve arrependimento subindo pelas pernas. Detestava essa sensação. Toda vez que soltava os cachorros por um motivo besta sentia em seguida uma azia desconfortante. Coitada da Dulce, ia gastar ainda mais tempo pra organizar aquele monte de vidrinhos coloridos. Iria ter que aumentar a gorjeta da coitada. Tirou duas notas de vinte que tinha acabado de sacar no caixa automático e entregou à manicure. Pediu desculpas pelo ataque, justificou que a culpa era dos homens que não sabiam amá-la, que não diziam o que ela queria ouvir, não falavam o quanto ela era especial e todas essas reclamações quem nem ela mesmo agüentava mais.

No fim da noite, Dulce chegou em casa diferente.

- Afonso?
- Fala, Dulce.
- É...bem...cê gosta de mim de verdade? É que andei pensando que você nunca falou pra mim que eu sou especial e essas coisas, você sabe...
- Como é que é?
- É que você nunca me disse coisas de amor, saber?
- Iihh, lá vem. Que foi, Dulce? Andou cheirando suas acetonas?
- Como você é grosso, Afonso. Só queria que você fosse romântico.
- Que história é essa agora? Que eu fiz de errado, mulher? Conversa mais besta...
- ...
- Ah, fui lá no centro e tirei a geladeira. Dividi no carnê. Chega na segunda.
- Verdade? Que beleza! Ó, passei lá no Geraldo e ele mandou esses torresmos pra você. Vou botar a janta.

15 comentários:

Manu Negri disse...

Amei! ^^ Engraçado e fofo.
"Não tem nenhum mais direto, Me Come Agora?" (rindo até agora)

Dani Antunes disse...

"Não tem nenhum mais direto, Me Come Agora?" (rindo até agora) (2)

Vocês arrebentam!!

=)

Beijos

Anônimo disse...

Adoooro sempre!

Parabéns novamentee =)

Paulo Bono disse...

os textos estão cada vez mais gostosos de ler.

abração

teo netto disse...

Adorei chuchus!

Bjocas

Anômima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anômima disse...

Será que existe um curso para associar cores de esmaltes a nomes tão... únicos? Fica parecendo coleção de lingerie.

Escrevendo na Pele disse...

Amei e tô rindo muito aqui. Mas... falando em esmalte... tem algum "me passe o pincel"? rsrsrs

Darshany L. disse...

quer algo mais romântico do que comprar uma geladeira?

Anônimo disse...

Quando lançarem o 'me come agora', vê se avisa, kakakakaka.
Bezzos, adorei o texto. Eu gosto do Obsessão; é roxinho, sabe? Ou melhor, roxão. :)

Dedinhos Nervosos disse...

ahhahahaha
Pobre Dulce. E ainda sobrou pro marido! Adorei!

Anônimo disse...

muuuito bom o texto !
adorei, vcs gastam !
beijos !

Anônimo disse...

Parabéns! Simplesmente maravilhoso!

Esse tipo de homem, que dá valor a cada um de seus passos, é raro de se encontrar...

Poxa... eu achei um... na verdade, ele me achou!

Deus me ajude a dar-lhe o valor que merece!

Anônimo disse...

No começo achei que Júlia era meu codinome...Como sempre, ótimo!

Adoro seus textos! (milésima vez)

Abs,

Anônimo disse...

tá vendo? a dulce é que é mulher de verdade.

haha, brincadeirinha.
=)